Crush #3. Telegrama de férias: corpos clamam liberdade
Como transformar a atualidade em expressão artística? Pode a vida nos arredores de Lisboa inspirar objetos feitos em cerâmica? O que faz uma canção tornar-se num slogan feminista? E será a joalharia capaz de nos contar histórias que vão além do luxo?

Um Crush é alguém por quem serias capaz de fazer qualquer coisa. Alguém que não consegues esquecer. Alguém em quem estás sempre a pensar.A arte de Sreya: música, cerâmica, pintura e ilustração num só corpo


A Almirante Reis parece anestesiada. O calor de julho e a variante Delta esvaziaram as ruas deste bairro, onde a artista lisboeta Sreya trabalha nas suas cerâmicas e ensaia músicas quando tem concertos agendados. Estamos na Associação Goela, onde vários artistas se encontram todos os dias para trabalhar. Esta zona do centro da cidade respira liberdade criativa, resiste ainda à gentrificação imobiliária, e agora ao alerta pandémico.
Sreya recebe-nos de máscara no rosto, veste um top de lycra que se transforma num fato de treino em tons de azul, num misto de feminino e masculino, o seu estilo é também uma assinatura de originalidade. Desde 2017, que as letras das suas músicas não param de nos intrigar, chamava-se Emocional, o primeiro álbum com canções produzidas pelo amigo dos dias do liceu, Conan Osíris. Seguiu-se, em 2020, o álbum Cãezinha-Gatinha, inspirou algum entusiasmo na imprensa especializada, antes de o mundo se fechar em casa no lockdown. Estas canções nasciam de sentimentos urgentes, precisavam de sair do seu corpo. "Eu digo que tudo o que eu faço são autorretratos, as músicas são sempre sobre mim e sobre o meu ponto de vista. E acabo por ter um universo, assim como uma janela, onde cabe a música, a pintura e o graffiti. Está tudo interligado". No atelier de Sreya descobrimos a cerâmica, "as minhas peças são o oposto do design, como faço tudo à mão, as coisas acabam por ficar toscas", diz-nos. À nossa frente temos objetos únicos. Há pratos para queimar incenso com a inscrição "boas vibes", há fruteiras com dragões pintados, há bitoques recriados em loiça, há jarras com o comboio da linha de Sintra. O Cacém e os arredores de Lisboa, apoderaram-se da cerâmica de Sreya numa coleção em que a importância do graffitti é reivindicada, "salvou-me a vida", acrescenta.
Da sua adolescência surgem relatos de uma criatividade sem fim, ao lado de Conan Osíris e Ruben de Sá Osório, stylist de Moda com quem colabora inúmeras vezes em produções. Sreya tem também um irmão, 7 anos mais novo, o bailarino João Reis Moreira, que acompanhou Conan em coreografias que fizeram história.


Que água criativa se bebia no bairro onde cresceram? —"Olha o Tiago (Conan Osíris) foi para a nossa escola no 7º ano, ele veio dos Olivais … Não sei o que terá acontecido para sermos assim. Os comboios da linha de Sintra, que estão nos meus potes agora, são os mesmos que eu via todos os dias, eu vivia em frente à linha do comboio quando era miúda … O Tiago tem muita influência de kuduro na música dele. Nos intervalos, a malta dançava aquilo e era assim uma coisa incrível. É óbvio, nós fomos absorvendo o que se passava." Há no entanto uma mágoa, tudo poderia ter acontecido mais rápido, "quando se está num subúrbio, apesar de ser muito enriquecedor e existir uma grande multiculturalidade, a verdade é que temos muito pouco acesso a cultura. Os 20 minutos de distância que nos separam da cidade fazem diferença. Nós não tínhamos um teatro ou cinema, e as pessoas iam para centros comerciais passar o tempo. No nosso grupo, tínhamos desde cedo ciente que queríamos fazer coisas, só que o caminho foi mais longo". Dia 20 de agosto, Sreya lança a sua colaboração com o músico Bejaflor, num som novo. Ela idealiza quebrar as barreiras que existem entre o mainstream e o underground, "sonoramente quero trabalhar com mais pessoas e sobretudo, ser quem eu quiser".


