Histórias de Amor Moderno: “O Adérito passou a noite de núpcias no hospital, a ser cosido a inúmeros ferimentos de vidros partidos”
“Transformou-se num monstro, uma espécie de Incrível Hulk: virou a mesa que estava mais perto, atirou-a ao ar, foi um disparate quase circense.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Quando saí da casa de banho, notei que havia confusão. Alguém gritava, talheres caíam ao chão, as pessoas levantavam-se das cadeiras. Olhei para a zona de onde vinha mais barulho - que visão. Um homem, que logo vim a perceber ser o noivo, estava em fúria e tentava destruir tudo; a cavalo nele, tentando imobilizá-lo, um tipo pequenino, com metade do tamanho do noivo, se tanto, que enfiou os braços por baixo dos do outro e lhe trancou a nuca.
Parecia uma daquelas brincadeiras americanas com os touros mecânicos, em que alguém muito bêbado tenta montar-se na máquina e ver quanto tempo aguenta aos solavancos. Só que, neste caso, não era nem brincadeira nem uma máquina: o homem enraivecido era o protagonista do próprio casamento; em cima dele, sobre o seu dorso, havia um peão inusitado, ligeirinho, que lá se ia aguentando como podia, prendendo-lhe os braços puxando-os para trás e trancando as mãos atrás da nuca, de maneira a que o outro não conseguisse agredi-lo, ou agredir mais alguém.
Aproximei-me da minha prima Liliana. Ela estava encostada ao balcão, estupefacta com tudo o que estava a acontecer, e também um pouco embriagada. Nós não éramos propriamente íntimas dos noivos, nem sequer particularmente próximas. Tínhamos feito um curso de formação com o noivo, o Adérito, depois de terminarmos o secundário. Era um curso de gestão, etiquetagem e distribuição de encomendas. Don’t ask. Em certas fases da vida, uma pessoas faz o que tem de fazer. Eu não ia para a faculdade, não tinha notas para entrar na pública, não tinha dinheiro para entrar na privada e não queria entrar no mercado de trabalho assim tão depressa. Tinha 19 anos. Queria viver um pouco mais a vida de estudante. Estava disposta a agarrar-me a todos os cursos que pudesse. A minha prima, mais velha do que eu, mas que tinha repetido um ano - foi primeiro para Humanidades, descobriu que não tinha vocação, mudou depois para Artes (descobriu que também não tinha vocação, mas já demasiado tarde), perdeu um ano -, alinhou na aventura e fomos juntas.
O Adérito não era um tipo particularmente esperto, mas era muito boa pessoa. Era, numa descrição genérica, um rapaz do campo: robusto, simples, queimado pelo sol no rosto e nos braços, branco como a cal no resto do corpo (do que eu lhe vira - e eu não lhe vi o corpo todo, todo, todo), de conversas diretas ou desinteressantes, mas quase sempre sorridente, amistoso, disponível. O Adérito era um rapaz perdido entre a rudeza do meio em que crescera e a gentileza do espírito com que nascera. Num outro quadro, noutra família, num ambiente diferente, poderia ter sido um dandy, um homem dado aos benefícios da contemplação e da arte do ócio. Infelizmente, o universo fora padrasto e destinara-o ao pasto e à ordenha, ao manuseamento de alfaias agrícolas e à condução de tratores nas hortas da família.
Tal como nós, o Adérito tentou fugir ao destino. E, tal como no meu caso e no da minha prima Liliana, a fuga foi curta e desinspirada. Ao fim de seis meses, findo o curso de gestão, etiquetagem e distribuição de encomendas, estávamos todos à porta do instituto a fumar cigarros (o Adérito não fumava, mas fazia companhia e, de vez em quando, pagava rodadas de minis) e a pensar no que íamos fazer a seguir. “E se fizéssemos uma viagem, uma road trip?” Fez-se silêncio. O Adérito, o rapaz que tratava de gado e que raramente falava, de repente, ganhara coragem e lançara uma ideia diante de todos. Aliás, nem era uma idea: era uma proposta de transgressão, como constatámos depois de ele detalhar um pouco mais. “Dizemos que o final de curso exige duas semanas de trabalho de campo, damos uma desculpa. Sei lá, dizemos que vamos para um armazém de treinos num sítio qualquer longe daqui, em Bragança, na Covilhã, por mim até pode ser em Barrancos.” Ele só queria que aquilo - o que quer que fosse “aquilo” (uma turma, um grupo, um clube de amigos falhados, um conjunto de pessoas jovens destinados a uma vida medíocre) - se prolongasse durante mais um bocadinho, que o nosso fim de adolescência durasse mais uns meses, ou uma semanas ou, vá lá, uns dias.
O resto da turma não quis saber da ideia, mas eu e a minha prima Liliana pensámos “que diabo, porque não?” E dissemos “‘bora lá, Adérito!” Para onde íamos? Tínhamos de decidir primeiro onde queríamos que fosse o suposto (e inexistente) armazém de treino - naquele tempo, um tempo de telefones fixos, era importante pensar nos indicativos, para não sermos denunciados pelo número que dávamos do alojamento onde íamos ficar. Decidimos que seria no litoral, qualquer coisa junto ao mar, mas não podia ser demasiado turístico, tinha de parecer que era mesmo um sítio sério, de trabalho e formação. Ninguém ia acreditar se disséssemos que íamos ter duas semanas de formação num armazém em Porto Côvo ou em Portimão. “Vamos para Aveiro”, disse a minha prima Liliana. E assim foi: Aveiro, siga.
