Flor do Cacto

"As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher"

"Não é novidade o carácter machista e misógino disseminado pela Igreja Católica. Aquilo que espanta é continuarmos a perpetuar este tipo de ideias em 2022".

'Dormindo com o Inimigo' (1991)
'Dormindo com o Inimigo' (1991) Foto: D.R
01 de setembro de 2022 Cláudia Lucas Chéu
Não, não se trata de uma frase vinda da longínqua Idade Média; foi proferida no passado dia 22 de Agosto durante a Eucaristia Dominical transmitida pela RTP. Podia ser para fazer rir, inserida num contexto humorístico de carácter duvidoso, mas não foi o caso. A frase saiu da boca de uma fiel praticante da Igreja Católica, uma senhora de cabelo armado vestida de amarelinho, durante a leitura de uma passagem da Epístola aos Colossenses, onde também se pode ler: «Esposas, sede submissas aos maridos, como convém no Senhor.» E na Primeira Epístola a Timóteo também poderíamos encontrar, por exemplo: «A mulher receba a instrução em silêncio, com toda a submissão.»

Ora bem, não é novidade o carácter machista e misógino disseminado pela Igreja Católica. Aquilo que espanta é continuarmos a perpetuar este tipo de ideias em 2022 e, neste caso, numa transmissão efectuada por um canal do Estado que, que eu saiba, é laico. Esta é outra questão que me encanita há anos: se o Estado é laico, por que raio continua a transmitir cerimónias religiosas na emissora pública? E porque celebramos feriados ligados a eventos da Igreja Católica e não a outro tipo de religiões? Se a senhora de cabelo armado vestida de amarelinho lesse orgulhosamente a Epístola aos Colossemses durante uma reunião da Tuppeware, seria algo que não me diria respeito. A questão é que fez a sua leitura orgulhosa de tamanha barbaridade em pleno canal público com uma audiência razoável, sobretudo nas zonas menos letradas do país.

Devíamos pensar na gravidade de contribuir através de um canal público para a ignorância das pessoas. Continuar a perpetuar a ideia de que a mulher deve submeter-se ao marido porque este é a cabeça da mulher é algo aberrante. Tenho dificuldade em usar as palavras certas para falar sobre isto, porque se por um lado a Bíblia é uma obra que merece todo o respeito - a Bíblia é o Livro - , por outro lado sempre a vi como uma obra de ficção que se insere no género suspense, com frases ao estilo do filme Dormindo Com o Inimigo, em que sentimos sobrevoar desde a génese da obra um ser grandioso, atento mas punidor. Se for lida à letra, a Bíblia mete medo em muitas passagens, e isso significa que é uma bela obra de ficção. Levar o que lá está à letra, sem pensar que quase tudo é uma metáfora ou puro entretenimento, é muito perigoso. Quem diz a Bíblia, diz qualquer outro documento redigido pela Igreja Católica; digamos que são muito criativos e versados na arte do horror.

Este momento na Eucaristia de dia 22 realizado pela senhora vestida de amarelinho tem um efeito embrutecedor nas mentes menos elucidadas. Obviamente, nenhuma mulher se deve submeter ao marido porque ninguém tem a cabeça do outro. Cada um tem de pensar per si, até mesmo Deus que, sob os olhos da Igreja Católica, por vezes mostra tão pouca cabeça. 

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.
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