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Leïla Slimani: "Nunca me surpreende a maldade humana ou o racismo. Fico surpreendida com o oposto"

Tornou-se numa das principais vozes da literatura mundial. Depois do sucesso de Canção Doce, há muito que o novo romance de Leïla Slimani era aguardado. O País dos Outros leva-nos até Marrocos, trata mestiçagem e colonialismo, num incrível drama familiar. Falámos com a escritora em Lisboa, percorremos os temas que inspiram a sua carreira, e ouvimos o que tem a dizer sobre a atualidade.

Leïla Slimani no desfile da Chanel, em 2018
Leïla Slimani no desfile da Chanel, em 2018 Foto: Getty Images
20 de maio de 2021 às 21:12 Tiago Manaia

Leïla Slimani pergunta se as ruas de Lisboa estão sempre tão vazias à noite. "Foi a pandemia?". Está sentada numa sala de reuniões minimalista, na sede da sua editora em Portugal, os corredores que percorremos até chegar a ela estão cheios de livros. Em pouco anos, e sobretudo depois de ter vencido o prémio Goncourt, em 2016 para Canção Doce, o imaginário criado por Slimani conquistou crítica e leitores. Temas que abordam a luta de classes, a mestiçagem e a sexualidade feminina, juntam-na a uma lista de escritoras que seguimos atentamente – Bernardine Evaristo e Zadie Smith. Nasceu em Marrocos há 39 anos, mudou-se para Paris com 17 para estudar. Foi jornalista, cobrindo temas ligados à África e mais em específico ao Magreb. O êxito de Canção Doce projetou-a para a ribalta. Emmanuel Macron quis que Leïla Slimani fosse Ministra da Cultura – recusou. É embaixadora para a francofonia, a imprensa francesa procura loucamente ter o seu ponto de vista sobre quase tudo.

O seu novo romance, O País dos Outros, é o primeiro de uma trilogia. Inspira-se na vida da sua avó francesa, conta o casamento com um soldado marroquino que lutou ao lado das tropas gaulesas durante a Segunda Guerra Mundial. A escrita é viciante, os personagens inesperados. O colonialismo é central neste romance, descreve como molda as mentalidades. 

Leïla fala connosco em francês, as suas frases são literárias e incisivas. Pede para lhe explicarmos em detalhe o movimento MeToo que nas últimas semanas invadiu a opinião pública portuguesa. Conta-nos que se vai instalar em Lisboa durante uma temporada. Imaginar Leïla Slimani a atravessar as colinas da capital portuguesa não é ficção. 

Máxima: Estávamos completamente mergulhados no teu último livro, uns dias antes de realizarmos esta entrevista, quando te vimos por acaso numa mercearia em Lisboa. Quando chegas a uma cidade nova, é a escritora e observadora que se impõe, ou são os movimentos do quotidiano?

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Como escritora chegar a uma cidade nova é sempre fascinante. Porque chegas e és estrangeiro, há uma distância. Olhas para as coisas ao longe, não percebes tudo, nem as conversas… Estás atento a pequenos detalhes, é preciso fazer um esforço para perceber. Ser estrangeiro é uma posição verdadeiramente agradável para o escritor. 

Aos 17 anos, deixas Marrocos para viver em Paris. Ficaste surpreendida com o facto de as pessoas perguntarem quais eram as tuas origens? Percebeste que as pessoas perguntavam sempre isso aos marroquinos e argelinos? 

Fiquei surpreendida, porque quando cheguei a Paris conhecia muito bem a literatura francesa e falava bem a língua. Conhecia a História de França, e achava estranho do outro lado ninguém saber nada da minha História. Pensava: "porque sei eu tanto sobre eles, e eles não sabem nada sobre mim?". Eu não era de origem nenhuma. Eu sou marroquina, é o meu país. E depois pensei que deveria ser terrível para as pessoas francesas, que tinham nascido ali, e só por terem um nome ou um físico magrebino, estavam sempre a ser questionadas relativamente às suas origens. Quando no fundo eles são tão franceses como os outros. Eu enquanto marroquina, não me incomodava que olhassem para mim como uma estrangeira

Foto: Getty Images

 

Tornou-se um desafio?

Sim, quase se tornou um desafio eu poder dizer: "não sou aquilo que vocês acham, eu sei mais sobre vocês, do que vocês sabem sobre mim. Eu domino os vossos códigos e vocês não dominam os meus".

