Carolina Piteira: "Lá fora não há tanto preconceito pelo facto de ser mulher nem por ser uma jovem artista"
"Know Your Place" é a mais recente exposição da criadora portuguesa, um trabalho de reflexão sobre a carga emocional e física que as mulheres carregam ao longo da vida, por vezes durante gerações, mas que também celebra a sua força e determinação.

Porque é urgente, ainda, questionarmo-nos sobre o lugar da mulher no mundo? A responsabilidade que carrega, face ao homem? Este artigo inicia-se com uma pergunta-reflexão, do mesmo modo que a nova exposição de Carolina Piteira começou com uma questão desconfortável, que a levou a mergulhar no tema que pinta as suas obras mais recentes: os pesos que as mulheres carregam ao longo da vida, sejam eles físicos ou mentais, responsabilidades ou expectativas impostas pela sociedade para serem boas mães e boas profissionais, cingindo-as a esses papéis. Know your place/No teu Lugar propõe uma reflexão sobre esse peso, essa responsabilidade.
Carolina Piteira, artista portuguesa reconhecida internacionalmente e mãe de dois filhos pequenos, tinha acabado de ter o segundo bebé na altura em que o Central Tejo/Museu da Eletricidade recebia a sua exposição Out of Time, isto em 2022. A dado ponto, após uma visita guiada, um colecionador perguntou a Carolina quando é que ela iria parar de ter filhos e voltar ao trabalho, uma frase que a apanhou desprevenida, explicou a artista na apresentação dos seus novos trabalhos, expostos agora na baixa lisboeta, onde a Máxima esteve presente.

"Tinha estado seis meses a um ano a trabalhar intensamente naquilo e com dois bebés, um com um ano e outro com dois meses", conta. "Foi uma altura de que eu me orgulho muito, que foi de muito trabalho… Senti que o comentário não era apropriado para aquele momento, e isso deixou-me triste. Como foi uma pergunta que me carregou muito nos ombros, e cada vez que vinha para o atelier não me esquecia disso, pintei este quadro com esse título", diz, referindo à obra que deu início a tudo, uma pintura de um vaso com flores. "Surgiu quase como uma terapia, porque depois de eu colocar aquilo [que sentia] em tela, isso deixou-me de pesar, e soube-me tão bem, que depois passei para outras perguntas que também já me fizeram a nível de carreira, que eu sinto que me fazem por eu ser mulher."

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Do grande vaso, no qual representou "tudo aquilo que estava a carregar, mas também o que me motiva", nasceram três potes mais pequenos, inspirados em outros comentários que foi recebendo como, e apenas para aguçar a curiosidade ao leitor, "não penses que vais vender quadros só porque tens olhos bonitos", que lhe foi dito há muitos anos.

"Depois destes jarros, destas perguntas, deixei de olhar para mim e comecei a olhar para as outras mulheres, e então esta primeira parte retrata mulheres que carregam pesos nas costas, na cabeça ou nas mãos, representados por cestos de palha, e todas estão a trabalhar. Têm muita cor, são pinturas com muita vida, mas depois conseguimos perceber que há realmente aqui uma carga que não conseguimos logo ler quando olhamos para a pintura no primeiro instante", esclarece Carolina, que utiliza um leque extenso de materiais para dar vida aos desenhos que imagina, de acrílicos a elementos táteis em colagens, como palhinhas, tecidos ou notas monetárias, materiais estes que aqui também ganham uma nova dimensão.

"Nesta exposição, pela primeira vez, dei maior ênfase às colagens, porque também elas pesam, literalmente. Uma das coisas a que achei graça foi a ideia de uma pessoa estar em broken pieces (aos pedaços). E quando estava a fazer as colagens estava a pensar ‘é engraçado’, porque o próprio jarro (da primeira obra) podia ter sido feito apenas com uma colagem, mas foi feito com várias para dar essa ideia de que ele está todo desconstruído mas que funciona, como nós às vezes não estamos a 100%, mas temos de continuar o nosso caminho. Foi essa a ideia aqui usada."
Ao longo da narrativa, construida em conjunto com Inês Pinto e Sousa, curadora independente responsável pelos impactantes parágrafos que acompanham as obras, o espectador observa estas trabalhadoras a largar os cestos que carregam - sinónimo das suas preocupações infindáveis - e a perder a sua cor, pois ela também fala alto, numa viagem libertadora em direção à natureza, sempre desenhadas de costas, sem rosto. No fim já só vestem branco, como se se tratassem de uma página intacta, e caminham até ao mar, símbolo da purificação e liberdade.


