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Vanessa Springora: “Em jantares perguntava: 'quem nesta mesa foi abusada, agredida ou violada?'. Todas as mulheres levantavam a mão.”

Foi recebido com uma onda de choque em França. 'Consentimento', o testemunho literário de Vanessa Springora relata a relação que teve aos 14 anos, com o escritor Gabriel Matzneff, 36 anos mais velho. Vanessa descreve a manipulação de que foi vítima e denuncia uma sociedade conivente com o poder. A autora contou-nos a agitação que tem vivido e analisou o movimento #MeToo.

Vanessa Springora
Vanessa Springora Foto: JF PAGA
24 de dezembro de 2020 Tiago Manaia

Consentimento é um livro que tira o sono a quem o lê. É com poucas horas de descanso que falamos com Vanessa Springora. Está em Paris, fala connosco via skype. O seu testemunho literário é duro, ao fim de algumas páginas percebemos que se trata de um livro urgente, e pode ser lido num só fôlego. A perplexidade com que a história de Vanessa Springora nos deixa é tal, que só pensamos numa possibilidade de mudança. Em França, os primeiros 20 mil exemplares esgotaram em menos de 10 dias. Muito aconteceu desde que o livro foi lançado, no início de janeiro de 2020. Uma onda de choque inundou os espectadores das entrevistas que deu sucessivamente nas televisões. Adolescente, Vanessa teve uma relação durante anos, com o célebre escritor Gabriel Matzneff, reconhecido e elogiado pela imprensa e crítica. Falava, abertamente das suas práticas pedófilas, relatando-as durante 40 anos nos seus livros.

Consentimento (2020)
Consentimento (2020)

Em 2013, o júri do qual fazia parte o escritor Frédéric Beigbeder, atribuiu-lhe o prestigiado prémio literário Renaudot. O livro de Vanessa Springora fez agora com que os membros desse júri tivessem de tomar uma posição pública. Alguns demitiram-se. A editora Gallimard retirou os textos de Matzneff das livrarias, mas a questão ganhou força: como foi possível durante tantos anos fechar-se os olhos a tais práticas?

Vanessa ouve as nossas perguntas atenta, pede várias vezes desculpa pelo barulho de obras que se ouve por cima do seu apartamento. Depois de nos dizer que adora Lisboa, a entrevista começa.

Máxima: Já consegue ter algum distanciamento da loucura mediática que acompanhou o lançamento do seu livro em França? Foi em janeiro de 2020, já passou quase um ano. Qual é o balanço? E como encara agora, a saída do livro em mais de 20 países?

Vanessa Springora: Acho que ainda não tenho distância para o fazer. Fui apanhada por uma avalanche, e como tudo se encadeia com os lançamentos no estrangeiro, ainda não parei de fazer a promoção. Vou conseguir distanciar-me quando parar de falar disto, como um capítulo que terei fechado e ficou para trás. Logo a seguir ao primeiro confinamento francês, o livro saiu na Alemanha, Espanha, América latina, Suécia, Portugal e Israel. Ainda não foi lançado nos Estados Unidos mas os jornalistas já estão a ligar…Entretanto, as coisas misturaram-se com acontecimentos políticos aqui em França, este verão o Conselheiro Cultural da Câmara de Paris demitiu-se por causa disso…

Fala de Christophe Girard? [O Conselheiro Cultural da Câmara de Paris, nos anos 80 trabalhava para a Yves Saint Laurent e terá acordado com Pierre Bergé financiar um quarto de hotel, que o escritor Gabriel Matzneff usou durante anos para ter relações com menores. No livro de Vanessa Springora uma parte da ação passa-se nesse quarto]

Sim, o Christophe Girard estava ligado a esta história. A sua demissão aconteceu no momento em que eu tinha decidido ir de férias e todos os jornalistas me caíram em cima. Recusei falar do assunto, estava com a minha família, e era a primeira vez que podia descansar. Na realidade tenho a sensação que isto não terá fim. O impacto deste livro surpreende-me ainda mais do que o sucesso. É certo que foi catártico para mim, foi muito importante. Mas os efeitos que o livro pode ter, em várias áreas, ainda mal começaram.

