Entrevista Jodie Comer. “A História tem apagado as vozes das mulheres”
Em ‘O Último Duelo’ a atriz deixa definitivamente de lado a deliciosa assassina da série ‘Killing Eve’ e entra oficialmente num novo patamar.
Chamou a nossa atenção ao interpretar a sociopata com mais estilo de televisão, na série Killing Eve, e desde então recebeu quase tantos prémios quanto a sua personagem acumulou mortes espetaculares. A assassina Villanelle terá direto à uma quarta e última temporada, a chegar em 2022, mas Jodie Comer não faz tensão de parar. A atriz britânica tem-se dedicado a criar um invejável currículo cinematográfico, que inclui Star Wars: The Rise of Skywalker, a comédia Free Guy e dois filmes assinados por Ridley Scott. Napoleon, ainda sem data de estreia, e O Último Duelo, um épico medieval baseado no romance com o mesmo nome, levemente inspirado em factos reais, e que acaba de chegar a Portugal.


A atriz é Marguerite de Carrouges, uma das três perspectivas em que o filme se divide, à qual se junta a de Matt Damon, marido de Marguerite, e Adam Driver, o homem que esta acusa de violação. É um filme duro, que reflete sobre as ideias de género, sexualidade e religião na França de 1386, e que ecoa na atualidade como um murro no estomago.
O que a cativou neste filme?
Senti-me verdadeiramente empoderada para dar voz a esta mulher. Quando se analisa a História em geral, as vozes e perspetivas das mulheres são apagadas… raramente ouvimos as coisas a partir do seu ponto de vista, e com este filme foi-me dada essa oportunidade. Foi isso que realmente me empolgou no desempenho da personagem Marguerite. Quando comecei a ler o livro, havia apenas uma pintura dela e, com o passar do tempo, foi-se desintegrando e já nem sequer existe. E mesmo agora, isso é triste, mas, ainda assim, há tantas provas da sua presença no mundo… por isso, sim, adorei a oportunidade de fazer este papel.

Qual foi a sua reação inicial ao guião?
Adorei o guião. Antes disso, disseram-me que Ridley Scott me queria conhecer e eu respondi: ‘Ok, sim, por favor!’ Depois, quando recebi o guião e vi que a história era contada a partir de três perspetivas… Sabemos que duas pessoas podem viver uma experiência e terem relatos muito diferentes sobre ela, mas, em última análise, há apenas uma verdade, e achei que era bastante inteligente o facto de terem deixado a perspetiva dela para o fim. Foi revigorante e achei que, se fosse tudo executado da maneira certa, poderia ser verdadeiramente marcante.


Como se preparou para o papel?
O Último Duelo é baseado num livro com o mesmo nome. Passa-se na França Medieval e é sobre uma jovem mulher que denuncia que um homem a violou. A história gira, em última análise, em torno da sua luta por justiça numa altura em que as mulheres eram subvalorizadas e não eram tidas em consideração. Fiz muita pesquisa sobre aquela época para tentar compreender de que forma é que as mulheres eram tratadas naquela altura. Um aspeto bastante revelador era que se uma mulher dissesse que tinha sido violada ou assediada, o seu marido seria compensado pelo embaraço que ela lhe tinha causado, o que é absurdo e horrível, e acho que isso nos dá uma perspetiva muito clara daquilo que ela poderia ter enfrentado quando contou aquilo que lhe tinha acontecido.
Pode falar-nos sobre as primeiras conversas que teve com Ridley Scott acerca da visão que ele tinha da personagem de Marguerite?

Uma coisa maravilhosa acerca de Ridley é que ele me deu toda a liberdade na interpretação do papel. Tive umas primeiras conversas com ele, sobre a época e a formalidade da altura e sobre o que teria acontecido depois, e ele transborda de conhecimentos. Por isso, foi fantástico lembrar-me essas coisas à medida que avançávamos. Mas, em relação à criação da personagem Marguerite, ele disse-me ‘liberta a tua imaginação, rapariga, faz o que quiseres’ – e isso foi algo de que gostei mesmo muito.
Como é que descreveria a Marguerite? Como era a sua relação com o marido?
Na primeira vez que ela surge em cena, está a ser apresentada, pelo seu pai, a Jean de Carrouges. Jean estava a acabar de chegar de uma batalha e o que se passa é praticamente um negócio; o pai dela está a tentar oferecê-la em casamento. As coisas, neste campo, funcionavam um pouco como as trocas comerciais daquela época, o que nos dá a ideia que ela tinha do casamento. Por isso, ela era incrivelmente inocente – e essa característica rapidamente lhe é arrancada. O que mais adoro nela é a sua força e resiliência. Ela nada tinha a ganhar e tinha tudo a perder ao descrever a violação da forma como o fez, algo que considero impressionante.

A verdade é que era tudo muito triste. Não era um casamento feliz. O casamento tinha sido, essencialmente, uma transação e não uma união nascida do amor, e conseguimos perceber isso perfeitamente. Acho que ela o respeitava, mas não era, decididamente, um casamento feliz. Eles tinham também o peso adicional de não conseguirem ter filhos, sendo ela fortemente responsabilizada por isso. Depois da violação, ela engravida e, é claro, cria-se a dúvida sobre quem é o pai. E depois surge outra complicação: é que naquele tempo acreditava-se que a única maneira de se poder conceber um filho era se a mulher tivesse um orgasmo, o que é insano – e que depois suscita a questão de eles crerem que a Marguerite tinha gostado do que aconteceu entre ela e Jacques Le Gris. E ela é confrontada com tudo isto em tribunal. Ela viu-se rodeada de homens que lhe fizeram perguntas muito íntimas, o que é verdadeiramente confrontador.

