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Vera Lagoa, uma mulher dos diabos

'Vera Lagoa, Um Diabo de Saias', da historiadora Maria João da Câmara, é uma cuidada e pormenorizada biografia sobre uma das mulheres mais selvagens do jornalismo de sociedade português - que ela transformou, nos anos 60, num debate público de mentalidades e de gosto.

Foto: D.R
12 de janeiro de 2022 às 19:47 Patrícia Barnabé

Portugal era um país pobre e fechado sobre a ditadura, católico, preconceituoso e cinzento, um pouco atrasado do resto da Europa onde já sopravam ideias novas. Nascida em 1917, Maria Armanda Falcão tinha uma personalidade extrovertida e luminosa, uma curiosidade insaciável, corajosa e frontal, por vezes em inconsequente desafio, mas era tudo o que não se encontrava por cá. Francisco Balsemão, o então jovem director do Diário Popular, percebeu a sua rara perspicácia e chamou-a para escrever uma crónica mundana que apelidou de Bisbilhotices, contra a sua vontade. Ela decidiu assinar como Vera, de verdade, e o então amigo Luís de Sttau Monteiro acrescentou o apelido do vinho que estavam a beber no momento, Lagoa.

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Assim nasce das comentadoras mais argutas e temidas da sociedade portuguesa de finais do Estado Novo. Se numa escala literária e erudita ninguém desmentira as observações jocosas de um Eça de Queiroz no século XIX, para nomear o melhor, considerações, ainda que mundanas, vindas de uma mulher eram absolutamente inéditas, para a maioria inaceitáveis, no século XX. E Maria Armanda não descendia de uma família abastada, nem era a esposa de um apelido bem colocado, e só tinha a quarta classe, trabalhara como secretária. Não só se sustentou a vida inteira, como se divorciou nos anos 40 e casou com um homem muito mais novo, José Manuel Tengarrinha, escolhas muito raras ainda hoje para a maioria.

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Maria João Câmara investigou e escreveu exemplarmente esta biografia que saiu no último verão, pela Oficina do Livro, quando se assinalaram 25 anos da morte de Maria Armanda. Doutorada em História pela Universidade Nova de Lisboa, publica regularmente trabalhos científicos nessa área, recorrendo a arquivos históricos pessoais, que inspiram biografias como a de Maria José Nogueira Pinto ou de Sanches Osório, por exemplo, mas também romances. Lembra-se de ter ouvido falar em Vera Lagoa pela mãe, como tantas de nós: "Estávamos no tempo do PREC, o país à beira de uma guerra civil e a pouco tempo de ser intervencionado pelo FMI. Debaixo de uma crise económica gravíssima, com o drama dos chamados "retornados" debaixo dos nossos olhos. Apesar de ser ainda pequena, recordo tudo isto e recordo especialmente como a minha mãe lia os artigos da Vera Lagoa e quase sempre lhe fazia um enorme elogio. Dizia que era das poucas pessoas que, nesses tempos conturbados, não deixava nada por dizer." A autora regressa a ela no decurso de uma investigação. "Ao consultar um periódico deparei-me com um artigo da Vera Lagoa em que esta defendia Raúl Rego. Aí questionei-me: mas, afinal, quem foi esta mulher? Foi o ponto de partida".

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Embora muitos considerassem a escrita de Vera Lagoa um exercício de futilidade, que também o sabia ser, a partir da observação social e da espuma dos dias, Vera Lagoa trazia à tona o que não se mencionava às mesas de jantar (e continua a não mencionar): a natureza humana, nas suas tontarias e genialidades, nas incongruências, rivalidades e superficialidade. "O intuitivo é uma forma superior de conhecimento porque não mete muito o raciocínio", o mesmo que "estraga as coisas porque não as apanha em amplidão" descreve o conhecido jornalista Fernando Dacosta no livro. Para ele, Maria Armanda "era um caso de intuição como era Amália, a Natália [Correia], um pouco esotéricas… E era culta!" Porque era observadora e lia bastante, sabia chegar às pessoas com uma escrita coloquial e fresca e não poupava ninguém, para criticar ou para elogiar, do empregado de mesa à senhora de boas famílias, do político ao crítico cultural. E o seu sucesso (e impacto) deveu-se muito ao facto de não ter medo de dizer nomes.

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Brincava com os "penduricalhos" que enchiam os carros e as casas portuguesas, com os vestidos e penteados das madames nos eventos que tinham sempre mais pessoas do que as convidadas. Descreve a inauguração do Galeto como "uma boda gitana. Centenas de pessoas devoravam centenas de quilos de comida e emborcavam litros e litros de bebida. (…) O espectáculo daquelas famílias comendo por dias (ou semanas) era espantoso." Ou uma noite angolana onde "desapareceram quilos de lagostas, caranguejos, papaias, ananases… Até a decoração (…) houve até quem levasse as marimbas com que os músicos tocavam." Ou o desfile de Carmen Modas e Elisabeth Boutiques, no Ritz, onde se reuniram 319 mulheres: "Submerso naquele mar de peles (o calor era de morte, mas não as tiravam), naquele mar de cabelos loiros (uma quantidade infinita de loiras), naquele mar feminino", o desfile era um pormenor. (…) a pressa que demonstravam, não era para ver o desfile. Era para comer. Acabado o lanche lá houve algum silêncio."

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Como descreve Maria João Câmara, "a sua arrogância podia ser demolidora, mas a sua humildade também". Vera Lagoa chegou mesmo a escrever que decidiu "elogiar menos os que disso não precisam" e "mais os que não recebem louvores", em quem nunca ninguém repara. Do Sr Pires, técnico de som da Emissora Nacional, a D. Gabriela da perfumaria Ramiro Leão ou a D. Palmira do Paris em Lisboa. "Insisto em dizer que não espero subserviência. Detesto-a. Odeio ver rastejar perto de mim. Perto e longe… Do que gosto é de amabilidade e de – porque não dizê-lo – solidariedade."

