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Entrevista Patrícia Reis: “Não há nada pior do que uma mulher machista e uma mulher machista neste país é um cliché"

Da meia-noite à seis é o retrato de duas vidas que atravessam a insónia da pandemia… em 2022. Um romance para oferecer no Natal ou ler num trago enrolada numa manta de sofá.

Foto: Carlos Ramos
17 de dezembro de 2021 às 11:24 Patrícia Barnabé

Ela perde o marido e dedica-se à rádio, ele teve um acidente de carro e perde a voz, e cruzam-se na madrugada da rádio. A história de duas vidas que podiam ser as nossas contadas com ritmo, delicadeza e desassombro, mas sem nunca perder a centelha. A determinada altura, ele escreve-lhe: "(…) num mundo em que podes ser qualquer coisa, sê bom". Conversámos com a autora sem máscara sobre o amor, o feminismo, a tecnologia, a idade, a família, o jornalismo, a terapia, a amizade e, claro, a pandemia.

Querias escrever sobre a pandemia e foi só uma desculpa?

Eu não queria escrever sobre nada, eu achava que não ia escrever mais livro nenhum, pela razão de que nunca entrei num livro antes de ter começado outro, é uma maneira de não ficar vazia, sem personagens. As Crianças Invisíveis foi um processo muito longo e duro, custou-me imenso entregar o livro, a primeira entrevista que dei desatei a chorar, coisa estranha porque sou muito pouco lamechas, mas aquilo mexeu muito comigo e, de facto, não me surgiu outra história. O meu filho mais novo dizia que era impensável porque "tu para pensares precisas de escrever". O tempo foi passando, de repente o confinamento vem na sequência de um retiro na Índia - num centro ayurvédico em Kerala, em total confinamento (risos), que me fez muito bem à cabeça e durante o qual encontrei este lema que se adapta bem a este tempo: aceita que custa menos. Em final de março apareceu-me esta mulher, a Susana Ribeiro de Andrade, assim, com apelido e tudo, o que tem a ver com a ideia de cidadania inteira, a pessoa na pólis, e o que é que o teu nome carrega. Neste caso, ela carrega o apelido do marido, mas só depois de ele morrer.

Foto: D.R

O que te levou a ela?

Existiam treinadores de bancada em todo o lado sobre o vírus e as consequências da pandemia e o medo e as máscaras e as crianças, e as pessoas a adoecer e a morrer e as pessoas com mais idade. E, ao mesmo tempo, toda a vida li ficção científica e fantasia e todo este cenário já foi projectado não sei quantas vezes, a antecipação da realidade pela ficção. Este livro não foi escrito da mesma maneira, só o facto de teres os diálogos dentro da narrativa é uma coisa completamente original para mim. E logo a seguir surgiu-me o Rui Vieira que é, confesso-te, a minha personagem preferida, está ali tudo, o tempo que nós vivemos é aquilo.

Querias escrever sobre a ceifa inesperada que é a morte e o amor?

Não, queria escrever sobre o que passo a vida a escrever: a construção da identidade a partir de coisas que te acontecem, um trauma, uma decisão e, portanto, é um livro que te dá moldura da pandemia em 2022, é uma distopia de alguma forma.

Porquê 2022?

Porque te permite ter a imaginação e tem muito da atualidade, o que o Presidente disse foram exatamente aquelas palavras, veio daquela cidade da China, e ir picar coisas que estavam a acontecer, o medo das pessoas, a enorme solidão que estamos e o que é que isto significa para a nossa identidade. Já percebeste que lixámos a sexualidade de toda uma nova geração com isto? Imagina que o verão de 2020 era o verão em que as coisas te iam acontecer. Vão acontecer grandes mudanças na sexualidade, que tem a ver com a pandemia, mas também com os movimentos me too e a ideia de consentimento e esta construção urgente e permanente e que não tem a ver com um género – ser feminista não é uma questão de género, é uma questão de inteligência, é uma questão básica, de educação.

Para as novas gerações a questão do feminismo já nem se põe da mesma forma, nas sociedades ocidentais pelo menos. Alguns destes grandes assuntos tendem a tornar-se não assuntos.