Disse numa entrevista em França que foram vários os livros em que Gabriel Matzneff descreveu os abusos de que a Vanessa foi vítima, e que por isso era importante para si uma libertação literária. Libertar-se do que lhe aconteceu através de um livro. Não estava mesmo à espera desta explosão mediática?

Não estava mesmo. Há um ano, enquanto esperava o lançamento do livro, pensava que ele iria interessar a 300 ou 400 pessoas em Paris. Eu sabia que o Gabriel Matzneff tinha passado de moda, já não era um autor muito conhecido. Há muitos jovens que não sabem quem ele é… E não esperava que isto ganhasse uma tal dimensão nos media. 

Entretanto, isto tornou-se um caso de justiça, e houve uma investigação que foi aberta. E o livro tornou-se um tema de sociedade, sobre a noção de consentimento. Isso ultrapassou-me.  De repente pediam-me para dar opiniões como se fosse especialista em áreas jurídicas sobre o limite do consentimento de menores. Houve magistrados, psiquiatras, psicólogos que me pediram para lhes falar da minha história, pediram-me para testemunhar. Portanto ganhou uma dimensão social.

Depois de ler o seu livro, pesquisei um pouco a época em que se desenrolaram os acontecimentos, numa procura de referências da cultura francesa que pudessem ser facilmente identificáveis em Portugal, e dois dos grandes ídolos dos anos 80 tinham a sua idade, Charlotte Gainsnbourg e Vanessa Paradis, que no início dos anos 90 recebeu um César de melhor atriz revelação, num filme em que se apaixonava por um homem muito mais velho (Noce Blanché ,1990). É surpreendente como a Charlotte Gainsbourg e a Vanessa Paradis, demonstravam em público uma timidez e uma falta de jeito que era idêntica à forma como você se descreve no livro…

Tem completamente razão, é a primeira vez que alguém me diz isso. Não pensei em inclui-las na minha história, talvez não fizessem parte da música que os meus amigos ouviam…Mas analisando com distância, penso que você tem razão. O videoclip que lançou a Charlotte Gainsbourg era muito ambíguo, chamava-se Lemon Inceste – era um dueto com o pai Serge Gainsbourg. Não estou a dizer que tenho acontecido algo entre ela e o pai, nada disso. Só que o tema brincava com a ideia do amor incestuoso.

27 de abril de 1982, Paris: Serge Gainsbourg e Charlotte Gainsbourg no espétaculo
27 de abril de 1982, Paris: Serge Gainsbourg e Charlotte Gainsbourg no espétaculo "Nuit De La Chanson" Foto: Getty Images


E realmente a Vanessa Paradis teve esse papel no cinema que a tornou famosa, era uma história de amor entre uma aluna e um professor muito mais velho que ela. Os anos 80 foram uma época em que as adolescentes eram reproduções da ideia que se tinha da Lolita, e essa imagem era explorada comercialmente. Havia algo um pouco doentio nisso.

3 de fevereiro de 1990, Paris: Serge Gainsbourg e Vanessa Paradis na 5ª Cerimónia anual Victoires de la Musique
3 de fevereiro de 1990, Paris: Serge Gainsbourg e Vanessa Paradis na 5ª Cerimónia anual Victoires de la Musique Foto: Getty Images

O que quer que os leitores do seu livro guardem sobre essa ideia de consentimento de que fala? Por exemplo, em Portugal não houve #MeToo, foi um movimento que teve repercussões a nível mundial em vários países, e aqui o silêncio deixou um certo desconforto no ar.

Tem esse sentimento em Portugal?

Nos meios de cinema e teatro, há quem diga que talvez o circuito seja pequeno demais para que as pessoas possam tomar posição ou falar livremente, e que talvez o #Metoo seja algo que só acontece no estrangeiro. Um livro como o seu pode servir precisamente para libertar a palavra relativamente ao abuso?

