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Anjos, Joana Marques e José Sócrates: A ré declara-se culpada de entretenimento com casos de tribunal

No último mês, o caso que opôs Joana Marques e Anjos e a Operação Marquês prenderam a nossa atenção com liveblogs ao minuto nos jornais nacionais. É essencial saber o que se passa nos tribunais, mas será problemático fazer disso entretenimento?

Os julgamentos da humorista, dupla musical e ex-primeiro ministro têm marcado a atualidade
Os julgamentos da humorista, dupla musical e ex-primeiro ministro têm marcado a atualidade Foto: @joanamarquespic/@anjosoficialpt/Getty Images
11 de julho de 2025 às 17:43 Catarina Moura

Toda a vez que abri um liveblog do julgamento que ouvi: O Big Show está no ar/ é nele que eu vou me ligar. A música não se ficava pelos primeiros versos do genérico do Big Show Sic. Continuava até conseguir fazer os 100 metros obstáculos de banners dos jornais online. Só parava quando começava a ler o texto, mas em vez de terminar com os icónicos trompetes do refrão, ouvia-se Sérgio Rosado a chamar os canhões do hino nacional: bom bom boom bomm boooom. Foi assim que soube que esta banda sonora era uma invenção da minha cabeça.

Vejo no Big Show Sic um elo místico entre a acusação e defesa deste julgamento: os Anjos atuavam, Joana Marques assistia religiosamente — imagino esta cena premonitória. Mas nem eu sou psíquica, nem o Big Show Sic é os Simpsons que merecemos. Se o Big Show adivinhou alguma coisa sobre o futuro foi a nossa predileção pelo que é vibrante. O símbolo máximo do entretenimento para uma pessoa que cresceu nos anos 1990 tocava na minha cabeça porque aquele liveblog de um julgamento ecoava como entretenimento.

A cidadã que há em mim indigna-se com espectadora que cohabita com ela. Chama-lhe alienada, cospe-lhe na testa por fazer refresh nos relatos ao minuto, praticamente divertida com um julgamento que tornará mais clara a posição do Estado sobre a liberdade de expressão. Retrai-se a espectadora, põe a mão na consciência: é preocupante que um ato tão sério como a aplicação do Estado de direito democrático seja apetecível e viciante ao ponto de se tornar entretenimento?

Com o início do julgamento da Operação Marquês, a pergunta reapareceu mais inquietante: José Socrates, acusado de crimes de corrupção, branqueamento e fraude fiscal, montou um espetáculo de perturbação sucessiva dos trabalhos do tribunal, de confronto com as juízas e de acusação pessoal a procuradores do Ministério Público, de antagonização da comunicação social. Vejo as mesmas técnicas de perturbação das instituições usadas pela e que foram premiadas nas eleições.

Sócrates tem consciência do sensacionalismo que causa; deixar-nos expectantes em relação ao que vai fazer a seguir não é involuntário. Ao contrário de Sérgio Rosado a lamentar-se de uma crise de acne ou de Nelson Rosado a garantir: “Nós dissemos egrégios, sotora”. Ele não sabia que nos ia agarrar com frases dignas de um conto de Luísa Costa Gomes.

A mediatização é uma consequência natural de um bem inquestionável: as audiências dos julgamentos têm de ser abertas ao público. A justiça não se faz à porta fechada ou seria fácil desconfiar de que é justa. Com exceções de casos com menores ou em que a privacidade das pessoas envolvidas esteja em causa, o acesso ao que se passa nos tribunais é essencial ao escrutínio e à confiança na aplicação da lei.

A mediatização dos casos pode, no entanto, servir uma estratégia, como explica a advogada e cronista da Sábado, Leonor Caldeira: “O pedido do advogado de Sócrates está inserido numa estratégia de defesa de entrar em confronto com o tribunal, procurar desestabilizar os trabalhos, afirmar que todo o processo é ilegítimo. A ideia é transformar num circo, num caos. O pedido da defesa da Joana [para fechar a audiência ao público] foi super atípico e deixou vários advogados confusos... Não tem fundamento legal e claro que foi rejeitado”, explica.