Vão, mas não será no meu tempo de vida... E a máscara tira-te o sorriso, o teu nivel de empatia e de solidariedade é grande em alguns momentos, mas ao mesmo tempo promovem a  individualidade e o recato.

O medo paralisa tudo.

Sendo que o medo também é um media incrível. Eu acho que não devíamos ter medo do medo, não adianta muito, o medo é aquilo que estabelece a fronteira do abismo, faz-te pensar. Não quer dizer que não arrisques e isso não implique coragem e vontade e entusiasmo, às vezes inconsciência e irresponsabilidade, é verdade, mas pode ser um amigo. O Rui Vieira é aquela personagem que nos diz simbolicamente o que o rei Juan Carlos disse ao Hugo Chávez: "porque no te calas?" Quando é que deixámos de aprender a ouvir o outro, de conversar, está tudo agarrado a estas merdas de tenologia, quatro horas e tal por dia é a média. Agora há miúdos com tablet na missa, está tudo maluco? E a tua vida Instagramável é uma construção, porque precisas dessa validação?

Foto: Carlos Ramos

Porquê?

Porque as pessoas estão profundamente sozinhas.

A civilização levou-nos a essa solidão.

Acho que a civilização evolui para essa solidão, sabes. E quanto mais coisas tens, mais sozinho estás.

Esta comunicação é uma não comunicação?

É porque os extremos estão cá sempre e tudo o que é extremo é mau. Por isso o mutismo do Rui Vieira é uma metáfora da nossa falta de capacidade de parar. Agora fomos obrigados a parar, e quantas pessoas se separaram na sequência do confinamento? Que concluíram que afinal conhecem pouco os seus filhos adolescentes? Que mudaram completamente de profissão ou começaram a fazer terapia? É um tempo de paragem e reflexão, de transformação ou transfiguração e vai ter coisas boas. 

Todos visitámos um certo existencialismo.

É a pergunta do Caetano: "Existirmos a que será que se destina? É a pergunta básica que deu origem às religiões, em certo sentido. E fazemos fugas sucessivas, porque isto de pensar na nossa efemeridade e na nossa morte é uma grande chatice, não é? (risos) Que chatice ter de morrer, a inevitabilidade biológica de a sociedade por exemplo olhar para uma mulher como eu – que tenho 50 anos e dois filhos, um com 26 e outro com 22 – ‘ah é uma mulher sem validade, já não é fértil’. Mesmo profissionalmente é este o caminho: "Ah tem 50 anos e 34 anos de carreira, deve ser cara". Para as mulheres a idade é uma inevitabilidade biológica tramada. Porque põe em causa tudo, o padrão de beleza da sociedade e mesmo que digas: "Estou-me nas tintas", não estás nada! Chegas aos  50 e vem a menopausa e traz a família toda: o pai a mãe, o avô e a avó, os primos distantes e os vizinhos do terceiro esquerdo, a porteira, o padeiro e o canalizador, toda a gente. As mulheres passam a vida inteira com o corpo a mudar e a trai-las: ou porque as maminhas estão a nascer ou é os pêlos púbicos, a menstruação, a ovulação, a maternidade, dar de mamar, depois a menopausa e depois morrer. É muita difícil.

Porque as mulheres estão sempre ligadas à fertilidade, parece que só somos isso.

Exatamente. A sociedade tem este nível de pressão sobre ti, mesmo que ela seja indirecta. Se tens filhos é porque tens e devias estar mais em casa. Se não tens, porque carga de água é que não tens se toda a gente tem? As mulheres são muito massacradas com isso. E repara, temos muita sorte porque somos mulheres em Portugal e no século XXI, não somos do Afeganistão ou da Arábia Saudita ou da maior parte do mundo. Mesmo. Faz-se muito estardalhaço, muito barulho, mas é tudo muito superficial, não há exatamente um debate e uma troca de ideias – não tens saudades disso? De te sentar à mesa com amigos e dizer: não me interessa o Marcelo ou o Trump, interessa-me saber como queremos acabar os nossos dias. O resto é fazer barulho, vamos entreter-nos, bora lá não pensar na traição do corpo!

Foto: Carlos Ramos

Não achas que por o machismo estar tão enraizado, é tão mas tão mais antigo, e próximo, do que qualquer outra causa, as pessoas não se zangam realmente com a violência doméstica e o assédio, muito menos com as pequenas coisas? Nem as mulheres parecem zangar-se.

