Saltos na calçada

A violência doméstica e o machismo começam no namoro

Foto: Netflix / Criada
08 de março de 2023 Patrícia Barnabé

Já repararam que a Siri do iPhone ou a Bixby do Samsung têm nome de mulher? (No caso da Siri, é possível para adaptar, embora nos refiramos a "ela" no feminino com mais frequência). Porque será? Porque a secretária, a enfermeira, a auxiliar, a contínua, a cuidadora, até a assistente do mágico, a tarefa secundária é (quase) sempre de rapariga. São séculos de desigualdade que aperfeiçoaram o engenho feminino para os bastidores, o agrado e a dissimulação - e que é a mesma que nos faz repetir padrões em vez de denunciá-los.

Em Espanha existe um sistema que vigia as mulheres em risco de agressão machista, e são cerca de 70 mil os casos ativos, ao mesmo tempo que a legislação já permite que se falte ao trabalho quando se sofrem menstruações dolorosas. Parece um contra-senso, mas é o caminho que se faz caminhando. E, repare-se: o período é coisa só de raparigas, é um rebuçado, a violência de género é outra conversa.

O Expresso noticiou que, no país vizinho, só em dezembro de 2022 morreram 11 mulheres, 49 no ano inteiro, já a estatística portuguesa refere "apenas" 22 mortes o ano passado. E as denúncias não chegam aos 50%. Em Portugal, o #metoo quase não teve expressão. É o medo de falar e do que os outros pensam? É endémico, incrustado, perverso. Apesar de as mulheres serem metade da humanidade, as mães, as filhas, as irmãs, as amigas, nunca são notícia de abertura de telejornal.

A versão mais jovem da violência doméstica, a violência no namoro, é ainda mais desconcertante quando julgávamos que os jovens já não estavam para os desaforos primários do machismo. No final de 2021, a Fundação Francisco Manuel dos Santos lançou um estudo feito em Portugal a partir de um inquérito a 2,2 milhões de jovens entre os 15 e os 34 anos. Entre muitos dados interessantes, percebemos que "há mais mulheres jovens a viverem na sua própria casa com o/a companheiro/a do que homens jovens (32% face a 25%)." Relativamente ao que ganha cada membro do casal: "Ele ganha mais do que ela, sobretudo entre os casais em que as mulheres são jovens (43% face a 36%). Os casais em que a mulher e o homem ganham o mesmo são apenas 19%." O costume.

Também, "não há uma discrepância significativa em relação ao pagamento das despesas comuns e da casa, mas há uma grande discrepância tanto quanto à partilha das tarefas domésticas como quanto à partilha do cuidado e educação dos filhos. Infelizmente, em ambos os casos, a realidade acaba por ser muito mais desfavorável para as mulheres (...)". O costume. A má notícia geracional? "Nos casais mais jovens, em que um dos membros do casal tem entre 15 e 24 anos, a proporção dos casais em que o peso das tarefas domésticas continua a estar do lado delas é muito elevada: em 39% dos casos, elas fazem mais do que eles."

Também sabemos que nas relações heterossexuais, em 43% delas os rapazes são mais velhos, 44% têm a mesma idade e apenas 13% são elas mais velhas. "É muito mais habitual que ele seja mais velho do que ela entre as mulheres jovens do que entre os homens jovens (52% face a 34%)." O costume. A novidade geracional? Elas têm mais escolaridade (34%) ou equivalente (53%).

"Nas relações amorosas fracassadas das mulheres jovens há mais do dobro de casos em que ela tinha um nível de escolaridade superior ao dele (35% face a 14% no caso deles)." Também a proporção dos que alguma vez foram infiéis é o dobro neles (14% perante os 8% de infidelidades femininas). O costume. E se não há diferenças de género no que respeita à frequência com que costumam ter relações sexuais, há muitas no número de vezes em que atingem o orgasmo: 63% dos homens atingem sempre face a 35% das mulheres." (...) Apesar disso, 62% delas declararam valores de muito altos satisfação com o companheiro, mais do que eles (57%). O costume.