Vivemos quase duas semanas inesquecíveis na costa de Aveiro. Entre acampamentos e noites em estalagens e motéis, houve um pouco de tudo. Conhecemos pessoas, aprofundámos a nossa amizade, partilhámos sonhos, memórias e objetivos de vida. Os objetivos, em qualquer dos casos, eram sempre humildes: ter um bom trabalho, ganhar o suficiente, constituir família. Foi então que o Adérito nos confidenciou que estava noivo. Disse-nos que namorava há já alguns anos com a mesma rapariga, um ano mais nova do que ele. “Nunca te vimos com ela”, disse-lhe eu. “Está na tropa”, respondeu. Chamava-se Márcia. Estava a fazer recruta em Mafra.
Quando, há pouco, eu disse que tinha visto partes do corpo do Adérito, não me referia a ter feito sexo com ele. Se dormimos juntos? Sim, mas literalmente. Fomos para a cama? Fomos, sim senhora. Dormimos na mesma cama, mais do que uma vez, eu, ele e a minha prima. Mas simplesmente por uma questão de gestão de gastos, pois nunca aconteceu nada entre nós. Nem poderia acontecer. O Adérito era uma alma boa. E nem eu nem a Liliana estávamos desesperadas ao ponto de sequer o tentar seduzir. Ou seja, não havia ali nem fome nem vontade de comer. Mas, durante 11 dias, houve amizade pura.
E foi exatamente essa amizade quase esquecida, coisa de anos atrás, que levou o Adérito a enviar-nos, às duas, um amável convite para o seu casamento com a incógnita e militarizada Márcia. “Vamos?”, “Vamos”, e lá fomos nós até um daqueles cenários dantescos onde as pessoas celebram os matrimónios, umas tendas envidraçadas, com um músico a cantar canções brejeiras enquanto cascatas de camarões cozidos ameçam desabar sobre mesas fartas, muito fartas, assim que o gelo começar a derreter. E esse momento não há de tardar, tal é o calor dentro dessas tendas gigantescas e o atraso desde a cerimónia religiosa, agravado pelas sessões de fotografias no jardim, e aqui, e ali, e agora acolá, de modo que nos sentámos à mesa para almoçar já passava das seis da tarde.
A mesa da cascata de camarões foi, curiosamente, a primeira a voar. O rapaz pequenito que segurava o Adérito, quase às cavalitas dele, viu-se obrigado a largar o noivo. A mãe do noivo, vendo o filho manietado daquela maneira, entrou em pânico e aproximou-se, bateu no rapaz que o tentava dominar, “para, para com isso, larga o meu filho, larga o rapaz”, e batia-lhe assim com a mão no ombro, como se sacudisse moscas. Tudo isto era muito cinematográfico, porque o Adérito não parava: rodopiava, mexia-se para um lado e para o outro, tentava livrar-se do outro que trazia às costas como se, sacudindo-se, tentasse livrar-se de um parasita.
Eu e a Liliana, já um bocadinho com os copos, estávamos então ao balcão, a beber um whisky. E a mãe do Adérito prosseguia, “larga-o, larga o meu filho”. O rapaz que o segurava ia tentando explicar que, se o largasse, irado como o Adérito estava, aquilo tinha tudo para correr mal. Mas a senhora não atendeu à explicação e continuou a dar-lhe safanões no ombro e nas costas. Até que ele cedeu e disse “ok, eu vou largar, mas depois não se queixem”. E largou. O Adérito transformou-se num monstro, uma espécie de Incrível Hulk: virou a mesa que estava mais perto (a tal da cascata de camarão - que estava repleta de mariscos, já agora, enfim), atirou-a ao ar, foi um disparate quase circense. Depois foi a correr direito ao fotógrafo, que ainda se estava a levantar, mas que logo se desviou, e, num gesto que ninguém poderia antecipar, em vez de placar o artista, fletiu para a esquerda, acelerou e atirou-se contra uma das vidraças.
O som do vidro a estilhaçar-se e do Adérito a cair lá em baixo - uns três metros abaixo - foi assustador. Chamaram ambulâncias, bombeiros, alguém que acudisse, e as ambulâncias vieram. O Adérito passou a noite de núpcias no hospital, a ser cosido aos inúmeros ferimentos que os vidros partidos fizeram ao cair-lhe sobre o corpo. Foram mais de 130 pontos, no total, vim a saber mais tarde. O que não é assim tanto, se pensarmos na quantidade de golpes que ele fez no corpo.
Depois de ele saltar pela vidraça, e enquanto todos entravam em pânico, o rapaz que antes tentara prendê-lo e impedir a desgraça, veio até ao balcão. Não quis mais saber do noivo, “queriam que o largasse, aí têm: larguei-o - correu lindamente”, exclamou, com ironia ressentida. Pedi-lhe que me explicasse o que acontecera. O que é que podia ter levado o Adérito, uma alma gentil, a fazer tal coisa? Explicou-me que, quando o fotógrafo chegou com as fotos, havia algumas em que o decote da Márcia sobressaía - mas não por culpa do fotógrafo: a noiva tinha o peito que tinha e o decote era o que era. Só que o Adérito não entendeu assim a situação e, como já tinha bebido um copo ou dois ou três, deu um murro no fotógrafo que o deitou logo ao chão. “Foi a escorregar sobre o linóleo”, detalhou o pequeno quase-herói, com visível gozo. “Saltei para cima dele para que ele não matasse o fotógrafo.” Nesse aspeto, o objetivo foi conseguido.
Só falei com o Adérito mais uma vez desde a sua festa de casamento. Meses mais tarde, mandei-lhe mensagem, quis saber como é que estava tudo. Contou-me que a Márcia estava grávida e que vida corria bem, “muito bem, mesmo”. Nem uma menção ao episódio do esmurramento e da vidraça e das costuras no hospital. Aparentemente, a vida continuou. Ainda bem. Fiquei feliz pelo Adérito.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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