O pior inimigo do me too são as mulheres. Não há nada pior do que uma mulher machista e uma mulher machista neste país é um cliché. Tens uma mulher que chega a um lugar de poder e normalmente ela começa a fazer como os rapazes para se integrar. Tenho mesmo muito pouco respeito por isso. Mas, sabes, uma das coisas boas do confinamento foi ter escrito o livro e resolvido alguns coisas, porque os livros resolvem-me de alguma maneira… O Virgílio Ferreira dizia uma coisa bonita: "O romance é um biombo atrás do qual a gente se despe". Um pouco antes da pandemia, morreu o marido da Maria Teresa Horta, estavam casados há 56 anos, só pensei: Como é que esta mulher vai-se deitar na mesma cama que partilhou durante 56 anos com o amor da vida dela, a quem dedicou os livros todos?  Não te digo que não tenha projetado isso em mim e o tenha tentado resolver matando o António, marido da Susana. Se calhar sou eu a dizer: se te acontecer uma desgraça muito grande vais dar umas voltas às madrugadas da rádio…

Por isso dedicas este livro à Maria Teresa Horta.

É urgente ser-se feminista.

Ela é das maiores.

É provavelmente a pessoa que eu conheço que mais foi prejudicada neste país por nunca ter abdicado de dizer: eu sou feminista. Não tem os prémios que deveria ter, a projecção internacional, a carreira, ela foi penalizada. 

Agora é cool ser-se feminista, e ainda bem.

Mas é importante perceber de que feminismo estamos a falar. Tenho amigas que são feministas e educam os filhos como a minha mãe educou o meu irmão: não fazem nada porque são rapazes. Não consigo perceber, os meus filhos fazem máquinas, vão às compras, cozinham, aspiram, lavam os pratos, e põem o tampo da sanita para baixo. Educas as crianças independentemente do género. Se os exemplos não estiverem em casa… Tens um país em que a violência no namoro é um absurdo, os dados estatísticos são assustadores. Ainda morrem mulheres nas mãos do pai, do marido, do ex-marido, do namorado…

E os números subiram na pandemia.

Imagina uma mulher numa situação de violência doméstica, o que deve ter sido durante a pandemia, como é que pedes ajuda? É crucial não ter vergonha e isso é muito difícil, o que é que as outras pessoas vão pensar? É uma causa urgentíssima e importantíssima.

Vês manifestações LGBTi ou anti-racismo, toda a gente se manifesta por tudo e por nada, mas ninguém levanta a voz sobre o o #metoo e o machismo endémico.

Fizeram no Parque Eduardo VII, depois do 25 de abril e ainda levaram pancada. A Maria Teresa Horta conta essa história. E criou-se a ideia de que se queimaram soutiens, não se queimaram soutiens coisíssima nenhuma! É muito engraçado, algumas iam vestidas com coisas tipicamente femininas: empregada da limpeza, a doméstica, a enfermeira… e a única que não foi molestada foi a que estava vestida de noiva! (risos)

Foto: D.R

Também se safaria a que tivesse uma criança ao colo, a esposa e a mãe são intocáveis. Mas depois ficam santas o resto da vida.

É aquele triângulo imperfeito que a religião, e a igreja católica especificamente, perpetuaram no tempo: a Eva sedutora e demoníaca, mentirosa, insinuosa, acintosa, manipuladora e a Maria Madalena, coitadinha, não há nada na Bíblia que diga que a senhora era prostituta, e passou a sê-lo porque um papa decidiu numa homilia indicá-la como tal e o mito prolongou-se uns séculos, o que é extraordinário, é a rasca, vulgar, que se vende, a manipulação do corpo, a disponibilidade. E depois tens a Maria que é servil, bondosa, silenciosa – todas somos um pouco Marias.

Falas do peso do tempo, uma pandemia é um tempo que não se recupera. Mas ganhámos algum tipo de tempo?

Acho que a pandemia teve uma coisa maravilhosa, sobre a qual eu escrevo no livro, se tiveste essa oportunidade: o peneirar dos afectos, eu deixei de fazer fretes.

Não pareces ter feito muitos.