Sim, porque todo o meu livro transporta a noção de consentimento, aliás é o título do livro. Foi algo a que quis fazer menção nesta história que conto. Quais são os mecanismos complexos que fazem com que se aceite e se ceda a um determinado número de coisas sem consentir completamente? Ou o que faz alguém consentir algo quando não está numa posição de igualdade ? — Igualdade essa, que poderá tornar válida a ideia de consentimento. Foi isso que quis mostrar através de uma história que é a minha, em adolescente. Mas também pode ser a história de outras mulheres ou de homens até…Se pensarmos no movimento #MeToo por exemplo, foi depois de uma queixa feita por um rapaz que caiu um dos primeiros atores (Kevin Spacey). Isto não é uma história de guerra de sexos, aliás essa ideia é problemática. Há uma confusão que é feita relativamente a isto. O movimento #MeToo é suportado essencialmente por mulheres e por movimentos feministas… E num efeito de espelho há uma espécie de crispação dos homens. Sentem-se atacados na sua masculinidade, na sua maneira de ser, nas suas práticas em geral, ou na sua cultura masculina. Só que não é isso. Com o #MeToo falamos de uma questão de dominação, é completamente outra coisa.

Fala-se de poder?

Sim, de poder. No meu livro, é mais abordada uma questão de ascendência e de autoridade intelectual, e de restrição moral. É uma rapariga muito jovem, que tem um pai ausente e uma falta de referências masculinas…E é confrontada pelo fascínio por um homem que representa o auge de tudo o que ela admira. Ou seja, ele é um escritor com toda a autoridade intelectual que isso impõe. Portanto não é propriamente uma situação de subordinação de poder.

Era uma manipulação cerebral também? 

Penso que aos 13 anos não se têm ferramentas para estar em pé de igualdade frente a um adulto…E sobretudo quando ele próprio é um manipulador perverso, e fez disso um ofício, manipulando raparigas muito jovens com fins sexuais e literários

Mas voltando ao tema do #MeToo…Sabe que em França não aconteceu assim tanta coisa?

A atriz Adèle Haenel denunciou no final de 2019 ter sofrido abusos do realizador Christophe Ruggia, entre os 12 e os 15 anos

Sim, isso no meio do cinema. Mas não houve um ciclo de denúncias.

Ela fez uma revelação que teve um grande impacto mediático. Infelizmente, dizemos que o movimento #MeToo é um pouco como a nuvem de Chernobyl, passou por cima de França mas não parou. O discurso nesse sentido ainda não é livre. No entanto, há uma grande quantidade de homens e mulheres que podem ter comportamentos problemáticos num quadro de trabalho, que agora têm medo. Sabe-se que as pessoas estão atentas a esse tipo de testemunho, e  já não é possível ter o mesmo comportamento. Penso que isso vai mudar coisas de forma profunda, mas infelizmente não me parece que as queixas das vítimas saiam cá para fora. Há uma tal rede de proteção à volta dessas personalidades. Mesmo o que aconteceu no caso do Polanski, e não quero julgar, não sei se ele é culpado das violações de que é acusado… Mas o facto da Academia dos Césares lhe atribuir o prémio de melhor realizador em 2020, caiu mal. Sobretudo no contexto que se estava a viver, depois das declarações de Adèle Haenel, parecia que se vivia um momento histórico em que as mulheres começavam a falar…

28 de fevereiro de 2020, Paris: protestos contra Roman Polansky na 45ª Cerimónia dos Cesar Film Awards
28 de fevereiro de 2020, Paris: protestos contra Roman Polansky na 45ª Cerimónia dos Cesar Film Awards Foto: Getty Images

E o poder decidiu dar o prémio de melhor realizador ao Polanski?

Exato, é o poder do dinheiro, é o que podem representar os Césares. Neste caso, esse poder decidiu dar o prémio a Polanski, e não a Celine Sciamma, realizadora de o Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), que era um filme assumidamente feminista. No que toca  lugares de poder, o meio do cinema francês é em grande parte masculino, e decidiu validar o Polanski em força. Falhou-se a possibilidade de mudar o curso da história nessa noite. Por isso, Adèle Haenel saiu da sala a meio da cerimónia a gritar "vergonha".

