Sandra Felgueiras: "Afronto os poderes instituídos e conto as histórias que devem ser contadas."
Depois de 22 anos na RTP, a jornalista assumiu a direção da revista SÁBADO logo no início deste ano. Uma vez mais, promete não dar tréguas às injustiças.

Move-a a curiosidade e um sentido inato de justiça. Sandra Felgueiras, 45 anos, um dos rostos mais conhecidos da informação televisiva em Portugal, há muito que se habituou à ideia de que o reverso de uma certa popularidade é a polémica e a pressão exercida por quem se sente posto em causa. Mas não desarma. Depois de 22 anos na RTP, onde com o programa Sexta às 9 chegou a atingir um share semanal de 800 mil a 1 milhão de espetadores, aceitou dirigir a revista SÁBADO, que quer ver adaptada aos novos modos de informar. É ainda diretora-geral adjunta, com o pelouro do jornalismo de investigação em todas as marcas do grupo Cofina e coordenadora do programa Investigação SÁBADO, que vai para o ar todas as sextas na CMTV. Acredita no poder da liderança feminina, que conheceu muito jovem através da mãe, a autarca Fátima Felgueiras, e assume ter na família e na natação os seus balões de oxigénio. Durante a produção fotográfica para a Máxima, solta-se e brinca com os outfits como uma miúda sem preocupações.
Pela segunda vez consecutiva, o portal Executiva considerou-a uma das mulheres mais influentes do país. O que significa isso para si?
Vejo-o como o reconhecimento justo de um trabalho meritório e importante para o país, que é este de afrontarmos os poderes instituídos e de contarmos as histórias que devem ser contadas. É também um incentivo para que mais jornalistas sigam esse caminho. É sempre possível fazermos mais e melhor e, como diretora da revista SÁBADO, procuro incutir na minha equipa esse espírito de luta, essa necessidade de procurarmos fazer as perguntas certas. Vivemos num momento em que muitas vezes as pessoas evitam fazer as perguntas certas apenas porque estamos num país muito pequeno, em que toda a gente está a pensar no dia de amanhã, numa conjuntura de crise a que a comunicação social não escapa. Mas vale a pena investigar até ao ínfimo pormenor, sobretudo aqueles que têm o poder de decidir as nossas vidas.


É também uma responsabilidade acrescida?
Claro que sim. Eu costumo dizer que à máxima liberdade corresponde a máxima responsabilidade. Também temos de conhecer quais são os limites, que são o respeito pela dignidade da pessoa humana e a existência de contraditório. Orgulho-me muito de nunca ter tido um processo em tribunal que me levasse ao banco dos réus, sou jornalista há 22 anos, 10 dos quais no Sexta às 9, e, por muitos processos que me tenham tentado mover, nunca passaram do Ministério Público. Mas há muita coisa na Lei de Imprensa que tem de ser alterada, nomeadamente a questão do direito de resposta que, tal como está, permite a alguém, que se recusou a falar com o jornalista durante a reportagem, vir depois dizer o que lhe apetece, mesmo que seja completamente mentira. Isto é completamente obsoleto porque, em vez de assegurar o direito do público a ser informado, só permite que ele seja intoxicado.
Depois de 22 anos na RTP, surge o convite para dirigir a SÁBADO e assumir responsabilidades quanto ao jornalismo de investigação em todo o grupo Cofina. O que significa este desafio?
É algo que eu nunca imaginado, até me ter sido colocado no ano passado. Espero que seja um momento marcante e inovador não só na minha vida, como na vida da revista, do grupo Cofina e até do próprio país. Temos de nos convencer que o mundo mudou, que os nossos filhos já não consomem notícias da mesma maneira que nós, caminhamos para uma sociedade absolutamente digital em que tudo é imediato. Só sobreviverão as newsmagazine que se adaptarem aos novos tempos. O meu objetivo é, por conseguinte, transformar a SÁBADO numa multiplataforma, muito presente no online e na televisão, chegando a vários públicos, muito diferentes entre si. Orgulho-me de que, nos primeiros três meses do ano, e segundo os últimos dados da APCT (Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação), a SÁBADO tenha ultrapassado a Visão no papel e no online, e tenha aumentado 130% as assinaturas digitais.