Fiz os bastantes para te dizer que os deixei de fazer e que existiam pessoas na minha vida que eu conhecia socialmente, perdia tempo, e objetivamente não me acrescentavam nada. Ou para quem não era possível ter um registo de reciprocidade, por isso era eu dar ou ouvir, e do outro lado nada. E, de repente, a pandemia mostra-te, de uma maneira muito transparente, quem é que verdadeiramente importa na tua vida. A quem ligaste? Com quem fizeste Facetime? De quem é que sentiste mais falta de dar um abraço e violaste as regras de segurança e de distanciamento porque não te aguentaste? São uma meia dúzia, não são mais e ainda bem, esse esclarecimento de onde podes perder tempo porque estás a ganhar tempo, porque importa, isso é espetacular.

E também reparámos em pessoas que nos adoram e que nós nunca tomamos atenção ou adiámos, é um novo mapa de afetos.

No meu caso vai manter-se assim, não quero ter mais amigos, sou muito feliz e muito grata com os que tenho. Vivemos numa sociedade em que as pessoas querem ter mais seguidores, e mais pessoas e mais isto e mais aquilo, eu não quero ter mais nada. E não quero mudar de marido, nem de filhos, nem de carro! Estou muito contente e muita bem, o que é muito pouco português dizer-se, até porque este é o país das invejas.

Porque escolheste este tempo específico: da meia-noite às seis?

É o tempo da rádio, as horas mortas. Eu adoro rádio, se pudesse fazia rádio todos os dias, é o encontro que tem mais impacto junto do público. Mas são aquelas horas a que ninguém te atribui uma importância. De repente, as pessoas estão todas em casa e já não há horas mortas, porque não há o mesmo ciclo de tempo, já não tenho de sair de casa às oito para chegar ao trabalho às nove, por isso se calhar posso ouvir rádio até às três da manhã. Era um pouco essa lógica e o facto de ela estar sozinha.

É à noite que te vês realmente e muito se revela, é quando estás mais sozinho.

É a altura em que as pessoas deprimem e desanimam, que se sentem piores, que bebem.

Dizes que a valorização da memória não é muito portuguesa, é por isso que tratamos mal os nossos mais velhos?

Não queremos pensar na morte, descartamos os mais velhos como ativos da sociedade, da mesma forma que descartamos as mulheres a partir dos 50 anos.

Não se percebe, somos muito mais interessantes depois

Muitíssimo mais interessantes! A minha avó morreu em abril e há muitas coisas e muitas histórias que eu não teria se não tivesse ganho tempo para estar com ela e ouvi-la. Então ias ao baile de Carnaval, mas mascaravam-se? A fotografia da minha tia Nita vestida de pássaro nos anos 40, num baile de Carnaval, eram seis meses a fazer o fato, inacreditável. Estas coisas. Eu devo muito às pessoas mais velhas porque passei muito tempo com os meus tios-avós, o meu tio-avô era artista e um adiantado mental, como costumo dizer, uma pessoa hipercriativa e foi fundamental para mim. Devo-lhe os livros, a música clássica, a ópera e o bailado, o teatro, não é dos meus pais, os meus pais têm mais 17 e 18 anos do que eu portanto são uns tipos porreiros, mas aquela coisa são os meus tios-avós. E o meu tio-avô já era velhinho quando nasci. Foi das pessoas mais importantes da minha vida e de quem tenho saudades todos os dias. E vivi com a minha bisavó também, por isso, para mim as pessoas mais velhas sempre foram uma fonte de sabedoria. A minha tia-avó atava os tomates ao diabo quando perdia qualquer coisa, e perdia sistematicamente qualquer coisa. Agarrava num lenço, juntava as quatro pontas e punha debaixo de um móvel pesado, geralmente um aparador, e dizia alto: "Atei os tomates ao diabo e enquanto não encontrar as minhas chaves não os desato. Ele agora vai ficar tão aflito, vais ver que as chaves aparecem num instante!" Continuo a fazê-lo e a achar que faz sentido, sabes? Descansa-me. (risos).

É nunca perder a magia.

Tive muita magia durante a minha vida, podia imaginar tudo, não havia impossíveis, sabes? É a frase do Dalai Lama: "Nada é impossível, o que há é uma perceção limitada daquilo que é possível." Tudo se podia fazer a qualquer hora e isso foi uma sorte muito grande, estou muito grata e a falta que faz.