Retrato de uma Jovem em Chamas (2019)
Retrato de uma Jovem em Chamas (2019)

Ainda antes do movimento #MeToo foram aparecendo algumas obras artísticas em França que denunciavam situações de abuso. Lembro-me do filme de Eva Ionesco, Eu Não Sou a Tua Princesa (2011), ou do ensaio de Virginie Despentes, a Teoria de King Kong, relatando inúmeras violências que as mulheres sofrem no quotidiano. Sei que queria escrever o seu livro há já algum tempo, como vivia o aparecimento destas obras?

Sim, houve um efeito bola de neve. Em 2012, ainda antes do #MeToo e de Weinstein, houve o caso em que Dominique Strauss Kahn foi acusado de violação. Neste caso, a relação de dominação e poder era enorme. Ele era um homem muito rico, hospedado num hotel de luxo, e foi confrontado por uma empregada de limpeza negra (Nafissatou Diallo). Em França isso foi o gatilho para algo como o #MeToo. Foi uma empregada sozinha, que denunciou Dominique Strauss Kahn, e ele teve de renunciar a sua candidatura para as presidenciais francesas

Nafissatou Diallo, a empregada de limpeza que acusou Dominique Strauss Kahn de violação
Nafissatou Diallo, a empregada de limpeza que acusou Dominique Strauss Kahn de violação Foto: Getty Images

No meu caso, o que fez desencadear a minha escrita foram acontecimentos mais pessoais. O facto de terem atribuído o prémio Renaudot, em 2013, a Gabriel Mattznef, e nesse momento ter crianças em minha casa que eram adolescentes – a minha enteada tinha 13 anos. O facto de ter sido mãe e de reviver a minha própria infância e a adolescência foi o que desencadeou esta vontade de escrever.

Ao longo do tempo foram aparecendo pequenos sinais que certamente me influenciaram, devem ter-me dado coragem. Até lhe digo que não era um tema ganho à partida, quando em novembro de 2019, mostrei algumas provas do livro, tinha acabado de rebentar o escândalo da atriz Adèle Haenel, e muitos jornalistas (sobretudo masculinos é preciso dizer), diziam-me que havia uma saturação relativamente ao tema. Os primeiros artigos que apareceram na imprensa francesa não eram bem intencionados, reduziam a minha história a um pequeno escândalo do meio literário de Saint-Germain-des-Près. Mas o que fez com que o livro tivesse sucesso, foi o facto de mulheres (de todas as partes de França), o terem lido e se conseguirem identificar. Elas não conheciam o Gabriel Matzneff, nem o meio Saint-Germain-des-Près. E foi aí, que percebemos que havia algo de massivo.

28 fevereiro, Paris: a atriz Adàle Haenel à chegada da 45ª Cerimónia dos Cesar Film Awards
28 fevereiro, Paris: a atriz Adàle Haenel à chegada da 45ª Cerimónia dos Cesar Film Awards Foto: Getty Images

Nessa altura, eu ia a jantares e se fôssemos mais de 10 pessoas perguntava: – "quem nesta mesa não foi a certa altura abusada e agredida ou violada?". Não havia uma que não levantasse a mão. A maioria eram mulheres, que independentemente do seu percurso pessoal conseguiam identificar-se com a minha história. E por isso o pequeno meio literário de Saint-Germain-des-Près foi esquecido. E o livro foi apoiado em parte por esta força que surgiu com o movimento #MeToo, e a necessidade das mulheres dizerem "basta".

Eu Não Sou a Tua Princesa (2011)
Eu Não Sou a Tua Princesa (2011)

As redes sociais e o digital têm feito com que a palavra se espalhe de forma transversal, os movimentos #MeToo e a Black Lives Matter são bons exemplos disso. Acha que o digital conseguiu tirar poder às grandes editoras de livros de Saint-Germain-des-Prés? As redes sociais desbloquearam a maneira de pensar das pessoas?