A principal causa da separação dos jovens é o apagamento da relação ou o afastamento (56%)", são depois apontadas «as discussões constantes» (24%) e «o/a companheiro/a conheceu outra pessoa» (18 %). As causas relacionadas com a violência doméstica ou de género totalizam 9 %, sendo a mais frequente a violência psicológica. Os que sofreram violência física ou violência sexual por parte do companheiro são 2% e da companheira 1%. Na última relação amorosa, "as mulheres jovens experimentaram violência física, sexual ou psicológica em mais do dobro de situações do que os homens jovens (13% face a 6%)." E os jovens que sofreram violência física, sexual ou psicológica têm, na sua maioria, o ensino básico, e são o dobro dos jovens na mesma situação, mas com o ensino superior (11% face a 7%)."

Noutro estudo nacional sobre a violência no namoro, o Arthemis, promovido pela Umar, e lançado publicamente na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, no passado 14 de fevereiro, participaram jovens entre os 11 e os 25 anos, de todo o país e os dados mostram que os entrevistados não percecionam como sinal de violência no namoro: o controlo (53%); a violência psicológica (36,6%), e aqui não consideram violento "insultar durante uma discussão" 21,7% das raparigas e 41,3% dos rapazes); também a violência sexual (32%), e aqui não consideram violência "pressionar para beijar à frente dos amigos" 21.4% das raparigas e 40,9% dos rapazes); a perseguição (25,5%); a violência nas redes sociais (22,1%) e a violência física (9,6%). O estudo conclui o que, infelizmente, não nos espanta: "O género masculino apresenta maiores níveis de legitimação para todas as formas de violência no namoro quando comparado ao género feminino."

No total de jovens entrevistados 45,1% diz já ter sofrido violência psicológica, 44,6% controlo, 23,3 perseguição, 21,2 violência nas redes sociais, 14,9% violência sexual e 12,2% violência física. São números muito altos. "Com a exceção da violência física, nota-se maiores percentagens nos indicadores de vitimação entre jovens que se identificam com o género feminino, quando comparada com o género masculino."

Voltando ao estudo anterior, a discriminação pelo sexo é aquela em que há maior discrepância: entre as mulheres jovens, 34 % referem ter-se sentido discriminadas por serem mulheres, enquanto apenas 6 % dos homens jovens referem ter-se sentido discriminados por serem homens." Também "há mais mulheres do que homens a sentirem-se discriminadas tanto «pela idade» (17 % nelas face a 11 % neles) como «pela orientação sexual» (8 % nelas face a 5 % neles). Quando estas quatro situações são tidas em consideração de forma conjunta, conclui-se que há três vezes mais mulheres do que homens que se defrontaram com uma dupla ou tripla discriminação." O The New Times revelou que Lisa LaFlamme foi despedida da televisão, onde esteve décadas, porque deixou de pintar o cabelo, assumindo a sua melena branca, e lançou debates sobre sexismo e ageism pelo Canadá.

Restam poucas palavras que a evidência dos números não arrume. O feminismo é urgente porque, ao contrário de outras causas da desigualdade socialmente evidentes – o poder dos ricos ou dos brancos – parece que esta está a ser resolvida. Mas não. Veja-se o mundo muçulmano mais radical, se dúvidas houvesse. Apesar de alguns milagres do século XX, o machismo prevalece nas formas mais subtis e perniciosas, e as relações são o seu grande espelho e bandeira: diz-me como namoras, dir-te-ei quem és. As raparigas preferidas não são nem as mais inteligentes, nem as mais independentes, muito menos as mais ousadas, no sentido moderno da palavra. Helena Bonham Carter disse ao The Times que o colagénio não é a única forma de sexiness, quando "existe o carácter, a diversão, o mischief (uma espécie de travessura maliciosa) e o humor."

Por isso, tenho para mim a máxima que diz: faz à tua volta o que queres ver no mundo. Só recusando os clichés femininos os conseguimos combater. Temos de deixar de ser sempre a sacrificada, a dependente, a produtora, a mais nova. As leis ajudam, mas a mentalidade triunfa. O amor-próprio e a independência de carácter, a inteligência e a personalidade descartam a manipulação que quer mandar ou a dependência que quer ser mandada. Não conseguem sequer fazer de conta. Mas a maioria das raparigas continua a posicionar-se, inconscientemente, num de dois pólos opostos e discriminatórios: as que cuidam e as que são cuidadas. Dá menos trabalho repetir padrões, claro, mas só assim se ganha asas e se isola quem tem a falta de tomates para nos levantar a mão. Mesmo que isso signifique o que se diz, que os homens têm medo das mulheres fortes, isso só é verdade para os que não valem a pena.

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