Fale-nos sobre a recusa de Marguerite em ceder a toda esta pressão e contar a sua versão dos factos.

A Marguerite diz que não vai ficar calada, mas ela também conhece a realidade e sabe que a única forma de poder enfrentar o violador e, esperançosamente, esperar que se faça justiça, é através do seu marido; o seu marido tem de a defender. Adoro o facto de ela conseguir manter o controlo e de tudo o que faz para não perder esse controlo. Ela fá-lo até ao fim. E ela tem uma fala, no final do filme, mesmo antes do duelo, em que acaba de ter o bebé e diz: ‘se eu tivesse sabido o que estava para vir, acredito que teria feito o que as mulheres antes de mim fizeram, e que é nada’. E acho que, naquele momento, ela não está propriamente desacreditada; ela apenas compreende, finalmente, o porquê de tantas mulheres terem ficado caladas; é por causa da magnitude do que está em jogo. A sua vida está em jogo. A vida do bebé está em jogo. Por isso, ela é uma heroína da sua própria história.
Como foi trabalhar com Matt Damon no papel de Jean de Carrouges? O que trouxe ele ao papel?
O Matt é maravilhoso… é um tipo incrível. E o que foi fantástico relativamente aos três argumentistas – Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt – foi o facto de me terem incluído nas conversas. Houve muitas noites em que nos sentámos à volta da mesa e eles começavam a fazer-me perguntas sobre o meu instinto ou se sentia que algo não estava bem. E o Matt é um tipo tão incrível… muitas das nossas cenas são de choque frontal e de grande frieza, mas demo-nos muito bem na vida real.

Aquilo de que gosto quando observo o desempenho do Matt é que há sempre algo de gentil quando o vemos no ecrã. Sentimos que, de certa forma, o conhecemos. E esta personagem que ele agora interpreta é a de um homem muito duro, muito frio e muito fechado sobre si mesmo, pelo que foi espetacular vê-lo dar-lhe vida – e acho que nunca o tinha visto neste registo. E, é claro, os trajes e a maquilhagem transformam-nos imenso.

E sobre Adam Driver no papel de Jacques Le Gris?
O Adam também é maravilhoso. Tivemos cenas muito difíceis, mas ele é uma pessoa com quem é muito fácil contracenar. Ele dava gargalhadas, o que é bom. Como já referi, as cenas eram tão sombrias que era agradável ter esse alívio entre filmagens. Mas as cenas que fizemos juntos – e as pessoas saberão de que cenas estou a falar quando virem o filme – são provavelmente as cenas de que mais me orgulho. Nós congregámos esforços e dissemos um ao outro em que é que nos sentíamos confortáveis. E dissemos: vamos a isto e vamos certificar-nos de que isto soa a verdadeiro, autêntico e verídico. Por isso, foi realmente fantástico estar com alguém com quem criamos uma boa ligação e a quem não temos de dizer muita coisa. Havia um entendimento silencioso. E, é claro, eu era uma grande fã dele, por isso tive de pôr esse sentimento de lado e agir de forma fria durante alguns meses.
De que forma é que Ridley Scott é o realizador perfeito para esta história?
O Ridley é muito meticuloso e produz obras-primas. A beleza desta história é que tem a dimensão, a escala e a grandeza que procuramos quando vemos um filme de Ridley Scott. Mas, a questão central é o facto de se tratar de uma história humana verídica; é também uma história que passa uma mensagem dura e desconfortável, por isso sinto que, nesse sentido, consegui o melhor dos dois mundos. O filme é muito bonito de se assistir; rodámos em França e depois estivemos na Irlanda, em seguida estivemos num estúdio e ele levou-me a dar uma volta pelos cenários e mostrou-me as pedras do pavimento, que eram autênticos moldes das pedras verdadeiras, que eles fizeram para os cenários…. e eram bastante idênticas. Ele desenha os seus próprios argumentos, por isso é verdadeiramente um visionário. Poder ser escolhida para trabalhar com ele, e ser dirigida por ele, era um grande sonho que eu tinha.
Quais foram os principais desafios com que se deparou neste filme?
Acho que o meu maior desafio neste projeto, pelo facto de o filme ser criado a partir de perspetivas, foi aprender a interiorizar as perspetivas das outras personagens. Podia haver dias em que estávamos a filmar – e essa é também a beleza de como o guião foi escrito – e em que havia múltiplas cenas escritas duas vezes, com o mesmo diálogo, mas que tinham de ser feitas de maneiras diferentes [o filme divide-se em três partes, onde é apresentada a perspetiva de cada uma das personagens principais]. Por isso, percebi que, no papel de Marguerite, tinha muitas vezes de saltar para as visões e memórias de LeGris e de Carrouges sobre aquilo que tinha acontecido. Nalguns dias era um pouco confuso, pois estava a mergulhar naquilo que essas personagens precisavam de mim e dava comigo a pensar se estaria a fazer o que era preciso de modo a que a minha história parecesse verdadeira.
O que espera que os espetadores vejam no filme?
Bem, antes de mais, espero que gostem do filme. É uma experiência dura e desconfortável, mas não acho que isso signifique que devemos estar sempre a evitar contar estas histórias. Na minha opinião, o filme deixa-nos constantemente a pensar e espero que nos faça refletir, a todos nós, um pouco mais aprofundadamente sobre as nossas próprias experiências com a vida – como é que agimos e o que retirámos das nossas experiências – ou que questionemos as nossas próprias ações. Espero que faça nascer um diálogo a um nível mais íntimo e a uma escala muito maior. Sei que, de entre quem já o viu, houve pessoas que começaram a debater a meio do filme aquilo que se estava a passar, e acho fantástico quando um filme consegue provocar essa reação.