Foto: Carlos Ramos

Tenho a ideia das mulheres da tua família serem todas parecidas e racé.

Há uma fotografia em que estamos todas iguais, a minha mãe, a minha avó e eu, e o meu marido diz muitas vezes: "Sei exatamente como é que ela vai envelhecer e estou muito feliz com isso." E somos todas Pilar: eu sou Patrícia Pilar, a minha mãe é Maria Pilar e a minha avó era Pilar del Carmo, o meu bisavô era espanhol. Se eu tivesse tido uma filha era só Pilar.

Há uma altura no livro em que a Susana sente que está a imitar a mãe, é verdade que nos tornamos nas nossas mães?

Tenho um episódio que comprova como essa realidade é inevitável: a minha mãe tem sempre uma palavra amiga: "ah, podias cortar o cabelo cá atrás um bocadinho", "esse fatinho parece de lésbica", "mas não era melhor se desses duas voltas ao colar? E pensas: humpf! E a minha mãe tinha acabado de me dizer uma variante destas e chega o meu filho mais velho e digo: "Ai filho, essa camisa não dá" (risos)

Mas ganhaste um cuidado com o pormenor que não terias se não fosses filha desta mãe.

Claro, absolutamente! E desta avó e desta tia-avó e da minha bisavó, eram todas mulheres com salero, e tudo ali impecável, modista, aquele modelito…

Também podes fugir à tua mãe.

Ou viver em oposição. O meu filho mais velho e eu, por exemplo, concordamos que discordamos em quase tudo, ele é de direita, católico e conservador, embora não seja conservador nos costumes, para o Sebastião [Bugalho, colunista e comentador político), não se põe a questão gay ou da adoção ou da raça, etc., mas é muito uma oposição àquilo que nós somos, não acho mal, muito sinceramente, é um caminho de autonomia e de independência.

É como disse o unânime Miguel Esteves Cardoso, numa entrevista ao Expresso: "Ser conservador não é ser nazi".

A Agustina Bessa Luís ou o Vasco Graça Moura eram de direita, há pessoas brilhantes, qual é o problema? Existem dois tipos de pessoas: as boas e a más, é como a música, não há pessoas mais ou menos. Eu durante muito tempo, e como era muito radical, dividia o mundo entre as pessoas que acolheriam a Anne Frank e as que não acolheriam a Anne Frank, hoje sei que não é assim porque tenho amigos que não a acolheriam por medo, por cobardia, por não saberem gerir a situação e não faz deles piores pessoas. Também aprendes. Todos temos coisas boas e más, tenho coisas péssimas e coisas de que me arrependo ou que nem fazem sentido quando olho para trás, nem pareço eu, mas é um caminho. Agora percebes que isto é muito complicado quando o escrutínio público das pessoas é de tal ordem que, neste momento arriscas-te a ter uma geração de políticos no ativo que vão primar pela mediocridade porque as pessoas de grande qualidade não estão para ser escrutinadas desta maneira. Porque o que aconteceu no Tal & Qual com o Paulo Rangel é uma coisa nojenta, é grave e complicado para a democracia. E numa altura em que tudo é feito a uma enorme velocidade, nada é aprofundado, as noticias na televisão e na rádio duram dois minutos, já ninguém lê jornais ou uma reportagem, não há reflexão. Os jornais online, alguns com todo o seu mérito, são um poço sem fundo e sem critério editorial, é umas atrás das outras.

Foste-te desencantando com o jornalismo?

Fui sim, mas nunca vou deixar de ser jornalista. Uma pessoa está ministro, não é ministro, uma pessoa é jornalista ou não é, é como ser ator, é uma vocação, uma coisa que te passa pelo sangue, uma forma de olhar o mundo. Agora precisamos de saber é de que jornalismo é que estamos a falar, o que fui formada nos anos 80 está muito longe disto tudo, é muito difícil. O que acontece é que as pessoas hoje acham que também elas têm uma grande importância e a sua opinião também conta e aquilo que é o jornalismo de cidadão é uma coisa assustadora. E em Portugal vês as pessoas a opinarem nas redes sociais e não têm memória de nada! Tens a degradação da classe política e a ideia romântica do serviço público, do fazer para a comunidade, perdeu-se.