Saímos do atelier de cerâmica, e ao ar livre a artista tira a máscara para fumar, tem os lábios pintados de um batom vermelho forte. Despedimo-nos a olhar para o seu sorriso. O carisma está em todos os detalhes.
O sol e a energia pós-#MeToo nas músicas de Clara Luciani


A imprensa em Portugal continua a ignorar a beleza do novo disco de Clara Luciani, e o álbum Coeur já está disponível desde junho. Porque se escreve tão pouco sobre Clara aqui? Por cantar em francês? A jovem cantora de 29 anos podia ser uma descendente direta de Françoise Hardy. Tornou-se um fenómeno musical em 2017, com a sua versão de The Bay dos britânicos Metronomy. O sucesso estrondoso aconteceria meses depois, com a letra de La Grenade — a voz de Clara tornou-se um hino indissociável da luta feminista. Nas manifestações de rua que o movimento #MeToo desencadeou e nas batalhas contra a violência feita às mulheres, frases deste single multiplicavam-se em cartazes, escreveu-se: "Tu aí, porque olhas assim para mim, nunca viste uma mulher a lutar (…) Tem cuidado contigo, por baixo do meus seios tenho uma granada de mão". Recentemente, Clara Luciani foi capa da Vanity Fair francesa e reagia ao fenómeno comovida, "fiquei com lágrimas nos olhos, foi inesperado isto da canção se tornar um slogan com capacidade de servir a causa feminista, foi vertiginoso ver aquelas mulheres a manifestarem-se de cartaz na mão." O seu primeiro álbum Saint Victoire não largou as tabelas dos mais ouvidos, com streamings infinitos.
Para escrever "Coeur", Clara tentou fugir à pressão da segunda obra. Fechou-se numa casa no sul de França onde cresceu, passou os dias a ver os seus amigos de infância. A vida mediática, dos últimos anos, não mudou os que a conheciam desde sempre, as relações humanas pareciam-lhe intactas de novo. Há vida real nos textos de Clara Luciani. Graças aos produtores electrónicos Yuksek e Breakbot as primeiras canções do álbum apoia-se em sonoridades disco, por momentos sentimos a energia das produções de Nile Rodgers para os Daft Punk.

Clara ironiza a sua relação amorosa com o cantor dos Franz Ferdinand, Alex Kapranos, no single Le Chanteur. O refrão diz para não nos apaixonarmos por rock stars, "não são bem humanos, são mais cometas ou estrelas cadentes. Tentar casar com alguém desta estirpe é querer enjaular um leão". A pop de Clara Luciani é consistente, melódica e faz do quotidiano poesia. É obrigatório ouvir, não podemos deixar que a língua de Molière nos afaste de pistas sonoras tão poderosas.
Peter Castro e os seu diários do mundo vago


