Juan Gabriel Vásquez: “A grande decisão que tomei, ao escrever o livro, foi desaparecer dele.”
O escritor colombiano passou por Lisboa, cidade protagonista nas primeiras páginas da sua nova história, para apresentar o mais recente livro: Olhar para trás. Um retrato das obsessões políticas, e do fascismo, através de uma história verdadeira.

O novo livro de Juan Gabriel Vásquez, Olhar para trás, vencedor do Prémio Bienal de Romance 2021 de Vargas Llosa e editado pela Alfaguara, aborda uma história de vida que se cruza com a trajetória política e económica do século XX. Um relato avassalador que tem tanto de investigação social e histórica como de retrato privado e íntimo, e que viaja por sítios como Lisboa ou Bogotá, passando pela China. É mais uma obra extraordinária daquele que é considerado um dos grandes autores contemporâneos da literatura em língua espanhola. Conversámos com o escritor colombiano no hotel Vintage, em Lisboa.
Uma das primeiras localizações mencionadas neste novo livro é Lisboa. É uma cidade que lhe diz muito?

É um país de que gosto muito, onde tenho amigos, cuja literatura me interessa. Por tudo isso foi maravilhoso que se tenha convertido no sítio onde começa e termina esta história. Há uma personagem no livro, Silvia Jardim, que é a mulher de Sergio Cabrero, e que é de Lisboa. O livro começa com um momento em que há uma crise nesta relação, e Sérgio foi a Lisboa para tentar reatá-la. É esse o principio da história.
Mas foi um acaso?
Não. Eu queria seguir os acontecimentos reais da vida que estava a narrar. Depois de muitos anos a falar do passado do Sérgio, da sua experiência na China comunista, na sua vivência como militante num movimento armado na Colômbia, fui-me dando conta que esse passado só teria sentido se o contasse a partir de um momento presente. Que foram os dias de outubro de 2016, quando Sérgio estava a passar por três problemas distintos. O seu pai acabava de morrer, o seu casamento com Silvia estava em crise, e o seu país estava em crise política. Na altura, o Sérgio disse-me que recebeu a notícia da morte do pai em Lisboa.

Regressou a Bogotá, o local onde nasceu, para escrever este romance. Também tem um lado seu, autobiográfico? Ou remete-se apenas para a vida de Sérgio?
O romance está todo construído sobre os feitos e os acontecimentos que Sérgio Cabrera me contou. E também a sua irmã. Nesse sentido, é um livro em que nada é inventado, e nada é imaginado por mim. O que fiz, como romancista, foi interpretar uma vida, mas fi-lo seguindo à letra todas as coisas que me foram contadas. A grande decisão que tomei, durante o processo de escrita do livro, foi desaparecer dele. Desaparecer como personagem, não falar de mim, e antes tentar sentir as emoções e a moralidade destas personagens, e contar o mundo a partir deles. Nesse sentido, não há nada de autobiográfico.


Como se cruzou com esta história? O que o levou a saber mais sobre ela?
Conheço o Sérgio há 20 anos. E nas nossas conversas de amigos, foi sendo cada vez mais claro que as histórias que ele contava, exóticas e estranhas, sobre a sua vida passada, na China de Mao, como guarda vermelho, como guerrilheiro na Colômbia, e da vida do seu pai, como exilado republicano na América Latina, me soavam a uma vida plena de aventuras, fascinante. Lentamente, essas histórias foram-se convertendo em algo mais. Para mim foi sendo mais claro que essas histórias contavam algo maior, mais importante. Que é a história do século XX. A história da nossa relação com as ideologias, do fanatismo, a nossa capacidade de sacrificar coisas muito importantes por uma causa. Acima de tudo, a história falava do país que a Colômbia é hoje, e explicava uma parte do nosso passado recente. Passaram muitas horas de conversas, claro.
O exercício de pesquisa de cada década, dentro do século passado, foi árduo? Como separa a informação histórica da escrita romancista?

Todos os acontecimentos do século XX já foram contados no jornalismo e na História. A mim sempre me encantou que um livro conte a história de uma forma que mais ninguém pode contar, que é o lado invisível, privado e íntimo destes feitos que são públicos. Para mim, os romances sempre foram histórias das emoções. O jornalista conta a história dos acontecimentos, os romances contam as histórias das emoções. Aquilo a que sempre aspiro é ser capaz de me introduzir na realidade emocional destas personagens para contar tudo aquilo que não se pode contar de outra maneira. E esse sim foi o esforço de imaginação que tive de fazer. O passado é um território que só pode ser explorado através das histórias que contamos. Sem os relatos jornalísticos e os relatos da ficção, da imaginação, nunca vamos entender tudo.
Qual é a primeira coisa que faz quando começa a escrever um livro?
Todos os meus livros começam com uma vivência, algo que me ocorre, uma pessoa que conheço, um relato que oiço. E a partir dai há um processo de muitos anos em que uma curiosidade se vai transformando numa obsessão. É um processo muito lento. Quando esse tempo passa há um tempo em que sou "jornalista". Saio de casa, entrevisto pessoas, vou aos lugares onde tudo aconteceu para ver como são e senti-los, e faço um trabalho de historiador que passa por investigar, procurar objetos antigos da época, consultar documentos, vou às bibliotecas, faço investigações. Depois disso tudo fecho-me no meu estúdio para escrever. Jornalismo, historiografia, escrita.