"Esta exposição não é sobre mim", realça Carolina, mas sim sobre "experiências gerais que tocam a maior parte das mulheres", umas mais do que outras. Por isso "representei muito mulheres da América do Sul e de África, porque são quem têm estes pesos (dinheiro, filhos, comentários indesejados...) ainda mais carregados do que nós na Europa, e conseguem fazê-lo com uma graciosidade imensa, e acho que é necessário serem valorizadas, e muitas vezes não o são".
"A mudança tem de começar em nós, se não gostamos de ouvir um determinado comentário temos de marcar a nossa posição e saber responder ou não aceitar. Este é um trabalho muito feminista", confessa. "Desde que fui mãe fiquei com ainda mais admiração pela figura feminina, acho que somos absolutamente extraordinárias. Conseguimos fazer muita coisa e temos de celebrar isso, e temos de nos celebrar."


A mulher enquanto artista em Portugal - à conversa com a Máxima
Como se sente enquanto mulher e artista na indústria da arte em Portugal?
Acho que o ser-se mulher é uma coisa transversal a todas as profissões. Há umas que ainda são piores porque são mais específicas para homens e as mulheres são vistas de parte. São uma minoria e não lhes dão crédito pelo trabalho delas. Na arte já não é tanto assim. Há mais mulheres artistas, temos a Paula Rego que teve imenso sucesso e a Joana Vasconcelos que é uma super artista da qual nos deveríamos todos orgulhar, mas ainda há muitos mais homens a trabalhar a arte. E se formos às grandes leiloeiras lá fora, como a Christie's, os trabalhos que são mais cotados são de homens.
Sente uma recetividade diferente quando expõe o seu trabalho em Portugal comparando com a reação no estrangeiro?

São mercados completamente diferentes. Lá fora não há tanto preconceito pelo facto de ser mulher nem pelo facto de ser uma jovem artista. Lá, tentam apostar e acreditar no jovem talento. Cá, as pessoas acham sempre que o artista vai desistir se é jovem. Há muitos travões que nós mulheres temos que os homens não têm e acho que vão continuar a haver, espero que cada vez menos, mas é isso que acho que dificulta muitas vezes a nossa vida, porque as pessoas acham que podem dizer qualquer coisa. "Com essa cara laroca, vais vender muito melhor", já disseram isto a amigas minhas, e num contexto de trabalho não se podem dizer estas coisas. Não podes continuar a objetificar as mulheres. A mulher não é um objeto. Se estamos a falar de trabalho, não podes estar a falar da aparência física da mulher, porque tu não fazes isso a um homem. A forma como estás vestida interessa mais do que como um homem vai vestido… aquilo tudo não se aplica da mesma forma aos dois géneros.

A exposição Know Your Place/No teu Lugar retrata mulheres que largam os pesos que lhes são impostos pela sociedade, responsabilidades e papéis, em busca de um lugar onde se sentem leves e elas mesmas. Existe ainda a ideia de que a mulher só pode estar dentro de uma caixa. No seu caso, ora calçava os sapatos de artista, ora de mãe. Ainda temos de nos questionar sobre o lugar da mulher no mundo?
Essa vai continuar a ser uma questão enquanto houver injustiças. A sociedade em si, as regras da sociedade, a forma como está construída, não beneficia a mulher relativamente ao homem, e estamos numa luta para haver essa tal igualdade, que acho que está a acontecer, mas que é preciso ser muito falada até as coisas finalmente ficarem equilibradas.
Como é que as suas experiências em Portugal e no estrangeiro influenciaram o seu trabalho e a forma como vê a arte?
Acho que a arte é transformadora e espetacular, porque conseguimos mudar o mundo através dela. Seja uma pintura ou uma música, a arte é uma linguagem universal. Eu pinto uma coisa aqui, e noutra parte do globo alguém vai conseguir olhar para aquele trabalho e vai interpretá-lo. E essa comunicação acho que é absolutamente extraordinária e única, porque conseguimos chegar a um mundo inteiro. A história da arte acaba por representar gerações e vai mostrar ao futuro a forma como nós víamos o mundo, e acho que isso é extremamente extraordinário. E por causa disso, também, acho que é importante sempre, em qualquer área, passar uma mensagem. As coisas não podem ser só bonitas (...) já que temos essa facilidade, temos também a responsabilidade de passar uma mensagem que seja importante.
A arte também tem de ser acessível. Queria que as pessoas conseguissem perceber a narrativa da exposição. Porque há muitas pessoas que dizem que não conseguem perceber arte… toda a gente consegue olhar para um trabalho, ver se gosta ou não, e interpretá-lo. Isto não é uma caixa fechada, gosto que as pessoas olhem e descubram coisas novas, porque todos nós, com as nossas experiências, temos olhos diferentes e vemos coisas diferentes.
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Por fim, quem são as mulheres da sua vida?
Quem me inspira é a minha mãe e a minha filha, sem dúvida. A minha mãe mais, porque para mim é uma força da natureza. É o meu pilar, é quem eu olho como exemplo.

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