O #MeToo surgiu nas redes sociais, mas não sei se posso responder positivamente à sua pergunta. Um Tweet com 140 caracteres e um hashtag, tem a possibilidade de organizar a palavra, e federar um pensamento ou dar-lhe visibilidade. Mas é algo muito criticado, as pessoas que são acusadas costumam dizer que o julgamento a que são sujeitas passa por um julgamento mediático, e que as redes sociais não têm nada a ver com a justiça. Também sabemos que as redes sociais podem ser um local onde se despeja um discurso de ódio e de ressentimentos, muitas vezes feito de forma anónima, e isso não é saudável.

Para mim, foi importante exprimir-me no quadro de uma obra literária, com um real trabalho por trás. Não queria expressar-me numa frase de 140 caracteres. Queria que fosse algo que ficasse, e um Tweet não fica connosco. Acho interessante quando as pessoas escolhem formas artísticas, como o teatro, a dança, a literatura ou cinema para contar a sua própria história.

Falou-me do seu filho e da sua enteada que vivem consigo. O que a inspira nessa juventude que cresce ao seu lado?

Há muitas coisas que me fascinam. Será que os nossos pais também achavam que os filhos eram muito diferentes deles? Como acho os meus agora? Não me parece que houvesse uma diferença tão grande. Hoje sinto que eles entraram noutra era. Questionam tudo. Há uma liberdade sexual, uma vontade de explorar, uma vontade de experimentar, acho-os muito livres relativamente a isso. Nós estávamos fechados em categorias muito rígidas. 

Do patriarcado?  

Sim, restos dessa cultura patriarcal. Acho extraordinário o trabalho que fizeram associações homossexuais, lutaram muito durante a epidemia da Sida, para dar visibilidade à comunidade homossexual. Não sei como é em Portugal, mas em Paris sobretudo, se um adolescente descobrir que é homossexual, pode falar disso com os amigos ou professores, isso não será um problema. Pode casar, é possível transmitir o património, e pode adotar crianças. É um progresso maravilhoso. E depois há a questão do género, a atribuição de papéis sociais mudou completamente. Parece-me que esta geração vai buscar todo o tipo de clichês sexistas e os passa num scanner – não os aceitam. Para eles tudo é questionável. E acho bem, que uma jovem rapariga questione o porquê de se achar vulgar ver uma mulher a fumar na rua, dizem que lembra as prostitutas? A um homem nunca diriam isso. A geração que aí vem, vai romper com tudo isso. Parecem ter um juramento de liberdade e independência de espírito.

Sei que fez muitas versões do seu livro, tentou muitas fórmulas. Como trabalha a sua escrita?

Trabalhei muito durante a noite. Porque tinha um trabalho durante o dia, e não tinha muito tempo para escrever (Vanessa é editora e diretora das edições Julliard). Tenho insónias, por isso guardava um caderno ao lado da cama onde ia anotando fragmentos. Isso dá esse aspeto fragmentado à escrita. Objetivamente o livro é curto, e cobre um período muito longo em muito poucas páginas, são 30 anos. Queria que ficasse assim, nunca pensei parar de trabalhar para me dedicar 3 meses a escrever um romance muito rebuscado com todos os detalhes. Queria que guardasse algo panfletário, quase lapidar e eficaz. 

A imprensa francesa falava de uma frieza na escrita, mas penso que não se trata de frieza, a sua escrita é quase incisiva…

É clínico na forma. E não é com frieza que escrevo, mas com pudor. Primeiro porque é difícil contar esta história, e a minha natureza profunda é realmente tímida. Sabia que ao contar isto me ia expor intimamente. Tentei encontrar a distância certa para me sentir próxima dos meus sentimentos nessa época. E também, tinha algum receio das consequências que esta publicação poderia ter na minha família, pelo meu filho, o meu companheiro ou a minha mãe. Havia pessoas que eu queria proteger, essa distância pode ser isso. E também pode ser pelo facto de eu sempre ter desconfiado da imprensa e da receção de um livro. Queria proteger-me. E acho que foi mais eficaz assim, mais do que se tivesse na emoção ou no pathos. Não teria o mesmo impacto, haveria menos possibilidades de identificação.

