Mário Cordeiro: "Os pais não devem falar da sua vida sexual aos filhos e vice-versa."
O pediatra português acaba de lançar um novo livro sobre sexualidade na adolescência. Um guia para pais e filhos que, em plena pandemia, ganha um significado ainda maior.

Diz que podia ter sido jornalista, mas o facto de se ter tornado pediatra, como o pai, não o impediu de escrever sobre aquilo que pensa e sente, de uma perspectiva humana acima da médica. É isso que tem feito ao longo das últimas décadas, a par da sua profissão, e é assim que abora o tema do seu novo livro, Venha Conhecer o Lobo Mau (D. Quixote). Mário Cordeiro navega por caminhos complexos, belos mas também desafiantes, ao falar sobre sexualidade na adolescência. Chama-lhe "um guia para uma sexualidade gratificante e responsável dos mais jovens", e divide os capítulos deste mesmo guia em duas partes: afetos e riscos.
Nestas páginas, o pediatra analisa questões como as bases para uma sexualidade reconfortante e segura, homossexualidade, conceção, gravidez precoce, DST’s, pornografia ou abuso sexual, abordando ainda o polémico (e eterno) dilema "Lolita" com a naturalidade, a ponderação e a clareza que já lhe conhecemos. Sem nunca perder o toque criativo que lhe é próprio, com referências à Arte, citações de figuras do Cinema ou da Literatura que conduzem o leitor na urgência de o ler, Mário Cordeiro ensina-nos cada vez mais sobre aquilo a que chama "a reserva última da intimidade da pessoa": a sexualidade.

Nos seus livros fala semore em afetos e em riscos, abordados à luz de temas diferentes. Sendo este livro sobre a sexualidade dos jovens era imprescindível aprofundar ambos, dividindo-os em duas partes?
Por razões práticas, sim, e por saber da existência de alguma morbidez que existe no ser humano. O tal ser humano que para na autoestrada para ver um acidente mesmo que seja na faixa do lado. Não é um juízo de valor, é uma constatação. Mas isso faz com que, muitas vezes, os riscos - os perigos, as coisas que correm mal - sejam muito exaltados. Não quer com isto dizer que [relatar] um caso de abuso sexual ou de sex bullying não seja demais. Todavia, às vezes fala-se das coisas sem as racionalizar, e sem pensar que por detrás da sexualidade não estão apenas aberrações, coisas erradas, evitáveis e preveníveis (muitas delas). A sexualidade humana, e nomeadamente a sexualidade dos jovens, deve ser baseada nos afetos, no amor. Há um certo receio nos portugueses em falar de amor.


Porque é que diz isso?
Nas músicas românticas ainda escapa. Mas depois no dia-a-dia não se usa. O adoro-te ou ogosto de ti são expressões mais usadas do que um amo-te. Amar não é o mesmo que adorar ou gostar. Adoram-se Deuses, mas adoração não é bi-relacional, gosta-se, sim, mas gosta-se de um bom caril de gambas e é só. Amar é uma outra coisa, que tem o seu preço e um envolvimento brutal. É uma coisa muito intensa, de uma entrega e de uma procura enorme, a todos os níveis, psicológico, intelectual, físico. Resumindo, deve-se começar a falar de sexualidade pela parte boa, e sobretudo na adolescência, em que não há a experiência do amor adulto, e em que se está a viver uma transição para entender o que é uma relação afetiva amorosa. Começar uma coisa bela e levar com uma carrada de riscos, perigos e "lobos maus" dá vontade de não amar ninguém.
Na era da desinformação em que vivemos é mais fácil ou mais complexo, para os adolescentes, fazer este caminho de descoberta?

Pensa-se que os jovens sabem tudo. Ninguém sabe tudo. No livro, incluo perguntas de jovens, e há quem possa pensar: "mas eles não sabem isto? É incrível." Não, de facto não sabem. Uma das perguntas era de uma jovem que perguntava o que era a sífilis. É evidente que a podemos mandar ao Google, mas o facto de ela ter perguntado a um médico é porque queria saber uma resposta científica e concreta. E essa necessidade de procurar alguém que considerem credível para os esclarecer é muito importante. Ir ao Google é um ciclo vicioso. Há uma necessidade de saber, descodificar, este tipo de informações, sobretudo as da saúde.
Começa o livro por falar um pouco do conceito de Revolução Sexual em Portugal. Assistiu a essa transição? Há uma grande diferença?
Acho que há uma grande diferença. Em relação à minha juventude. Há 50 anos tinha 15 anos, estava no perfil do livro. A situação era outra, política e democraticamente. Para quem nasceu, felizmente, já em democracia, é muito diferente. Quem ouve falar hoje em liceus masculinos ou femininos? Se evoluímos! Hoje em dia, sabe-se que uma coisa é sabedoria, que é o que nos faz pensar, relativizar, tomar decisões, outra é o conhecimento, e outra é a informação. A informação sozinha "não faz nada". É sempre preciso alguém que possa fazer essa síntese. Saber o que os jovens pensam ou não, para depois corrigir. Além disso, é claro, acabamos sempre por entrar numa conversa subjetiva que tem a ver com a escala de valores e a moral das pessoas… e isso não deixa de ser arriscado.

