'O Perdão', o filme proibido no Irão que aborda a pena de morte
A história de uma mulher cujo marido é condenado à pena de morte, numa sociedade que põe as mulheres à margem e sem ter com quem partilhar a dor da injustiça. Conversámos com os realizadores.
Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha começaram a escrever o guião de O Perdão (Ballad of a White Cow) há uma década. Graças às duras burocracias do Irão quanto à exibição de imagem, bem como às leis conservadoras impostas pela religião, só em 2022 os realizadores e argumentistas deste filme conseguiram que a sua obra visse a luz do dia. Mas não no seu país, como fazem questão de reforçar várias vezes ao longo desta entrevista.


O Perdão conta uma história de perda, agonia, esperança e luta, que é também a história da sociedade iraniana atual. Tudo gira em torno de Mina, uma mulher que vê o marido, Babak, ser condenado injustamente à pena de morte, e se vê a braços com a responsabilidade de cuidar de uma filha pequena, numa cultura que critica e dificulta a vida às mães solteiras, mesmo que a causa seja viuvez. As autoridades acabam por pedir desculpa pelo erro e oferecem a hipótese de uma compensação financeira - que promete ser morosa - por isso Mina inicia uma batalha silenciosa contra um sistema cínico, por ela e pela sua filha.

Mina começa a ser ajudada inexplicavalmente por um homem, Reza, que diz ter sido amigo do seu marido e lhe ter ficado a dever dinheiro - uma dívida que quer liquidar. Neste ponto de viragem, Mina vai ganhando força e esperança sem nunca pensar que algo de ainda mais sombrio está prestes a ser revelado. Um retrato da vida em Teerão, num jogo de luz e sombras que deixa a nu a dor, incrustada nos rostos das personagens. Maryam, que interpreta Mina e também realiza o filme, brinda-nos como uma prestação tão crua que por vezes nos rouba a respiração. O Perdão foi apresentado em Competição Oficial na última edição do Festival de Berlim e está em exibição no NOS Alma Shopping, em Coimbra, no Cinema Ideal em Lisboa, no Cinema da Villa, em Cascais e no Cinema Trindade no Porto.

Como nasceu esta ideia? É uma realidade comum no Irão, a da condenação errada, ainda por cima com pena de morte?
Behtash: Esta é a história de muitas pessoas em todo o mundo, e no nosso país em particular, relacionada com pena de morte. Mas a pessoa que mais nos inspirou para escrevermos esta história foi a mãe da Maryam. O pai dela foi executado depois da revolução, há quase 42 anos. A Mina é a mãe da Maryam. Por isso, sempre quisemos escrever uma história sobre pena de morte, e começámos a investigar o tema há quase 10 anos. Lemos sobre vários casos, conhecemos diferentes juízes, advogados, perguntámos sobre casos semelhantes. Escrevemos o primeiro guião há nove anos, e reescrevê–mo-lo mais de dez vezes. Finalmente, conseguimos arranjar o dinheiro para filmar, essa parte foi a mais difícil. Ninguém queria pôr dinheiro neste filme. Achavam que não ia trazer retorno financeiro, uma vez que no Irão não temos permissão para mostrar o filme. Nos últimos dois anos, com o nosso produtor, tentamos muito mas ainda não conseguimos.
Por ser um tabu, ou por ser a lei?

Maryam: Porque é proibido criticar a lei no Irão, porque a lei vem das crenças islâmicas. É proibido questionar, criticar, arriscamo-nos a levar uma punição por parte do Governo.

Maryam, usar a história da sua mãe foi doloroso para interpretar a personagem?

Claro que usei a história da minha mãe em alguns momentos para fazer a personagem, mas para mim não foi doloroso, foi um alívio. Não foi de todo doloroso. Senti que finalmente consegui contar a história, dizê-la ao mundo.
A dor está gravada nos rostos das pessoas neste filme. É algo profundamente enraizado na cultura?
Maryam: Especialmente nesta história, sim, porque é sobre uma das maiores dores que o ser humano pode experienciar e provocar a outro ser humano. É claro que ensaiámos muito, antes de filmar, para acentuar essa dor. Acreditamos que ter um estilo mais cru, em termos de atuação, iria funcionar melhor.

Behtash: Para tal, precisámos que os atores tivessem conhecimento deste tipo de situações, para sentir a dor, como se fossem eles próprios nessa posição. Quisemos uma atuação minimal, para ser mais realista. Creio que isso ajuda a aproximar o espetador às personagens. Não é fácil chegar a este tipo de atuação, é preciso muita pré-produção e ensaios intensos com os atores.
O filme mostra também as dificuldades por que passam as mulheres iranianas. Por exemplo, quando Mina mostra surpresa com a decisão do tribunal a seu favor. Este é o retrato da vida real de uma mulher viúva no Irão?
Maryam: Tudo no filme é realidade, tal como a atuação, a história é igual. Ao escrevermos a história investigámos imenso para criar uma realidade muito aproximada. Quando se conta a história de uma personagem principal, tentamos contar tudo o que está ao seu redor.

Foi fácil filmar nas ruas de Teerão? Como correram as filmagens?
Behtash: Para fazer um filme no Irão precisamos de diferentes permissões. Uma permissão é para filmar, outra para exibir. O guião acabou, inevitavelmente, por sair diferente do que foi gravado. Foi preciso torná-lo mais conservador, ao mostrá-lo ao Ministro da Cultura pela primeira vez, disseram-nos que não iríamos ter autorização para o gravar. Acabámos por mudar o guião e obtemos a permissão, mas não sem avisar primeiro que iríamos avançar na mesma, caso não s dessem. Estávamos desmotivados e demorámos três anos só com a permissão. Com a segunda versão do guião, impediram-nos de filmar em algumas localizações como o tribunal ou a prisão. Fizemos nós os cenários, adaptámo-nos. Filmar nas ruas também não foi fácil, tínhamos imensa pressão para o fazer rápido, em poucas horas, foi muito duro filmar este filme. Foi a parte mais difícil.
Sem fazer spoiler, é possível esclarecer o final?
Maryam: Tínhamos outro final, era suposto terminar na cena em que ela percebe a verdade, a personagem principal. Mas depois percebemos que ela - a Mina - devia ser reativa. Ela é uma mulher ativa, não podia ter um fim passivo. Ela precisava de ir embora, mas não é o tipo de pessoa que se vinga, que mata alguém, apesar de sonhar com isso. De imaginar que faz isso. O final simboliza aquilo que ela sente. Quem vir o filme, vai entender.

Há alguns momentos em que vemos esta mulher, que é reservada, ao espelho, a pôr batom. Que intenção tiveram ao mostrar esses momentos?
Maryam: Para nós, colocar maquilhagem é um ato muito feminino e um ato de força. Em oposição a muitas histórias que mostram que um ato feminino como este é sinal de fraqueza, para nós, nesta história, é símbolo de poder. Torna-se mais poderosa.
Como se sentem ao saber que o filme está a tocar tantas culturas diferentes e a ser exibido pela Europa e pelo mundo?
Behtash: É muito bom. Todos os realizadores, escritores, produtores, querem fazer uma obra de arte e mandá-la para diferentes nações e culturas. A melhor parte é saber que tocamos as pessoas de todo o mundo. A única parte triste é não podermos mostrar o filme aos iranianos, às nossas pessoas. Mas estamos felizes com os espetadores internacionais, claro.
