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Jup do Bairro: “O meu lugar de fala não significa o teu lugar de silêncio"

São sete músicas de empoderamento as que Jup do Bairro canta no seu EP Corpo Sem Juízo. O género, a raça e sobretudo a afirmação do seu corpo trans como uma revolução. A voz de Jup sai das margens e conquista um público amplo, é obrigatório ouvir o que tem para nos dizer.

Jup do Bairro
Jup do Bairro Foto: Isac Oliveira
07 de setembro de 2022 Tiago Manaia
Jup tem unhas extremamente compridas com tons neutros. O seu rosto aparece-nos através de um ecrã com um "olá" rouco, está no Brasil, na sua casa em São Paulo, conseguimos ver desenhos coloridos pendurados atrás de si nas paredes. Fala pausadamente num timbre que não se esquece. A chamada Zoom através da qual a entrevistamos agita os nossos rostos com cortes e falhas de rede. Por momentos não parecemos reais. Jup é filha da internet, foi a web que ajudou a espalhar a sua presença dos dois lados do Atlântico. Há anos que é uma figura incontornável dos palcos e circuitos alternativos de todo o mundo, o seu canto sai agora das margens – merecidamente – aos 29 anos. 

Começou por acompanhar Linn da Quebrada, cantora ativista trans que recentemente agitou o Brasil com questões de género ao participar no Big Brother Famosos. Foi ao lado de Linn que vimos Jup do Bairro cantar pela primeira vez em Portugal, dias antes de Bolsonaro ser eleito em 2018. Quando a sua voz se exprime em cima de uma batida eletrónica, acontece algo inexplicável. As qualidades vocais e a sua capacidade de débito, aliadas ao ativismo que aborda nas suas composições, entram-nos pelo corpo adentro. E é precisamente de corpos que Jup quer falar – como olhamos para a existência do outro? Porque o julgamos? 

Durante a pandemia, depois de uma enorme campanha de crowdfunding, gravou finalmente as suas composições a solo. São hinos de empoderamento, onde conta as vivências do seu "corpo abjeto". "O que pode um corpo sem juízo?", pergunta. Dotada de um discurso filosófico, as suas canções têm prólogos dramáticos, as batidas podem levar-nos à abstração. O hip-hop, o funk ou as guitarras rock cruzam-se e analisam as lutas da sociedade no século XXI. A raça e o lugar de fala são abordados, o preconceito é desmontado.
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No teu EP Corpo Sem Juízo, o corpo está em todo o lado, é central. Mas gostava que falasses da descoberta da tua voz, e não falo desse poder vocal extraordinário que tens.... Queria falar da tua voz poética, como a descobriste?
 
A minha introdução na Arte veio de maneira involuntária. Eu comecei a escrever para perceber o que estava a acontecer com a minha mente e corpo.  Foi através da escrita que comecei a entender que mente era corpo, e corpo era mente. Era uma espécie de terapia barata. (Risos) Então eu comecei a conversar comigo mesma, num monólogo a partir dos 13 anos de idade. No começo da minha adolescência conheci uma galera punk que me apresentou ao mundo das fanzines (revistas que tinham poesias marginais). Aquilo soou-me muito interessante, mas eu não tinha coragem de escrever coisas como as que lia naquelas fanzines. Um dia mostrei um texto a um amigo (...) e ele fez uma fanzine para mim com o texto que eu escrevi. Disse-me que a podia vender e ganhar algum dinheiro. Houve um dia em que saí do colégio e decidi entregá-la às pessoas na rua, sem pedir dinheiro. Eu era a caricatura de uma bichinha de igreja. Era muito fofinha, não tinha tatuagens. Senti que as pessoas pegavam naquilo a achar que era folheto da igreja, mas, quando abriam, deparavam-se com umas colagens de umas vaginas e uns pénis... E um texto que falava de sexualidade e género. As pessoas abriam a fanzine, ficavam constrangidas, mas não me devolviam esse constrangimento. O impacto era grande.
 
Achas que era por seres uma criança? As pessoas não conseguiam julgar uma criança?

Exatamente...
Jup do Bairro
Jup do Bairro Foto: @jupdobairro

 
Quando dizes que eras uma "caricatura", será que o dizes por causa da consciência que os outros te foram dando do teu corpo... Quando um corpo é queer, as pessoas parecem quase decidir o que esse corpo pode fazer ou não. Existem crianças, ainda sem qualquer tipo de consciência do que é o género, que são logo insultadas e rotuladas na escola por exemplo... 
 