Chegas a Paris no ano 2000, o mundo viveu acontecimentos muito fortes nos anos seguintes. Houve o 11 setembro nos Estados Unidos, e pouco tempo depois, em França, os jovens nos arredores de Paris confrontaram-se com a polícia por causa da repressão policial durante semanas. Como viveste essa época?

O 11 de setembro foi um ponto de viragem. Foi o momento em que deixamos de ser árabes e passámos a ser muçulmanos. De repente impôs-se essa identidade muçulmana no olhar dos franceses, e nos ocidentais em geral. Nos países árabes, as pessoas começaram também a assumir-se como muçulmanas, só que eu não fui de todo educada assim. Foi uma realidade à qual eu tive de me habituar. 

Sinto-me como alguém a viver numa bolha, vivo noutra dimensão. Tenho a impressão de nunca estar presente. Sinto-me como uma espécie de estrangeira. Observo as pessoas, sem nunca me surpreender com a maldade humana ou o racismo. Fico surpreendida com o oposto, com a bondade ou a abertura de espírito. Sempre tive consciência de que o Homem era um ser cheio de coisas más. Para mim, o mal é muito banal.

Consegues ligar isso a experiências vividas na tua infância?

Ligo isso a tudo o que li. Acho que quando lemos muito, tomamos consciência de que o ser humano é um animal um pouco especial. Na minha infância, tive experiências em que percebi que existia rejeição, amargura, ou ciúme. O Homem pode ser animado por sentimentos muito feios. 

E isso inspira-te? Tudo é um tema potencial para a ficção?

Claro que sim. Dá-me vontade de contar histórias, estranhamente isso dá-me vontade de tentar compreender. Quando tenho à minha frente alguém violento, racista, misógino … A minha primeira reação não é a de julgar, ou apontar o dedo. Tenho vontade de explorar essa pessoa. Dá vontade de abrir e ver o que há lá dentro. Fascina-me.

Começaste a trabalhar como jornalista e dessa época dizes que a tua prioridade era dar voz a pessoas que não tinham acesso à palavra…

Absolutamente.

Era uma abordagem política. Foi fácil esse posicionamento na redação de um jornal?

Francamente sim, e sobretudo porque eu cobria o Magreb. Cheguei um pouco antes das revoluções árabes, e dava para sentir que a voz dos jovens, das mulheres e dos pobres, eram vozes que não se ouviam em geral. E não era possível perceber uma sociedade sem ouvir essas vozes. As revoluções árabes ajudaram muito, era mais fácil explicar a necessidade de fazer reportagens nos arredores e em sítios isolados. Era preciso falar de sexualidade e do acesso ao lazer, falar da possibilidade de acesso à cultura. Esses temas também alimentam os desejos de revolução.

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No Jardim do Ogre, o teu primeiro romance, tratavas a adição sexual. Enquanto mulher marroquina disseste várias vezes em entrevista, que em Marrocos as mulheres experienciam a clausura. A sexualidade era um tema urgente?

Sim. Tinha de começar por algo brutal. Tinha vontade dessa violência, foi como um grito que senti a necessidade de dar. E a personagem de Adèle, apareceu-me, e começou a viver comigo. Descobri essa mulher, comecei a ficar fascinada por ela, tinha vontade de a contar. Penso ter-me cruzado com mulheres assim, raparigas que as pessoas não conseguem compreender e julgam com muita facilidade. Raparigas assim comovem-me e agitam-me. Tenho a sensação de ver pessoas perdidas com uma tal necessidade de amor ou de se sentirem preenchidas, que se torna um desespero. Foi a Adèle que me guiou. 

O Prémio Goncourt  foi-te atribuído dois anos depois, para o teu segundo romance Canção Doce, estavas grávida quando o recebeste. Não deixa de ser curioso, o livro tratava o assassinato de duas crianças. Disseste na altura que os fundadores do Prémio Gouncourt eram conhecidos por serem misóginos. Achas que as pessoas já tinham percebido que ias tornar-te numa voz feminista?

Não sei se perceberam logo que era um livro político. Creio que julgaram ser uma espécie de thriller (o livro foi adaptado para o cinema). Muitas vezes as pessoas acham que as mulheres não podem escrever livros políticos. Acham que a maternidade não pode ser um tema político. Só que eu escrevi-o como tal. Quis escrevê-lo quase de uma forma marxista, sobre a luta das classes, a luta das raças – "O que é isso de ser uma mulher nos dias de hoje?" – Uma mulher que tem vontade de ser mãe e de continuar a trabalhar e guardar uma parte de individualidade. Podemos escrever romances políticos e abordar temas da vida quotidiana. No entanto, recuso a etiqueta de romance feminista. Um romance não é um lugar onde se exprimem ideologias ou mensagens. Deve ser o leitor a encontrar a mensagem. Eu quando escrevo sou feminista. Porque eu sou feminista 24 horas por dia.