"Quando tens todos os dias mais de um milhar de pessoas a seguir-te, a coisa já é séria", diz Peter Castro a propósito do mundo online. Tem 26 anos, conversa connosco numa videochamada a partir da sua casa em Vila Nova de Gaia. Está no mesmo décor a que se habituaram os quase 20 mil seguidores de Instagram que o ouvem através da sua página opiniões e histórias de vida. Os seus relatos intensificaram-se durante o primeiro lockdown, em 2020. Peter comenta desde então, nas redes sociais, a atualidade, sempre sem filtros verbais. Como se do seu próprio canal de televisão se tratasse, os seus posts tanto podem ser políticos como dar dicas de receitas de cozinha.
A sua pronúncia do norte é inesquecível, surge no meio de calão, onde os estrangeirismos se misturam com expressões tipicamente portuguesas. Recentemente ficou viral. O vídeo em que questionava a sanidade dos negacionistas antivacinas e a desinformação que se apoderou do mundo foi partilhado por todo o tipo de pessoas. A voz de Peter chega a um universo de pessoas gigante, "alguns seguem-me por causa da política, outros por causa das questões de género, alguns vêem pelos memes", conta descontraído. Veste uma t-shirt de aspecto vintage, usa bigode.
"A internet é o oráculo dos deuses, se tu tens uma pergunta e não sabes a resposta podes perguntar ao Google, e ele responde-te. Nós não temos noção do impacto que isso tem na vida. Como seria o mundo se todas as perguntas tivessem respostas automáticas?", diz Peter, e continua de imediato, — "esse mundo nós já o vivemos. É muito difícil vivermos com todas as possibilidades… É miraculoso e tem o seu lado horroroso (...) A vontade de questionar todas as estruturas, acabou por destruir as convenções e leva-nos aos poucos a avançar para um perigoso conflito civil."
Peter reflete esta e outras questões no seu Diário de um Mundo Vago, livro escrito por si durante o auge da pandemia. Disponível em pdf, podemos pedir a Peter que nos dê acesso a ele através das suas páginas na web. "São formatos modernos", ironiza.
Mergulhamos assim na cabeça de um millennial, que tanto cita o dramaturgo Brecht, o escritor Camus ou evoca a cantora Whitney Houston. Os estudos que fez em artes e o interesse que tem por História misturam referências num longo desabafo. O livro lê-se num ápice. Nele é relatada a angústia causada pelas mortes anunciadas nos noticiários, e o mergulho de Peter no confinamento e no distanciamento físico (foi o que mais lhe custou) que apanhou a população mundial de surpresa.
"O facto de ninguém nos ter dito que isto iria acontecer, foi como acordar num mundo onde não existia nenhum adulto na sala", conclui. "O mundo ficou mais inseguro." Peter sempre escreveu, mas foi como Dj que se tornou figura de relevo nas noites do Porto. "As pessoas podem pensar que vivo na crista da onda, mas é um alter-ego. Eu sou uma pessoa rigorosa que planeia tudo com muita antecedência."
Evocamos Andy Warhol e a frase que se tornou indissociável do artista que inventou a Pop Art, "no futuro todos seremos famosos durante 15 minutos". Adaptamos a ideia aos tempos da internet e ao ativismo que se multiplica nas redes. No futuro todos vamos estar agarrados a causas virtualmente? E na realidade? Peter fala dos que, como ele, se tornaram adultos depois do milénio mudar. "A nossa geração é inerentemente uma luta social. E a força das mudanças sociais é tão forte que vai bater em toda a gente. O grupo de pessoas que está cansado dos valores obsoletos e anacrónicos do século XX é muito largo e cada vez maior. Há coisas que nós não queremos mais. A emancipação feminina é gigantesca e não podes não ter uma opinião sobre isso…Não podes não ter uma opinião sobre a igualdade de género ou sobre o antifascismo …Nem que a tua opinião seja dizer, ‘não quero falar sobre isso’. Nós somos uma geração de guerra ideológica." A voz de Peter vai sair da rede virtual em breve, é um pressentimento. Merece um ecrã maior, enquanto cresce nas ruas.
A joalharia com mensagens por Frank Ocean

"Nunca me esqueço de que o meu nome de família é um subproduto da escravatura americana", dizia Frank Ocean ao suplemento How To Spend It, do Financial Times, no começo de agosto. O apelido real de Ocean é Breaux, foi atribuído aos africanos levados pelos franceses para a zona do Louisiana, na América em 1718 — viajavam como escravos. "Nunca me esqueço de que não tenho acesso ao meu nome verdadeiro. Não consigo rastrear a minha herança do passado, e é por isso que estou interessado em criar coisas que sejam minhas, que permaneçam minhas e pertençam à minha família. Coisas que eu posso passar em legado. " Ocean lançava assim a sua linha de joalharia, depois de dois anos em total silêncio. O cantor regressa a falar de design e luxo, sem abordar o seu futuro na música, foca-se apenas na força que a sua voz tem na passagem de mensagens. Afinal foi ele o primeiro rapper da História a assumir-se como gay.
As jóias de Ocean estão repletas de cor, lembram o universo de Keith Haring. Não são vendidas online, apenas lhes podemos tocar num encontro presencial em Nova Iorque. Quando questionado sobre os preços elevados, Frank lança uma farpa, "não quero que o trabalho da minha equipa seja mais barato que o da Cartier." Ocean continua a destacar-se na forma como contorna os paradigmas de criação da atualidade, nunca está onde é esperado. Homer é o nome da marca, numa referência a Homero. Odisseias sem fim prometidas e há uma nova colaboração com a Prada prestes a chegar às lojas.
