Hillary Clinton toma o poder e acerta contas em novo livro
Hillary Clinton por duas vezes falhou a conquista do cargo de Presidente dos Estados Unidos. Agora, juntamente com a escritora Louise Penny, ela apresenta a sua própria versão dos acontecimentos do mundo num thriller ficcionado que aproveita a oportunidade para acertar umas contas com antigos adversários. Conversa com as autoras.

"São três da manhã e os vossos filhos estão a salvo e a dormir. Mas há um telefone na Casa Branca e ele está a tocar…". Este não é a jogada de abertura do thriller de Hillary Clinton e Louise Penny, mas dá um vislumbre inicial do enredo. A frase aparecia num anúncio de televisão, concebida com a intensão de torpedear a campanha presidencial de um novato chamado Barack Obama e reforçar as reivindicações de liderança de Clinton. "O seu voto decidirá quem atenderá a chamada", concluía a voz de fundo. Não foi Clinton: não em 2008 contra Obama, nem em 2016, quando ela venceu o voto popular, mas perdeu as eleições para Donald Trump.
Contudo, é uma Clinton triunfante que acaba por salvar o mundo afinal de contas, como Penny, a sua coautora, explica. O enredo gira em torno dos cenários de pesadelo que costumavam acordar Clinton "em sobressalto às três da manhã", enquanto ela era secretária de Estado sob a égide de Obama. Bombas nucleares, o derradeiro horror, marcam presença; mas um inimigo traiçoeiro também anda à espreita cá dentro. Profetiza o livro: "O farol que foi a América há de morrer por suicídio". Há muitos momentos cómicos no seu thriller, mas nesta altura Clinton assume uma seriedade extrema e a nossa conversa vira-se para a política do mundo real.


"Estamos à beira disso. É um temor genuíno", diz-me ela. "Qualquer pessoa que pense que o perigo já passou não está a prestar atenção." Ela enuncia umas quantas lições claras para os "facilitadores de Trump" numa altura em que, menos de um ano após as eleições presidenciais anteriores, os EUA se preparam para o regresso de Trump nas próximas. "Hitler foi aceite por grande parte da comunidade empresarial e pelas figuras do establishment na Alemanha, porque eles achavam que podiam controlá-lo", avisa Clinton. "Se olharem para o Partido Republicano hoje, está cheio de pessoas que apostaram a sua sorte nos anti-vacinas, mesmo apesar de eles próprios estarem vacinados, nos anti-ciência, nos que têm uma agenda anti-factos e na escandalosa grande mentira acerca das nossas eleições, e eles acham que podem, de algum modo, manobrar pelo meio das consequências."
Encontramo-nos nos escritórios de Nova Iorque da editora Simon & Schuster [em Portugal o livro tem a chancela da Porto Editora], onde Clinton e Penny estão deleitadas com o seu encontro frente-a-frente. A atmosfera é leve e comemorativa, apesar do fatalismo: "Nós pensávamos que iriamos ter uma experiência fantástica escrevendo durante a manhã e indo ao spa à tarde. Parecia tudo tão voluptuoso", diz Clinton. Depois a pandemia atacou e o livro acabou por ser trabalhado a fundo no FaceTime.

Penny, a encantadora escritora-mistério canadiana e autora da série bestseller do Inspetor-Chefe Gamache, fez a maior parte do trabalho a partir de sua casa no Québec, mas apoiou-se em Clinton para obter os pormenores de quem conhece os meandros por dentro. "Eu recebia de volta centenas de páginas digitalizadas. A Chelsea [filha de Clinton] tinha-me avisado: ‘Você sabe que ela escreve à mão, por extenso, não sabe?’" A parte divertida do thriller são as bordoadas de acertos de contas, as paródias feitas com opositores e a surpreendente revelação da capacidade de Clinton se rir de si própria. Em Estado de Terror existe de facto uma "vasta conspiração de direita" – a frase que Hillary tornou famosa durante a saga de destituição de Bill Clinton. "Já naquela altura, há tantos anos, eu tinha razão!" exclama ela.
Em Estado de Terror, a nefasta figura de proa e "idiota útil" é Eric "o Burro" Dunn, o presidente derrotado que tem um vasto complexo à beira-mar na Flórida (quem será?). O nome é um trocadilho com um dos heróis literários de Penny, John Donne, e um dos seus versos, "Quando vós o haveis feito, não o haveis feito", mas a personagem faz afirmações estúpidas, tais como: "Para que servem as bombas nucleares se não as podemos usar?"
Depois de um atentado bombista em Londres feito à imagem do de 7 de Julho, a secretária de Estado Ellen Adams encontra-se com o primeiro-ministro, Bellington, que é descrito como um "homem vazio" e um "idiota da classe alta" com "cabelo em desalinho". Ele fala usando "frases em latim aleatórias" e é "imensamente popular junto à ala direito do seu partido (…) porque tinha prometido independência das outras nações". Ora bem, a personagem Boris acabou por não ser assim tão má, na realidade.

"É claro que a atitude para com ele vai evoluindo e diz algumas coisas muito inteligentes", diz Clinton, contendo diplomaticamente os seus golpes certeiros. "As pessoas não conseguem que lhes sejam fornecidos combustíveis, não conseguem que lhes sejam entregues outros bens de primeira necessidade. É culpa daquele Brexit? É culpa do governo? Simplesmente não sei."