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No teu novo romance O País dos Outros, a ideia da luta de classes é muito forte. Contas a história da tua avó, e como deixou França para casar com um marroquino. Cresceste a ouvir as histórias dela? Cresceste com essa pressão de que era preciso estudar para conseguir ser alguém na vida?

Lembro-me de ouvir sempre isso. Trabalhar, estudar e ser independente. Para os meus pais era fundamental, porque eles veem de um meio social modesto,  percebo muito isso agora, ao escrever sobre eles. Muitas vezes dizem-me que sou burguesa, o que até é verdade. Tive uma educação burguesa porque os meus pais ganharam os privilégios deles através do trabalho. Considero que é algo positivo, conseguir trabalho, comprar uma casa, educar os filhos. Tive vontade de contar de onde vim… Eu não sou só essa figura da burguesa elitista, o que há por trás disso é bem mais complicado

Em que momentos te dizem que és burguesa?

Eu digo sempre de onde falo. É importante dizer às pessoas que sou marroquina mas não dos bairros populares, não sou uma vítima. Não gosto de fazer de conta que tive experiências que não vivi. Não gosto de caricaturas. 

Foto: D.R.

O País dos Outros é um romance que aborda o tema da mestiçagem. O teu  livro surge numa Europa globalizada e transnacional, onde estranhamente a extrema-direita cresce sem parar. Como é que estes temas ecoam nas nossas vidas?

A Europa precisa de perceber, que destino de países como França, Espanha ou Inglaterra, está ligado ao de África. São países que foram grandes colonizadores. A certa altura vai ser necessário aceitar conhecer essa História. É preciso dizer-lhes que não pertencemos a outra espécie, não somos estrangeiros irredutíveis. Queria falar do facto dos nossos destinos estarem ligados. Nós vivemos juntos, nós fazemos amor uns com os outros, temos filhos e há muitas gerações que falamos a vossa língua. É importante que a Europa se debruce sobre isso, e que pare de olhar para África e o Magreb com condescendência. Nós fazemos parte do mesmo mundo, temos um destino comum. 

Podemos ligar isto ao passado colonial português, também parece haver dificuldade em Portugal ao abordar o tema. Na literatura o António Lobo Antunes fez isso há décadas, ao contar as suas experiências na guerra em Angola e mais recentemente temos relatos de escritoras…

Sim, vocês têm a Isabela Figueiredo que é extraordinária (Cadernos de Memórias Coloniais, 2009). Ela diz uma frase que acho muito bonita: "O meu país natal é o colonialismo." E ela tem razão, o colonialismo é um país, uma pátria. Há pessoas que pertenceram a essa ideia de que o país dos outros é o deles, só que dos outros eles não querem saber. O que tento mostrar, é que somos sempre o indígena de alguém, infelizmente. Ou porque somos estrangeiros, ou pobres. O capitalismo é um regime que funciona de maneira um pouco colonial. Se olharmos para as pessoas que votaram no Brexit, elas podem dizer que já não se sentem em casa, que sentem estar a viver no país dos outros – o país dos ricos. Toda a gente sente que está a viver no país dos outros… É preciso perceber a origem disso tudo

É o que procuras? 

Sim, só que não tenho todas as respostas. Tenho muito prazer em escrever sobre isto. Sinto que estou a entrar numa história extremamente complexa e ao mesmo tempo vou voltando às minhas raízes. O que é isso afinal de ser uma filha de dominadores e de dominados? De colonizadores e colonizados. Eu tenho os dois no ADN.

Tens uma voz, agora. A tua escrita também te deu acesso ao poder…

Por isso não gosto do separatismo. Não quero falar de um campo contra outro. Quando falo das mulheres não estou contra os homens. A ideia do feminismo não é abrir uma guerra contra os homens, a ideia é podermos viver juntos. E isto de escrever sobre a colonização não é estar a meter os brancos todos na fogueira, ao contrário, temos de encontrar lições nisto tudo para podermos viver juntos. Isso é o mais difícil nos dias de hoje, parece que até a extrema-esquerda tem dificuldade em dizer que podemos viver todos juntos. É como se fossemos inimigos e tivéssemos de estar em guerra.