Isso foi exatamente o que aconteceu na minha trajetória, eu tive esse dedo acusador. Eu não me descobri sozinha com um corpo travesti ou um corpo estranho, ou um corpo abjeto… As pessoas é que me diziam isso, e eu ia criando sentenças na minha cabeça. O que sou eu exatamente? Qual é o meu lugar, já que eu não pertenço a esse lugar de que as pessoas falam? E quando dava essas fanzines na rua às pessoas comecei a ter prazer ao vê-las "impactadas". E aquilo instigou-me, fui escrevendo mais e acabei por criar um sarau. Como eu era muito tímida, a arte deu-me essa malícia para negociar melhor. Eu estava só na organização e produção desse sarau, e ia percebendo que muitos corpos queer ou trans passavam naquele lugar sem não lá ficar. Quem ficava naquele espaço eram homens que vinham da cena do rap, e eu ia sentindo que estávamos a reproduzir um espaço seguro para os corpos que já tinham segurança no dia a dia. Questionei-me porque acontecia isso. Comecei então a apresentar a minha poesia de uma forma declamada e um dia estava lá um DJ que passava som com uma base e eu comecei a recitar em cima dessa base. E as pessoas começaram a reagir, perguntavam "que corpo é esse a fazer rap." Uma amiga minha fez um vídeo que postei (bem no começo do Facebook), acabou por ficar viral. 

Dizes que alguns sons do teu disco são inspirados em músicas que o teu pai ouvia. Há letras neste EP que começaste a escrever aos 13 anos, mas que só chegaram a disco agora aos 29. Querias trazer para EP memórias desses tempos de adolescente, como uma convicção? 
 
É muito maluco, mas eu estive quase 15 anos para sentir que estava pronta para lançar um EP como o Corpo Sem Juízo. Eu sinto-me como uma artista do presente, e um dos grandes exercícios que tenho feito é justamente tentar não caducar ao meu tempo. Quando me declaro enquanto travesti, eu não quero dizer que essa é a única e última saída. Eu quero entender como os corpos se vão revolucionar. Se as células dos nossos corpos se renovam a cada 7 ou 10 anos, imagina como se renova a nossa sentença mental? Então eu quero ser cada vez mais outra pessoa, e essa é a grande busca deste "Corpo sem Juízo". Quando eu vou buscar composições de há 15 anos atrás, é porque as sentenças continuam vivas em mim, não são exclamações do passado. Eu não estava a falar de quem eu era .... Eu estou a perguntar quem eu sou.  

O meu pai fez parte de bandas punk e rock na adolescência.  Ele olhou para as manifestações que foram acontecendo comigo com muita subtileza. A minha mãe sempre consumiu muita música, isso sempre foi algo muito presente. Apesar das nossas tretas ou desavenças, todos os desencontros que íamos tendo eram conectados pela música.
"Eu diria para essa criança da foto: Calma, logo a Jup do Bairro vai nascer e te salvar. Eu tenho #orgulho de quem sou, e principalmente de quem tenho me tornado", escreveu a artista no seu Instagram Foto: @jupdobairro

 
Tu ias à igreja certo, eras solista num coro, certo?
 
Sim, a igreja (principalmente nas periferias do Brasil) é onde as pessoas se conectam com a música. O acesso à música é muito escasso aqui. Um dos pontos interessantes (e contraditórios) das igrejas é ser o lugar onde muitos jovens e adolescentes têm o primeiro contacto com a música. O coro da igreja também me serviu para negociar com a minha timidez, que era muito grande. Eu caminhei até à criação deste disco para captar todas as minhas referências musicais. 
 
Os teus textos falam muito do apocalipse. De certa forma, com esta pandemia, ou com a recente guerra na Ucrânia, ou por causa de governos mais ditatoriais como os de Bolsonaro – a ideia de apocalipse é cada vez mais concreta. Tu dizes também que os corpos queer ou trans já sabem o que é viver com a dificuldade. Um corpo trans já se habitou a lutar constantemente?
 