Sentiu um alívio ao poder contar a sua história? Pedia-lhe para me resumir o que se tinha passado após a saída do livro, no início da conversa, e sei que é difícil ter essa distância. Mas ao contar esta história sente que se libertou? Ou houve um peso que se acentuou? Acha que vai querer parar de falar deste assunto completamente um dia?

Eu digo muitas vezes que não acredito muito nas virtudes terapêuticas da escrita. Quando escrevemos é porque já ultrapassamos uma quantidade grande de coisas. Eu não queria estar [num estado de espírito] de julgamento, violência, ou num ajuste de contas. Demorei a começar a escrever, porque enquanto estivesse numa relação muito violenta com esta história não seria capaz de a escrever de uma forma que me satisfizesse. A partir do momento em que consegui escrever de uma forma apaziguada, isso quis dizer que já tinha descoberto uma forma de me apaziguar.

Então os media não trouxeram de volta alguns sentimentos de agitação relativamente ao que viveu?

Não. O que talvez tenha sido violento foi a investigação. Fui interrogada no processo judicial que foi aberto, tive de testemunhar. Do ponto de vista terapêutico talvez tenha sido interessante, até mais do que o livro em si, porque tive de falar perante a polícia para contar toda a minha história, e apesar de não ter nenhum valor, porque o que me aconteceu já prescreveu, simbolicamente foi importante, porque foi a primeira vez que fui ouvida…Ouvida pela polícia, que faz agora o trabalho que deveria ter feito há 30 anos e não fez.

Conta no livro que nessa altura a polícia não a protegeu (apesar de terem sido feitas denúncias de que Gabriel Matzneff se encontrava com uma menor), a escola e os seus professores que o viam a ir buscá-la à escola nunca fizeram nada (apesar da diferença de idade ser flagrante), e nem no hospital foram capazes de a proteger, num momento em que é internada. Sentiu agora que tinha sido feita justiça, foi isso?

Se não tivesse escrito o livro, nada disto teria acontecido. A investigadora que me interrogou, disse-me que ia ser difícil. Tive de contar tudo outra vez. O livro não podia ser considerado como um testemunho, tinham de ouvir as coisas a sair da minha boca… E isso foi interessante. Vamos ter de esperar alguns anos para perceber as consequências, se serão profundas ou superficiais. Será que vão acontecer reais mudanças no meio da edição, uma tomada de consciência nos media? Não podemos dar voz a qualquer pessoa, com o pretexto de que faz coisas transgressoras. 

Em 2021, Gabriel Matzneff vai ser julgado por apologia de crime agravado. Quero perceber o que vai acontecer aos livros dele, será que vão ser republicados com uma revisão crítica? Ele ainda está vivo, e o editor dele não pode republicar sem a sua autorização. Era importante juntar-lhes uma explicação de como foi possível publicar aqueles textos nos anos 70 e 80, e de como a sociedade mudou entretanto. Tudo isto ainda vai demorar algum tempo.

Obrigado por este livro. Gostava de juntar mais alguma coisa à nossa conversa? 

Queria dizer aos leitores, para não olharem para este livro como um manifesto feminista, mas com um livro que pode ser lido por adolescentes e pode falar a qualquer pessoa, de todas as gerações. Seja um homem ou mulher a ler, somos todos filhos ou filhas de alguém. Um pai ou uma mãe, um irmão ou uma irmã…Todos temos pessoas à nossa volta que já tiveram em situações parecidas, de consentimento forçado e se calhar também nós consentimos ao fechar os olhos a coisas que não deveriam ser aceitáveis. É essa noção de consentimento que interrogo no livro, queria que fosse lido dessa forma.

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