Há também no País do Outros ecos à comunidade LGBTQ+, em Marrocos os homossexuais são perseguidos, é um tabu?

O personagem de Morad no livro é homossexual e está muito apaixonado. Era importante para mim porque sou militante dos direitos LGBTQ+ em Marrocos. Todos os meus melhores amigos lá são homossexuais, sinto que tenho sido espetadora do sofrimento deles. Sei o que é viver num país onde eles não têm direito a existir, não têm direito de mostrar o amor à luz do dia, devem mentir sempre. Quis portanto imaginar o personagem de um soldado, um homem dócil e submisso, com todos os clichês da masculinidade. Ele foi à guerra, é um soldado corajoso. O amor que sente por outro homem é o que o faz ter gestos heróicos. Com este personagem quis perceber como é viver sem poder dizer à pessoa amada, "amo-te". A ideia comove-me.

Foto: Leila Slimani num desfile da Dior.

Sim, é uma personagem comovente.

É interessante poder escrever um livro sobre Marrocos com personagens exóticos que saem do clichê marroquino. E é óbvio que há homossexuais em Marrocos como em todo o mundo.

Escreveste um ensaio, Sexe et Mensonges (2017, não publicado em Portugal) sobre a sexualidade em Marrocos. As reações ao teu livro foram violentas no teu país natal, foste acusada de ser uma "nativa informadora" (informatrice autochtone), o que quer dizer este termo?

Quer dizer que és um árabe que se vendeu aos franceses. Resumindo tentam dizer que eu critico o meu país para agradar os racistas. E tentam dizer que eu própria sofro de islamofobia. Eles argumentam que é preciso respeitar todas as culturas, e que em todo o lado é diferente. Só que para mim, a homofobia não é uma cultura. A homofobia é merda, e não há nenhuma cultura na qual eu respeite a homofobia. Não tem a ver com cultura, é um erro e vai contra os direitos humanos. Defendo uma forma de universalidade, acho bem a diversidade nas diferentes culturas, mas para mim a violação não é uma cultura, nem machismo.

Estavas na cerimónia dos Césars em 2020, quando o Polanski foi premiado, em França, tinha acabado de rebentar o movimento #MeToo. O que sentiste nesse momento? 

O que as pessoas não viram na televisão foi quando a Adèle Haenel  (actriz francesa que denunciou ter sido vítima de abuso sexual) se levantou da sala para sair, foi também insultada por imensa gente, algo do género: "puta sai daqui". Desde o início da noite, sentias a tensão a subir na sala. E quando as pessoas começaram a insultar-se umas às outras eu pensei: " onde estou?". 

A Adèle queria manifestar-se contra a vitória de Polanski, e tinha direito de o fazer. O #MeToo emocionou-me muito, e gosto do termo "me too", há algo que nos liga. São mulheres que olham umas para as outras e dizem – "eu também". O segredo que se habituaram a guardar, e do qual tinham vergonha e julgavam ser culpadas… Esse segredo liga-as. E percebes que a tua mãe, a tua irmã também … O que nos isolava, de repente tornou-se um movimento de solidariedade.

Em Portugal tem sido estranho perceber que algumas mulheres, quando têm a possibilidade de emitir uma opinião pública sobre o #MeToo, fazem-no de forma a confortar o patriarcado… 

Claro, as mulheres em muitos países podem ser veículos de transmissão do patriarcado. E penso que elas têm medo. Algumas não conseguem imaginar-se num mundo sem ser dominado pelos homens e no qual, nós mulheres, já não somos objetos. É preciso ter coragem para ser livre. E a libertação muitas vezes significa solidão, renunciar à segurança e ao conforto. O nosso objetivo como mulheres não é o de ser umas queridas, e preparar refeições para os nossos maridos. O nosso objetivo é inventarmo-nos e criar o nosso destino. Isso assusta, e é uma vertigem.  Em alguns países do sul, as mulheres pensam: "como será um mundo quando já não desempenhar esse papel? Qual será o meu lugar?".

Neste romance todas personagens têm gestos positivos e muitos defeitos. Dizes construir as tuas personagens sem julgamento – como podemos interpretar isso na época em que cultura de cancelamento se banalizou? Há pouco tempo decidiste apagar as tuas contas em todas as redes sociais, um lugar onde se pede muitas vezes para amar ou odiar, e onde existem poucas zonas de sombra. Este tratamento das tuas personagens foi voluntário?