Onde escreve?
Aprendi a escrever em viagens, mas não consigo escrever qualquer parte do livro em viagem. Só quando já vou a meio da história. A primeira parte tem que ser no meu estúdio, onde estou rodeado dos meus livros e dos meus documentos. O começo é sempre o mais difícil. Quando a história flui, posso escrever num avião, num hotel… E para terminar um livro também gosto de voltar a casa. Mas nem sempre é assim. Aprendi a escrever em qualquer parte, só preciso de silêncio, trabalho com tampões nos ouvidos (risos).
Porque decidiu tornar-se escritor?
Foi sempre parte da minha vida. Escrevo desde pequeno. Cresci numa família onde existia a tradição da advocacia, e senti que devia continuar a tradição. Entrei na faculdade de Direito e fiz o curso. A meio, descobri que a única coisa que me interessava era a literatura. Terminei o curso de Direito por disciplina e masoquismo, mas já sabendo que era escrever que eu gostava. Ler e escrever sempre foi uma maneira de estar no mundo, um refúgio em momentos difíceis.
Quando começou a escrever este livro?
Pouco antes da pandemia. Fui um dos primeiros contagiados na Colômbia, ainda não se sabia o que era isto. Foram momentos de muita ansiedade. E ter este romance foi uma ajuda imensa. Por um lado, o romance passa por contar a vida de outra pessoa, e o facto de estar a ordenar a vida de outrem ajudou-me a lidar melhor com a minha desordem.
O que é que deu mais luta, nestes 10 anos?
Tudo foi terrivelmente difícil. Para mim, foi muito importante ter o mesmo nível de rigor e de exactidão com tudo. Era tão importante para mim a data de um acontecimento político na China do Mao como a marca dos cigarros que Sérgio Cabrera fumava quando beija uma namorada da adolescência. Foi uma maneira de prestar homenagem a esta vida. Se tivermos em conta que é um romance que se desenrola na Espanha da Guerra Civil, na China de Mao e na selva colombiana dos movimentos revolucionários, entendemos o quão difícil foi. Não conhecia nenhum destes "lugares". Viajei à China, estive na selva colombina algumas vezes…
Que lhe dizem as pessoas que viveram parte desses acontecimentos e lugares?
Passou-se algo fascinante. Pessoas que viveram experiências parecidas, que foram revolucionários nos anos 60 ou que conheceram a revolução cultural da China, escrevem a Sérgio. Dizem: "gostei muito do seu livro". Isso encanta-me. Ele responde sempre: "não, a única coisa que fiz foi viver!" De resto, sinto muita admiração por gente como o Sérgio e a sua irmã. Que converteram muita energia em esquecer algo, porque é difícil e é doloroso, e que um dia se sentam para recordar e que alguém o escreve. Para mim, o livro é a homenagem que eu posso fazer a este ato de generosidade e valentia.
Há alguma parte das suas vidas que o tenha fascinado mais, em particular?
Sim, para mim é claro. Durante uma das minhas conversas com Sérgio, dei conta que falar com ele era como falar com um livro meu. Porque o que me atrai numa história tem muito a ver com a invasão das forças públicas nas vidas privadas. É uma coisa que é transversal em todos os meus livros. Os escritores têm algumas obsessões e essa é uma das minhas.
Veremos a pandemia retratada num livro seu, daqui a uns anos?
Os meus livros demoram tempo. Conheci esta história em 1998, e só a comecei a escrever em 2018. Se a pandemia se irá converter num romance, só o saberemos daqui a uma década.
Sente-se respeito, quanto a esse tempo de escrita, por parte dos leitores e das editoras? Há uma pressão implícita?
Nada me deve pressionar para escrever, não sei fazer de outra forma. Sou muito trabalhador, não consigo estar descansado. Não entendo a ideia de pausa ou de férias. É assim que eu sou. A pandemia confirmou em termos práticos aquilo que já dizemos há muito tempo. Tudo aquilo que consideramos Cultura, do teatro à literatura, não é supérfluo, não é um luxo. Durante a pandemia converteu-se no alimento de muita gente, foi a diferença entre o desequilíbrio e o equilíbrio. Foi a Cultura que nos manteve em contacto com o lado mais positivo da Humanidade.