Qual foi o capítulo mais arriscado, nesse sentido, que decidiu pôr no livro?
O das Lolitas. Estou mesmo a ver muita gente a dizer que eu defendo que um "velhadas" qualquer ande com uma miúda. É o tudo ou nada. O que eu pretendi foi dar informação, aos jovens e aos pais, rigorosa e científica.
Uma das abordagens do livro passa pelo lado "bonito", como lhe chama, da sexualidade. Da descoberta. Continua a ser difícil estabelecer esta conversa entre pais e filhos?

Os assuntos estão mais abordados, seja nos filmes, nas séries, nas revistas. Não esqueçamos que há um interdito que evita, ou que impede, que pais e filhos falem "tu cá, tu lá" destes assuntos. Não é a questão de ser adulto e jovem, é a questão da parentalidade, do status. Não é muito bom que os pais falem da sua vida sexual aos filhos e vice-versa. Pessoalmente não vejo benefícios nisso, falando de pormenores. O Freud falava desse interdito. Os filhos, e os sete mil milhões habitantes do planeta, acham que são especiais, únicos, importantes, irrepetíveis. "O mundo não seria igual sem nós", pensamos todos nós. Seguindo essa ideia, ninguém quer pensar que foi feito de uma forma "mecânica", tira toda a magia, banaliza-me, e as pessoas não querem nem devem ser banalizadas. Todos devemos ter consciência que valemos por nós".
Fala de amor como um sentimento que ou nos mantém à tona ou nos deixa atolados. É nessa polarização que às vezes se confundem certas noções?
É engraçado que quando falo de adolescência, tudo isto pode ser extrapolado até aos 100 anos. Há uma coisa que é a paixão, e os adolescentes estão numa idade em que tudo é muito intenso, sobretudo a nível sensorial. A paixão é, por definição, neurótica, obsessiva, compulsiva, disfuncional e patológica. Porque uma pessoa apaixonada só quer o objeto de paixão - não come, não dorme, não se interessa pelos estudos. Com uma intimidade e uma contemplação brutal. Olhar para a pessoa que é o nosso objeto de paixão é o que basta. Da obsessão evolui para o amor, que já permite a pessoa funcionar minimamente. Do alto da nossa arrogância de adultos, temos tendência a criticar um pouco essa paixão. Os pais de um jovem apaixonado têm de perceber que ele está apaixonado. Os jovens querem pais diferentes, porque amigos têm eles na escola, nas redes sociais.


Por falar em redes sociais. Quais foram as consequências da pandemia, nos adolescentes?
O que se perdeu foi uma coisa que eu considero extremamente necessária, que é a parte tátil, olfativa, a tal parte sensorial. Sendo os adolescentes seres extremamente sensoriais, com a pandemia, uma das coisas que aconteceu foi a obrigação de estarem em casa. Atividades muito físicas, seja ginástica ou boxe, passaram a fazer-se em casa com o instrutor/a no computador. Por tudo isso, a parte sensorial que exige o tocar, o cheirar, o mexer, o contemplar olhos nos olhos, as microexpressões, os abraços e beijos, ficou em standby. Esses impedimentos todos fazem com que haja uma lacuna muito grande, e com que os jovens aproveitem o grupo para fazer os chamados botellóns em que desanuviam. "Os jovens são uns irresponsáveis, eles não percebem que há uma pandemia", oiço muitas vezes, mas não devíamos julgá-los assim. Vivemos numa altura em que é urgente estar fisicamente com o outro.

Também fala sobre pornografia neste livro. O aumento da sua visualização foi uma das consequências da pandemia?
Há sites pornográficos acessíveis. Basta clicar num botão, no tal quadradinho do "aceito". Para mim, estar a fazer uma aprendizagem através da pornografia é muito mau, no que toca aos jovens. A pornografia, ao contrário do erotismo, não tem afetos. Uma coisa tão bela como a sexualidade é transformada numa coisa absolutamente mecânica. E mais: pior ainda são os estereótipos de exploração da mulher, de submissão de uma pessoa à outra, de algo de perverso em termos relacionais. Numa altura em que os estudos demonstram que a violência no namoro é uma coisa aceite por mais de metade dos jovens, isso é preocupante. Acham que a noção de namoro tem como ingrediente a violência. É uma coisa perigosíssima.


Os seus livros têm sempre referências artísticas. A vida conta-se pela Arte?
Os livros são obsessões minhas. Talvez por ter lido muito, quando era mais novo. Éramos oito irmãos, e todos disputavam quem lia primeiro os livros do Tio Patinhas. Também fui sempre escrevendo estes livros para pais, mas tento sempre ter uma forma coloquial e não muito médica. Romances, poesia, teatro são artes que me dão muito gozo. O mundo tem tanta coisa para se descrever e que faz pensar, que é uma pena não o apreciarmos. Também gosto do Cinema. Ia muito à sala Satélite, que fazia parte do monumental. Tinha 15 anos e ia a todas as sessões das 18h30, três vezes por semana. Dai também gostar de ilustrar os livros com essas referências.