Sim, diria mesmo que é a minha visão do mundo. As pessoas que eu amo, procuro-lhes essas zonas de sombra. Eu afeiçoou-me aos defeitos das pessoas. Gostos dos outros porque são complexos, e às vezes incompreensíveis, incoerentes com muitas contradições. Quando deixei as redes sociais, decidi distanciar-me. Ou agora, ao decidir vir instalar-me em Lisboa.

Tenho vontade de viver no meu mundo, e explorar a complexidade da alma humana. Não me reconheço nesse lugar onde tudo é preto ou branco, onde devemos sempre julgar os outros. A mim não me interessa questionar alguém por ter dito algo numa rede social. Todos os seres humanos são frágeis e falíveis, todos cometemos erros. Tenho muita indulgência e carinho pelos seres humanos. Mesmo os maus.

Escreveste uma carta ao teu filho publicada na Vogue Hommes em 2020. Dizias: "Mais passam os anos, mais as minhas noites são atravessadas por pesadelos que não deixam a ficção científica a desejar (…) Pensa na tua irmã. Ser optimista é lutar contra os vendedores de ódio, sejam eles terroristas islâmicos, ou dirigentes fascistas". Esta carta foi publicada pouco tempo antes da pandemia, um momento de ficção científica. Como viveste esta época e porque quiseste dizer isto ao teu filho?

Queria dizer-lhe que infelizmente o pior pode sempre acontecer. Quando cheguei a Paris nos anos 2000, vivíamos uma época positiva. Falava-se na altura da globalização feliz, os estudantes faziam Erasmus, eram anos de abertura. Apareceu a Internet, parecia que íamos viver todos juntos e o racismo ia recuar. Diziam-nos que haveria democracia em todo o lado. Só que nada do que nos prometeram aconteceu. Foi assim que vivi a pandemia também era algo que parecia nunca poder acontecer, só que sim…O Trump ou o terrorismo são coisas que achámos já não serem possíveis, mas sim! E há outra coisa que me dá pena... Sinto que nos dias de hoje há uma diabolização do outro e da viagem. Vivemos todos fechados sobre nós próprios, fechámos as fronteiras, metemos as nossas máscaras. Parece-me óbvio que vai haver um crescimento da extrema-direita na Europa, vai ser terrível.

Achas que a França vai ceder? Preocupa-te?

Depende dos dias. Há dias em que digo ser impossível e há outros em que parece que eles querem bater no fundo.

Vamos acabar com uma nota positiva. Que música andas a ouvir?

Tenho ouvido música portuguesa e muita bossa nova para aprender vocabulário. Só não ouço muita música enquanto escrevo. A música acaba por ter uma influência na música da tua própria língua. Estou a reler as Vinhas da Ira de Steinbeck, que li há 20 anos. Penso que deve ser lido agora, é incrível o que conta sobre a nossa época. Fala sobre a miséria e como classes sociais inteiras são rejeitadas por um capitalismo atroz.

Gostas da imprensa de moda, li algures…

Adoro a Moda.

O que te atrai? 

A Moda é uma maneira de nos inventarmos, de contar histórias. Quando cheguei a Paris, não tinha nenhum amigo, e havia uma coisa que fazia todos os dias – inventava um visual. Comprava roupas com muitas cores em lojas de segunda mão, subia e descia o Boulevard Saint Germain. Queria que olhassem para mim, tinha a impressão de estar a contar uma história, como se dissesse: "olhem eu estou aqui". A Moda é uma ferramenta de liberdade, uma ferramenta para se inventar, criar um destino. De manhã podes ser uma mulher intelectual de camisa, à tarde uma vamp, e à noite uma hippie. Podes ter todas as personalidades.

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Desde que ganhou o Prémio Goncourt com 'Canção Doce', bestseller mundial, que a sua literatura não tem parado de crescer. Há três anos começou a contar a história da sua família numa trilogia entre Marrocos e França. 'O País do Outros' passa o colonialismo a pente fino, dramas familiares, a raça ou a mestiçagem, o direito ao aborto e o desejo homossexual reprimido, entram numa equação que leva o leitor a viajar até esses tempos. 'Vejam Como Dançamos', o 2º volume, acaba de ser lançado e é um dos mais belos livros de 2022. Conversa pessoal na casa da escritora em Lisboa, onde passa parte do ano.

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