"A aceitação custa menos" como dizes, mas quando é que desistimos de mudar o mundo?

Não desistes, mudas o teu mundo. Uma vez, há muitos anos, um escritor disse-me: "Eu quero ser conhecido no mundo". E lembro-me de lhe ter dito: "Eu quero ser conhecida na minha rua para poder deixar o café por pagar porque me esqueci da carteira." Eu quero mudar a minha rua, mas não quero mudar o mundo, nem o bairro! Orgulho-me imenso da relação exemplar que tenho com os meus vizinhos e de quem tenho as chaves de casa, estou no supermercado ou na farmácia, do que é que precisas? Sempre valorizei muito os vizinhos e agora mais ainda. Posso ser-te muito sincera? Eu não vou ser o Mia Couto, nem o Pedro Chagas Freitas nem o José Rodrigues dos Santos, mas está bom assim. Claro que escrever é um ato de egoísmo e um pedido de validação, mas é uma partilha também e uma exposição e também não é fácil. Lembro-me na Construção do Vazio em que a personagem principal é violada pelo pai e lembro-me de me perguntarem numa entrevista, uma jornalista do Diário de Notícias, se eu tinha sido violada, coisa que nunca perguntaria ao Lobo Antunes. E estas merdas deixam-me… aaaaaaah! Hoje penso que não queria ser uma Elena Ferrante, ela encontrou uma boa maneira de se escusar a esta macacada que tens com o escritor, ou o criativo, com os músicos e os atores, como se fosse um tetrapack, em exposição no hipermercado. Odeio isso. Não vou ser um best-seller, ok, não tem mal, sempre soube que não ia viver dos livros.

Mas sempre soubeste que querias escrever livros?

Desde pequenina. O jornalismo foi uma maneira de escrever e fazer dinheiro e depois apaixonei-me, era o Independente, era outra coisa.

Foto: Carlos Ramos

Começaste n’O Independente e na Sábado, passaste pela Times, pela televisão, pelo Expresso, Marie Claire, Elle, sempre tiveste vontade de dizer coisas?

Sim e posso dizer-te que no início da minha vida profissional fui muito penalizada por ser mulher, por ter um palmo de cara e por ser loirinha, por ser novinha, depois por ter um namorado mais velho e depois por não sei quê. Se calhar hoje teria reagido de maneira diferente a algumas situações, mas na altura eu chorava e achava que tinha de fazer uma conferência de imprensa nacional para esclarecer (risos). Hoje acho que sofri muito caladinha o que não devia ter sofrido, devia ter mais confiança em mim em muitas situações no Independente, no Expresso, na Sábado... Quando fui para o jornalismo "dito feminino", não acho que assim seja, é jornalismo, a Marie Claire foi uma benção, respirava-se. As redações quando são duras são muito duras, e quando és mulher e novinha, puffff, mas não me queixo nem tenho grandes arrependimentos, mas já não perco energia com pessoas ou com coisinhas que só têm a importância que eu lhes dou e eu não tenho mais 51 anos para viver, por isso, let’s make the most of it.

No teu livro também falas da ida à terapia – "perceber através das suas palavras esse território e as possibilidades de exploração ou de fuga." Fazia-nos bem a todos ir ao um psi de vez em quando?

Há muitos anos que falo sobre terapia e a importância que isso teve, sempre achei fundamental. Fiz terapia durante quase 9 anos e estou profundamente grata, fui pelo meu próprio pé para me perceber. Há um psiquiatra que eu ainda oiço a voz dele quando vou fazer alguma coisa: "O quê, vai fazer outra vez a mesma coisa?" Estou muito crescida por causa da terapia porque também me dispus a um processo terapêutico com uma honestidade dura, porque é muito duro dizeres ao espelho: disse uma mentira, fui uma sacana, fui má. Aprendi muito e acalmei-me muito, eu vivia num stress, agora está tudo bem. É perceberes de onde vens para perceberes o que queres ser porque a construção da tua identidade está em constante mutação. Quando as pessoas dizem: que falta de coerência! Eu acho a coerência a coisa mais estúpida do mundo. Desculpa, não mudas de ideias? Olha, afinal pensei isto mal, estava a ver mal, errei e então? A terapia a mim serviu-me muito, hoje vivo muitissimamente bem com quem sou e com quem não sou, não tenho grandes desgostos nem arrependimentos, embora haja algumas coisas que eu gostava que não tivessem existido, como todos nós. Depois tenho um projeto de vida incrível e dois filhos maravilhosos, e tenho amigos que sei que vão ter comigo à China, se eu precisar. Não são muitos, nunca se tem muitos amigos destes, porque tens de investir na amizade. Há um amigo da Inês Pedrosa que diz que a minha amizade com a Inês é uma catedral, e é, são 30 e tal anos a aturar as merdas, a discordar, a apoiar, a consolar, pensar, a amizade é uma construção, é um abraço.