E deixar a RTP, como foi?
Quando estamos durante 22 anos numa casa, é como se essa casa fosse a nossa família. Mas havia um desinvestimento muito grande no jornalismo de investigação e eu senti que era preciso dar um passo em frente, para mim e para aqueles que me acompanhavam. Julgo que a Cofina, em particular a SÁBADO, é o lugar certo para o fazer. Já criei o grupo de investigação SÁBADO, se quisermos uma extensão do Sexta às 9, um produto jornalístico puro e duro, exibido em prime time na CMTV, que advém de trabalho próprio que fazemos para a revista. Passa à sexta-feira às 21h30. Isto porque temos de estar conscientes de que a televisão é um mundo de hábitos, em que as pessoas associam determinadas figuras a certos horários. Eu acho que realmente sou a Sandra das sextas-feiras, os meus amigos brincam a dizer que sou a Sandra às 9. Aqui, como aconteceu na RTP, o nosso objetivo é ajudar a corrigir as injustiças que perduram, até porque a justiça é lenta, muitas vezes não chega em tempo útil de fazer as pessoas saírem dos becos sem saída em que se vêem enredadas.

Estamos num momento em que se está a definir o que será o Jornalismo do futuro?

Sim, em Portugal e no mundo. O fator relevância advirá de nos sabermos situar no sítio certo, à hora certa. Eu não sou uma pessoa pessimista. Não vale a pena chorarmos pelo leite derramado, a revolução tecnológica muda a nossa vida e a Comunicação Social tem de se adaptar a essa imediatez em que vivemos. Não sei se daqui a dez anos haverá telejornais como os que temos hoje, cujo formato foi criado para outra sociedade. O futuro passa pela responsabilização dos conteúdos alternativos. Ao mesmo tempo que vivemos esta voragem informativa, vivemos o reverso da medalha que são as fake news. Há um conjunto de pessoas que não estão minimamente habilitadas a fazer informação que baralham o telespetador e o leitor. É isso que temos de combater.
Houve momentos em que sentiu que o seu trabalho ajudava a mudar (e a melhorar) a vida de alguém?
Senti isso em muitos momentos e com muita gente: lembro o caso de Leonel Carvalho, que estava preso injustamente em Espanha por um crime de tráfego de droga no Brasil que nunca cometeu e que continuava preso por causa de um erro processual. Também Rosa Silva, que esteve presa no Bangladesh até ao ano passado sem acusação, sem culpa formada, apenas porque o Bangladesh é um dos países mais corruptos do mundo e alguém pagou para que ela se mantivesse ali. Na sequência do nosso trabalho, o Ministério dos Negócios Estrangeiros percebeu a gravidade da situação e decidiu agir. Também lhe posso falar do Leandro Lopes Monteiro, um jovem de 16 anos, que estava preso por um crime que não cometeu. Uma vez mais era um jovem institucionalizado, a quem ninguém daria voz. A primeira vez que o vi estava preso sem sapatos, em Leiria. Só depois de três reportagens, em que insistimos à monstruosidade que era tudo aquilo, é que o caso se resolveu e o Estado português foi obrigado a indemnizar o jovem. Recordo-me muito bem que quando visitei o Leandro na prisão, ele nunca tinha recebido uma visita da própria mãe porque ela não tinha dinheiro para ir de Faro, onde morava, a Chaves, para onde o Leandro foi enviado em primeiro lugar, e depois a Leiria. Ele foi absolvido totalmente mas aquele trauma já ninguém lhe tira. As melhores experiências que eu tive na vida foi quando dei voz a quem não a tinha e fez-se justiça. Isso e travar casos de corrupção como o do lítio em Montalegre. Como se recordará, fui insultada publicamente mas considero que esses insultos são as minhas coroas de glória.