Eu acho que os nossos corpos na verdade já viveram o apocalipse. Para nós ele já aconteceu, e estamos a andar sobre os escombros. Só que agora esse apocalipse tem chegado a outros corpos, que nunca imaginaram poder passar por algum tipo de insegurança ou instabilidade. Era como se os privilégios brindassem esses corpos para sempre. Agora temos vivido com essa dualidade – tens tudo, mas literalmente não tens nada. Temos vivido num plano mais coletivo e visceral. Então, eu acredito que o apocalipse para muitos já aconteceu há muito tempo, já andamos nos escombros há muito... E agora esses outros corpos estão a tropeçar nos nossos, no encontro do juízo final.
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As tuas canções falam de sentimentos duros e ao mesmo tempo são hinos de empoderamento. Em All You Need Is Love, dizes: "eu não sei o que é o amor". Parece haver uma dualidade nesta frase. Passo a explicar: a Jup do Bairro tem milhares de seguidores no Instagram. O teu EP foi financiado através de um crowdfunding, as pessoas parecem gostar de ti. Ao mesmo tempo, tens uma consciência extrema de um desamor. Vem da sociedade essa ideia de desamor que te invade? Vem da forma como a sociedade olha para um corpo negro? 
 
Tudo o que eu conheço sobre o amor foi o que eu inventei. E eu, para fazer do meu corpo um corpo em movimento, precisei de acreditar em pessoas. Mas ao mesmo tempo precisei que as pessoas gostassem de mim. Essa invenção de ter tanto para dar, mas sem saber o que é... Faz-me estar em movimento. Eu estou nessa busca do que é o amor, e quando trago isso para uma canção, a partir da minha vivência, eu não quero que seja um lugar de vampirismo (...) O amor é flexível, o amor escolhe e também exclui... Eu quero entender o que é esse amor. Mas procuro um amor que caiba no meu corpo, que me faça feliz. O amor que foi inventado lá atrás, por aquelas outras pessoas, ele não cabe mais. Porque o meu corpo já não é o mesmo de lá atrás. 

Eu preciso inventar um amor. Inventar novos sentimentos e sensores. E se amor for carregado de incerteza, angústia ou de fim do mundo .... Que bom... Se esse amor estiver carregado de tudo isso, que bom. Não há nada mais genuíno do que um amor que está ligado ao presente, visando o futuro como uma extensão do presente, referenciando o passado... Para que não se cometam os mesmos erros no que toca a amar.  
 
Quando cantas Luta Por Mim e falas da Black Lives Matter abordas também a hipocrisia da sociedade...Tenho duas perguntas: tens medo da morte? Tens medo de ser instrumentalizada? Quando falas dos teus medos parece-me que lhes fazes frente.
 
Luta Por Mim é justamente uma provocação e um convite a entender como podemos tornar as nossas relações afetivas em relações efetivas. Como podemos colaborar para que uma luta não seja de uma só pessoa. Muitas vezes, vejo que as pessoas falam só a partir de interesses pessoais, que podem ser económicos, políticos, sexuais, raciais... Tudo parece uma briga para justificar a nossa existência. Mas eu acredito que precisamos de pensar em luta. Quando pensamos em luta, acaba por ser algo coletivo.

Temos de ter cuidado quando usamos essa cartada do joker contemporânea daquilo que se diz ser o "local de fala" ... Muita gente diz que não pode falar de certos assuntos por não ser o seu "local de fala", por não ser algo que atravessa o seu corpo ou as suas vivências. Mas o meu lugar de fala não significa o teu "lugar de silêncio". Quando eu proclamo Luta Por Mim, sei que há lugares em que tu vais conseguir negociar mais do que eu. Esta luta precisa ser coletiva. E por isso é preciso que haja esse entendimento de que eu preciso de ti na minha luta, e tu precisas de mim para a tua luta. É como um voar de andorinhas que está sempre num coletivo... Para ir buscar comida, para ir buscar sobrevivência ou abrigo. Quando eu me projeto e falo sobre a morte, eu não quero que essa morte seja um ponto final, pelo menos a morte enquanto matéria física. Eu fico preocupada com a ideia de morrer em vida, de me ver numa situação em que esteja como uma morta viva... Onde eu não vejo mais graça, mais inspiração ou vontade. Isso preocupa-me. Eu tenho medo de perder o tesão de viver.
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Podes falar dos teus sonhos? Falas em voar numa canção. Mas que sonhos tem a Jup do Bairro atualmente?

É sempre uma pergunta maluca, quando me pedem para falar dos meus sonhos. (suspira). Na verdade, pergunto-me em que momento deixei de sonhar. Eu era uma criança muito sonhadora, e o Brasil fez-me muito imediatista. Ao ponto de não conseguir sonhar mais e só fazer e realizar. O meu maior sonho é voltar a sonhar, voltar a projetar-me daqui a 15 anos. Como é que eu quero estar?  Eu gostaria de ter a ingenuidade da infância.
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