Para Leonor Caleira os dois casos portugueses em causa são atípicos no seu valor mediático. “A medida em que cada um beneficia da mediatização é difícil de avaliar em teoria, porque cada caso é muito diferente do próximo. Acho que a Joana Marques, por exemplo, está a beneficiar imenso; já Sócrates, nem por isso”, analisa a advogada.

O outro lado da moeda é a capacidade da opinião pública influenciar o desfecho dos casos. Para que haja justiça, o tribunal deve aplicar a lei apenas com base no que fica provado nas audiências. “Como aconteceu no Depp v. Heard: a opinião pública contra Amber Heard era avassaladora e teve influência no desfecho e na sua vida privada”, recorda Leonor Caldeira o julgamento 2022 que opôs os atores Johnny Depp e Amber Heard e foi transmitido em direto. Este era o objetivo de Sócrates: queria, disse, uma transmissão “sem edições” por parte dos jornalistas.

As razões para o mediatismo destes dois casos são óbvias e o interesse do público em conhecer os seus pormenores e o seu desfeito também: daqui se vão retirar conclusões sobre como o Estado trata os humoristas e a corrupção. Mas casos de gente anónima também entretêm, têm o seu público. Rui Cardoso Martins lembra como há uns anos se dizia que ir assistir a sessões de tribunal era “melhor do que ir ao teatro”.

O escritor e argumentista mantém, há mais de 20 anos, uma crónica de tribunal — primeiro no jornal Público e atualmente na TSF e Jornal de Notícias. Assiste às sessões de pessoas tão anónimas que não lhe interessa como se chamam. “Estou à procura, simplificando, de histórias humanas do meu tempo”, resume, “de poder divulgá-las e contá-las. É a matéria prima da humanidade, de que se faz o jornalismo e a literatura”, aprofunda.

É a tragicomédia que gostamos de ver nos livros, na televisão ou no cinema. Como haveríamos de ser imunes a ela numa sala de audiência? “Um tribunal é um bocadinho um teatro: as pessoas estão viradas para um sítio, há diálogos, perguntas e respostas, momentos solenes. Antes muitas pessoas, não tendo dinheiro para ir ao teatro, iam ao tribunal. Agora parece que já não há muitos, sou o último resistente”, comenta.

É precisa a mão do cronista e a publicação — a mediatização — para que estes casos, mundanos aos olhos de quem não está metido neles, tornem retratos do país e nos digam algo sobre o nosso tempo. Não bastam os acórdãos fechados nos tribunais. A reunião de algumas das crónicas de Rui Cardoso Martins nos dois volumes de Levante-se o Réu (Tinta-da-China) permite conhecer os efeitos da crise e da Troika em Portugal, com os despedimentos, as crises familiares da época; mostra amores e traição, inveja, roubo; expõe as falhas do sistema e as situações em que justiça foge aos pobres. “Agora estou a começar a ver os efeitos do covid e do confinamento”, diz sobre as sessões mais recentes a que tem assistido.

Rui Cardoso Martins interessa-se menos pelo homem que roubou um banco e mais pelo que roubou um amigo: “Como é que ele vai depôr em frente ao amigo?”, pergunta-se. No ano em que o hacker Rui Pinto prestou declarações no caso mediático que o acusava de piratear emails do Benfica, o cronista trocou essa audiência pelo caso de um feirante a quem roubaram a carrinha com que trabalhava e que acabou por encontrar vandalizada. “O homem chorou porque lhe tinham arrancado a cabeça às bonecas que vendia. É outro plano ver e ouvir isto”, exemplifica.

Sem efeitos sonoros ou especiais, nem flashbacks ou fast forwards, figurinos e adereços, um julgamento pode ser um miradouro para as complexidades do ser humano, para as suas nuances e truques, para as suas fraquezas e bondades. Vê-se o que a humanidade faz e como o tempo passa por ela; como se vai aplicando a lei e, com mesma empatia de quem vê televisão, construímos uma moral pessoal. Não é uma vista alta, temos de estar ao mesmo nível. “Penso sempre que podia ser eu”, diz Rui Cardoso Martins. “As pessoas fazem-se humanas também com o entretenimento”, atira no meio da nossa conversa ao telefone e descansa-me as preocupações. Nem o entretenimento é sempre estéril, nem eu só uma voyeur salivante. Sempre se aprende qualquer coisa. Com o olhar certo, tudo isto é instrutivo.

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