Como lida com as pressões?
Só é pressionado quem se deixa pressionar. Recebo muitos telefonemas a que respondo sempre da mesma maneira: o nosso trabalho está a ser feito, se quiser falar connosco, tenho todo o gosto em ouvir a sua versão dos factos. Somos transparentes e rigorosos e exerço esta profissão olhando para todos da mesma maneira. Mas são muitas as pessoas que pedem para falar sob anonimato, as pessoas sabem que sofrem represálias.
E quando as pressões são internas?
São um absurdo total.
Alguma vez as sentiu?
Sim, foi público que, por causa da investigação que fizemos sobre o lítio, me senti desapoiada pela Direção de Informação da RTP, nomeadamente pela Maria Flor Pedroso e pela Cândida Pinto. Mas quando temos a consciência tranquila, temos de nos manter firmes. E valeu a pena, o caso foi discutido no Parlamento e o programa foi transmitido.
Exemplos de liderança feminina
Como é que o Jornalismo aconteceu na sua vida?
De forma muito precoce. Eu admirava muito o Carlos Fino, as reportagens que ele fazia em Moscovo, por exemplo. Admirava a ideia de contar histórias vindas de muito longe e atraía-me a possibilidade de viajar. Sou muito curiosa e acho que o mais importante num jornalista é essa curiosidade. No dia em que se apaga essa chama apaga-se tudo. Quando estava na Escola Primária disse que queria fazer uma entrevista ao Presidente da Câmara, a professora ficou muito surpreendida. Mas eu fui com um gravador manhoso e não gravou. E, com uma lata descomunal, disse o que tinha acontecido e lá fui outra vez. Quando chegou a altura de escolher o curso, só tive pena de deixar para trás a Matemática.
Quais são os seus "balões de oxigénio" para uma vida profissional tão intensa?
Eu tenho muita vida para além do meu trabalho, procuro que a minha filha e a minha enteada façam as opções certas e tenham o coração no lugar certo. A Sara, que é a minha filha, sabe que não pode ser beneficiada nem prejudicada por causa do trabalho da mãe. Já me bastou a mim, lidei com isso e não gostei. Elas é que têm de fazer o caminho delas, ensino-as a afastarem-se de companhias tóxicas porque acho que é o meu dever. De resto, tento viver com a minha tranquilidade. Eu levo tudo com muita intensidade, no trabalho e nos afetos. Há os que precisam do yoga, eu preciso da minha intensidade emocional. Gosto muito de nadar, fui atleta de pólo aquático e gosto muito de água. Sou doida por praia.
Acredita que há uma forma feminina de exercer a liderança?
Acredito, sim. Com a minha mãe aprendi que ninguém domina pelo medo. Hoje considero-me uma boa líder porque procuro exercer aquilo a que se chama de inteligência emocional. Os homens tendem a liderar de outra forma porque eventualmente são mais pragmáticos, as mulheres olham com mais profundidade para o que se passa com os membros das suas equipas. Na verdade, nós pensamos de forma diferente e para muitos homens essa forma é pior do que a deles, mesmo que não o digam.
O machismo perdura, agora menos verbalizado, mas implícito e subjacente?
Justamente. Está mais nos gestos e nas atitudes do que nas palavras. Eu vi isso desde muito cedo quando a minha mãe foi Presidente da Câmara. Nos anos 80, só havia homens na Política, mas a minha mãe era uma lutadora, fazia coisas na cidade, coisas que nunca lá tinham existido como as piscinas ou o British Council, que foi ela a levar para lá. Eu bem via a hostilidade latente que existia por ser mulher. Eu vejo-a como uma mulher à frente do seu tempo, sobretudo no lugar onde vivia. Nunca lhe perdoaram isso. A minha mãe passou as passas do Algarve para provar a sua inocência. Foi totalmente absolvida mas, para muita gente, no nosso país, ela continua a ser culpada de crimes que nunca cometeu.
A sociedade ainda escrutina mais as mulheres?
Muito mais mesmo. Repare neste assoberbamento das mães. O mundo tal como está obriga as mulheres a quase escolher entre ser boa mãe e boa profissional. E não se pode obrigar quem quer que seja a fazer essa escolha. É uma crueldade. Os filhos merecem viver com a mãe, mas as mulheres também têm direito à sua realização profissional. Eu insurjo-me muito contra isso porque sei o quanto me saiu do pelo quando a minha filha era mais pequenina. Mas valeu muito a pena. Hoje sei que a maternidade me tornou melhor pessoa.
Créditos
Fotografia: Ricardo Lamego
Styling: Marina Sousa
Maquilhagem e cabelos: Rita Fialho

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