Escreves muito neste livro sobre os pequenos códigos das relações, as vivências do quotidiano que acabam por valer muito mais do que o que nós projetámos nos filmes dos anos 80 que acabam sempre com eles a discutir e a beijarem-se à chuva…

Meg Ryan! "Once you discover you want to spend the rest of your life with somebody, you want the rest of your life to start as soon as possible" é a melhor frase de todas, When Harry meets Sally, quando ele corre para a festa de final do ano e lhe diz isto.

Na vida real nunca é assim.

Na vida real é completamente assim.

Mas tu tens um Elvis [Veiguinha, seu marido], não é para todas.

Lá está, sabes as pessoas que ganharam o Euromilhões? Tu e eu não conhecemos nenhuma, mas existem, certo? Podes encontrar o teu Mr Right, é perceberes que podes fazer uma vida com uma pessoa que conhece os teus podres, que já te viu vomitar, a chorar, na merda, a ser estúpida que nem uma porta, e que ainda assim gosta de ti, é espetacular! O que sei é que tenho de aproveitar todos os dias, tenho mais um dia com esta pessoa. Isso depois constróis na intimidade, coisas que as pessoas descuram hoje em dia e eu obriguei-me a trabalhá-las: ponho a mesa todos os dias, não jantamos com televisão, ponho música para jantar todos os dias, passámos o confinamento em casa e continuámos a fazer isto – há uma linha de cerimónia que tens de manter com as pessoas que amas e há um não abandalhar, don’t take it for granted. A reciprocidade é a coisa mais importante da vida das pessoas. O mais importante nas relações é a construção da intimidade, não é estares com a porta da casa de banho aberta, é uma construção de encaixe. Eu não sou a mesma mulher que era há 18 anos, nem a minha sexualidade, tens de te adaptar, tens de querer muito porque dá muito trabalho, é deixares de ser a Patrícia e passares a ser aquela parte do plural que somos nós.

A Susana Rebelo de Andrade diz a determinada altura que chegou à idade adulta e nem deu por isso. Tenho a sensação de que somos a primeira geração que se deu a este luxo. Há um escritor brasileiro que diz: 80 anos? Já? Logo eu que tenho talento para ser criança."

Eu não tive talento nenhum para ser criança ou adolescente, saí de casa muito cedo para ter a minha independência financeira que mantenho até hoje. Não acho que tenha sido a melhor mãe do mundo, mas acho que fui uma boa mãe e acho que os dois, que são muito diferentes, têm uma boa caixa de ferramentas para a vida. Nunca tive muita ambição, não tenho uma célula de competitividade no corpo, sou aquela pessoa com quem vais fazer um jogo Pictionary e eu ajudo-te a desenhar a cenoura à equipa adversária. Não gosto de jogos por isso, porque me é indiferente ganhar ou ter o protagonismo. Eu acho que tenho agora imenso talento para ter 50 anos, o meu momento áureo é viver agora. Acho que tenho uma hipersensibilidade que me prejudicou ao longo da vida.

Mas é o teu forte…

Mas só o descobri mais tarde.

e o que é ainda mais raro, falas nela quando a maioria passa a vida a inventar.

As pessoas constroem personas. Sim, falo de tudo na boa.

Se calhar faltava-nos falar mais uns com os outros sobre a nossa humanidade.

E os nossos receios e as nossas cenas e as nossas parvoeiras, tipo: se ganhares o Euromilhões, o que vais fazer no dia seguinte? (risos)

Foto: Carlos Ramos
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