Era muito patriota e foi das primeiras a perceber o grande potencial de Portugal para o turismo e a importância de renovar os bairros típicos de Lisboa. Começou a escrever sobre restaurantes e outros prazeres da vida antes de existir jornalismo de lifestyle, e uma das suas batalhas foi pelo bom serviço e a satisfação do cliente. Foi a única jornalista convidada a observar por dentro grandes festas como a da Quinta Patiño, a da Quinta do Vinagre dos Schlumberger e na Herdade do Zambujal de Manuel Vinhas.

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Não se cansava de reparar na fragilidade dos "cobardes", nos "agachados nas moitas", nos censores, ao mesmo tempo que privava com a alta sociedade ou com os amigos Natália Correia, Ary dos Santos ou David Mourão-Ferreira, entre muitos outros nomes sonantes. Angariou paixões assolapadas e ódios de estimação, porque era indiscreta, metediça, mordaz. O público esteve anos a indagar sobre quem seria por detrás das suas destemidas tiradas e depois multiplicaram-se as madeixas brancas como a sua e os golpes baixos. Recebia cartas zangadas, outras elogiosas, nunca era indiferente: "Num país obrigado a monólogo, você fez a voz do diálogo. Obrigada por a ter feito. E a ovação de todos os homens livres para a sua indómita personalidade", escreveu-lhe um admirador.

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"Maria Armanda nunca abandonou nem o ideal nem o combate por uma sociedade mais justa", lemos em Vera Lagoa, um diabo de saias. A própria escreveu: "Não me move o ódio, a inveja, o desejo de exibicionismo. Move-me, sim, a vontade de chamar a atenção para as coisas belas da nossa terra (…) melhorar o gosto das nossas vedetas. (…) move-me, sim, a vontade de anular o machismo do homem português. Move-me sim, a vontade de elevar a mulher. Move-me sim, a vontade de dar consciência a essa mesma mulher. (…) Move-me, sim, a vontade de apagar os vestígios (evidentes) do possidonismo em vários campos (…)." E descreve a "dificuldade" que foi as mulheres experimentam ser jornalistas no seu tempo, "é doloroso para uma mulher que trabalha de manhã à noite nessa profissão, ser, por força do seu cartão de identidade, considerada doméstica." Só pretendia mostrar, "que uma mulher sozinha e sem habilitações literárias pode triunfar na vida. (…) Não há mulheres indefesas. Há homens que as impedem de sobreviver. Foi o meu caso. Mas nunca cedi."

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Alguns dos seus amigos próximos, abandonaram-na, incluindo Tengarrinha, que a deixou cobardemente por carta. Acusaram-na de ser venal e o público escrutinou-lhe a vida. Numa entrevista para o Notícia, Vera Lagoa diz que "o que espera da vida é ternura." E é a sua própria popularidade que lhe dá energia para continuar: "Sempre afirmei que a Vera Lagoa foi um caso de desespero, uma tábua de salvação." O seu sobrinho, Carlos Pissarra, diz que, no fundo, Vera Lagoa "tinha uns gostos muito simples, mas tinha aquele papel". E "era uma mulher à frente do seu tempo, sempre foi", e isso nunca lhe foi perdoado, sequer compreendido. A autora de Um Diabo de Saias diz à Máxima que a espantou "muito a liberdade com que viveu e o facto de, apesar de tudo isto, ter o terror da solidão".  E "apesar de ter nascido numa sociedade plena de preconceitos de todo o tipo, não ser uma mulher preconceituosa. E espantou-me o seu finíssimo sentido de humor". "Sempre foi uma mulher profundamente livre. Viveu a sua vida, sustentou-se, divorciou-se (nos anos 40!), criou um filho. Viajou pelo mundo numa época em que as mulheres deveriam supostamente ficar em casa a cuidar dos filhos. Usou a roupa que quis numa época em que poucas eram as que ousavam usar calças ou biquíni."

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Este é um dos livros de 2021, e o facto de ter sido escrito na pandemia dificultou a recolha de testemunhos, mas está bem dividido por três, os nascimentos que Vera Lagoa diz ter vivido: quando veio ao mundo, em Moçambique, quando casou pela segunda vez, com Tengarrinha (do primeiro casamento nasceu o seu único filho) e quando assina como Vera Lagoa. "Foi sempre uma mulher politicamente muito ativa e empenhada na oposição ao Estado Novo. Colaborou com o MUD. Fez parte da campanha de Humberto Delgado, colaborou no apoio aos presos políticos, subscreveu abaixo-assinados para a libertação dos mesmos", descreve-nos Maria João Câmara. E mesmo depois da revolução, permaneceu das "raras figuras independentes, sem compromisso nem cálculo, que ousou criticar os novos poderes instituídos, não se deixando intimidar perante atentados à bomba e processos em tribunal." Fascinou-a a "sua coragem": "Não havia, nos media do pós 25 de Abril, muitas vozes assumidamente discordantes de uma corrente vigente de esquerda. Apesar de ter sido ameaçada (de morte e várias vezes) nunca vacilou e disse sempre o que pensava. Chegou a escrever em letras garrafais: "Eu não me calo" e "Eu não tenho medo"! "Hoje não seria compreendida, mas nada a aplacaria. Nenhuma "cultura" a "cancelaria", acredita a autora. Esta força, bravura e frontalidade no feminino ensinou-nos "que apesar das adversidades (ou por causa delas) podemos ser muito mais e, sobretudo, que não devemos ter medo."

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