Fabrice Midal, filósofo. “Desde que nascemos somos julgados, avaliados, comparados. Integramos isso”
Com que idade começámos a ser pressionados para ser perfeitos? Há emoções negativas e positivas ou todas são válidas? É possível evitar o burn out e a pressão para ser melhor? Esta e outras perguntas respondidas no novo livro do escritor francês, que esteve de passagem por Lisboa.

O filósofo e escritor francês esteve em Lisboa para apresentar Deixe-se de merdas e comece a viver. Não, não é mais um livro de auto-ajuda: é uma lição para quem se quer libertar da pressão e da culpa, e para quem quer entender o burn out. No hotel Valverde, em Lisboa, e com duas chávenas de infusão de verbena à mesa, conversou com a Máxima sobre uma mudança de pensamento que é urgente, e que bebe influência dos grandes filósofos do séc. XX.
Toda a gente tem sempre alguma coisa a dizer sobre como devemos sentir, pensar ou estar, sobretudo se for o caso de estarmos num dia mais negativo. É disso que fala, em primeiro lugar, no seu livro Deixe-se de merdas e comece a viver [Planeta Editora]?

Como filósofo tento entender o sofrimento das pessoas, que vai mudando de tempos para tempos. Eu percebi que – no nosso tempo – o problema é a pressão para sermos perfeitos a todo o momento. Como se fossemos robots, feitos a partir de inteligência artificial. As pessoas sentem culpa. Todos os estudos apontam para o crescimento do stress e do burn out. Descobri que a forma como abordamos esses problemas é completamente forçada e pouco auxiliar. Não adianta dizer às pessoas como "tens de te acalmar", "deves fazer meditação e tornar-te zen". Dessa maneira, estamos a dizer-lhes que a culpa é delas, que não estão a esforçar-se o suficiente, não são boas o suficiente. A minha convicção que isto funciona ao contrário: precisamos de descontrair, deixar de nos importar tanto com o trabalho. Há uma série de coisas que, de repente, temos de controlar e melhorar. Os nossos trabalhos, as nossas relações, as nossas emoções, os nossos filhos. É desgastante e deixamos de viver. O que faz a vida ser fantástica é vivê-la, com tudo isso acarreta. O meu livro quer fazer o switch, dar a volta a essa mentalidade, dizer: deixe-se de merdas.

Há muitos problemas que começam no trabalho? Será que esta geração é mais dedicada ao trabalho do que a anterior, mais doméstica?

Não. Acho que o trigger maior é a instrumentalização do ser. Eu observo avós que estão reformados e põem a mesma pressão sobre os seus netos, com medo que façam menos que eles próprios. No meu livro, escrevo até que não faz sentido falarmos em emoções negativas e positivas, todas as emoções têm um significado, se as aceitarmos podemos transformá-las, se as rejeitamos elas vão voltar até nós noutra forma. Como quando nos mandam acalmar quando estamos zangados, e só estamos só a querer justiça, é um desejo de justiça perante algo injusto.
Falou no burn out, que é algo difícil de entender que vai acontecer, como uma teia onde somos apanhados sem perceber.
Não escolhemos, não. Desde que nascemos somos julgados, avaliados, comparados. Integramos isso - e creio que isto hoje em dia é pior – porque até antes dos 7 anos, da escola primária, se faz isso às crianças. Exige-se demais. Tenho um amigo que levou a filha de três fazer aulas de trampolim no verão durante uma semana, e no fim a professora atribuiu-lhe uma avaliação: era um formulário cheio de parâmetros! Queremos que seja tudo avaliado, a todo o momento, tudo tem uma nota. Há pressão desde o início, não temos escape, o que eu acho que ajuda – e que tento descrever no livro – é que para nos libertarmos da pressão é deixar cair a culpa. É a culpa que começa tudo. Obedecemos a tudo, todos os dias, todos os anos, a culpa soma.

O livro está organizado quase por tarefas: "Deixe de estar calmo. Esteja em paz." Porquê?
Os capítulos são como provocações. Estou sempre a pedir que o leitor deixe de querer ser perfeito e comece a ser quem é. Estimulo a que o leitor confie mais em si próprio.
Diz-se às crianças que são feias quando choram. Que efeitos têm frases como esta?
A ciência diz que o cérebro de uma criança não está totalmente formado e que é por isso que têm certas reações fortes, como choro compulsivo ou raiva intensa. Sabemos, também, que a violência para com as crianças lhes deixa danos graves não só ao nível das emoções como a nível cerebral: o lado cognitivo sofre consequências. Em adultos, muitas vezes achamos que a única forma de ir em frente é sendo duros connosco próprios, puxar-nos ao limite para ter resultados. Trabalho com desportistas e digo-lhes sempre que se querem vencer uma competição, quanto mais pressão, menos a probabilidade, de uma maneira geral. Atenção: eu não digo para que as pessoas não se esforcem. Defendo é que a maneira como lhes dizemos isso está a destrui-las.

Entre os vários filósofos que estudou, quais se aproximam mais desta mentalidade?
Os grandes filósofos do século XX. Henri Bergson, Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche… Todos mostram que se acreditarmos em "se eu quiser, vou ter", é um erro, é algo falso. Que nós somos autónomos de todo o querer. Nietzsche dizia que as convições são inimigos da verdade mais perigosos do que as mentiras.
Qual é o primeiro passo para nos libertamos da pressão e da culpa?
Esquecemo-nos de uma coisa importantíssima: que é ouvir. Muitas vezes achamos que ouvir é estar sem fazer nada, quando é o contrário. As noções de passivo e ativo misturam-se e prejudicam-nos. Ouvir é estarmos ativos, estar presente é estarmos ativos. Também trabalho com enfermeiras: estar presente, nessa profissão, é muito importante, além dos procedimentos médicos. É um trabalho muito exigente: contam-se os atos, as tarefas, em vez da forma como se faz, do significado. Tento falar desta dimensão que esquecemos: a conexão, a audição, a troca, é isso que nos faz felizes. Controlar a realidade não nos traz felicidade.
As mulheres que optam por ser mães são muitas vezes pressionadas para serem perfeitas. Este livro dirige-se a elas?
Sim, é exigido que as mulheres e as mães sejam irrepreensíveis. Até para o ser: pergunta-se isso às mulheres com frequência. Cria-se uma ficção sobre o que é ser mãe e que tudo isso comporta, que se deve sacrificar, que deve ser sempre muito doce.
Qual foi o maior desafio, ao escrever este livro?
Escrever este título: sou filósofo, não é esta a nossa linguagem. Mas é o mais imediato para dizer às pessoas que deixem de tentar corrigir as emoções que consideram negativas.