Há um ministro dos Negócios Estrangeiros pretensioso, um perverso líder russo que gosta de se esparramar de perna aberta nas cadeiras e um presidente – não completamente dissimilar de Obama – que de início tenta humilhar Adams. "Somos insultadores com igualdade de oportunidades", diz Penny a rir. "Ninguém fica na fotografia como especialmente santinho."

A parceria de Penny com Clinton foi inspirada pela colaboração que deu em bestseller entre Bill Clinton e o autor de thrillers James Paterson – tanto Hillary como Bill devoram romances policiais –, mas a empatia entre as duas mulheres é genuína. Clinton já tinha lido as séries de romances de Penny, passadas em Pines, Québec, uma pacata pequena cidade fictícia com uma elevadíssima taxa de homicídios, quando se conheceram, em 2017.
As duas foram apresentadas por Betsy Ebeling, a melhor amiga de Clinton dos tempos de escola e uma aficionada de policiais, quando estavam ambas a sentir-se em baixo: o marido de Penny tinha acabado de morrer e Clinton estava pesarosa com a sua derrota eleitoral. Ebeling sucumbiu ao cancro da mama em 2019, mas está imortalizada como "Betsy", a heroica auxiliar de Adams. A personagem dela conhece Adams desde que ela era uma "miudinha loira, com joelhos ossudos metidos para dentro [e] enormes óculos de lentes grossas" (não se dão prémios a quem adivinhar a referência).
O thriller é um tributo jovial ao poder feminino de meia-idade. Clinton – ups, Adams – é repetidamente subestimada por homens. Líderes mundiais, da Europa ao Médio Oriente, são superados por ela e a vingança é um prato que é servido frio ao presidente russo. "Foi divertido ter algum espaço para brincar", diz Clinton com um sorriso.

Sou repreendida por Penny por me referir a Adams como "você" enquanto falava com Clinton "É ficção!" lembra-me ela. "Então qual de vocês usa Spanx?" continuo eu, depois de a lingerie modeladora elástica ter surgido preto no branco. Penny dá o corpo à bala: "Isso sou eu, mas a referência ao chardonnay é óbvia". A sua coautora é conhecida por apreciar um copo ou dois (juntamente com Chelsea, a acreditar-se no livro, e usando chinelos de quarto).
Na nossa entrevista Clinton está vestida para o poder, com um fato calça e casaco, muito senhora secretária ou candidata presidencial. "Essa parte da minha vida acabou", insiste ela. "Tenho todas estas novas aventuras, tais como ser uma escritora de ficção."


Isso é tudo muito bonito, mas "você está BEM?" pergunto eu. Ela sabe o que quero dizer. No thriller isto é o título de um poema de Ruth Zardo – uma das personagens recorrentes de Penny – e quer dizer fod**a, insegura, neurótica e afetada de egoísmo. Escrever o livro foi terapia?
"Honestamente não pensei nele dessa forma, porque há tantas outras coisas que ocupam o meu tempo", esquiva-se ela, "mas adorei ser senadora, adorei ser secretária de Estado e adorei ser candidata presidencial. Há aspetos de todos esses cargos de que tenho saudades."
Adams surge de cabelo em desalinho perante o Congresso e é louvada por isso. Sou recordada da meme da Clinton "durona" de cabelo despenteado e óculos escuros a bordo de um avião que se tornou viral. "É verdade", diz Clinton, de sorriso rasgado. "A foto foi tirada num voo para a Líbia e, quando íamos a sair do avião, fomos recebidos por uma milícia completamente vestida de negro a disparar armas para o ar, portanto havia muita coisa a ocorrer ali."

A filha adulta de Adams, Katherine (claramente a Chelsea), também se precipita até ao centro da tempestade e intimida os terroristas. Chegados a este ponto decerto todo o realismo já foi atirado pela janela, mas Clinton discorda. "Ellen está a ocupar o cargo há apenas um mês. Ela sabe que o presidente não confia nela. Ela não sabe em que deve confiar. Portanto, mantém a filha por perto."

Quanto a maridos, eles estão convenientemente fora de cena. Adams é simultaneamente divorciada e viúva. "Ela descarta-se mesmo deles!" diz Penny. Também não há muito sexo, um ponto em comum com os thrillers de Bill Clinton e Patterson. Onde o mundo real se intromete com uma clareza brutal é no que toca à retirada dos EUA do Afeganistão.

"Sabe que com a nossa retirada, os Talibã, juntamente com a Al-Qaeda e outros terroristas, assumirão o controlo", Adams avisa o presidente fictício dos EUA. "Todo o progresso feito pelos direitos humanos será eliminado. Todas as raparigas, todas as mulheres, que frequentaram a escola, que tiveram formação académica. Que conseguiram empregos (…) Sabe o que lhes acontecerá."
Clinton prefere culpar Trump em vez da administração de Biden pela entrega do país, mas admite: "Não quer dizer que eles não pudessem ter feito as coisas melhor ou de forma diferente para evitar os piores resultados". Eu sugiro que ela não teria feito o mesmo e Clinton faz uma careta. "Sim, bem, nunca o saberemos, no entanto." É o único lampejo de pesar pelo que poderia ter sido.


O livro foi maioritariamente escrito antes da invasão do Capitólio, a 6 de janeiro. "Certamente, foi uma tentativa de golpe de Estado", afirma Clinton. "A grande vergonha é que o Partido Republicano o transformou num culto. Está sob o jugo de um demagogo." Ela está orgulhosa da sua precognição. "Nós inventámos este enredo muito antes disto tudo."
A ascensão das redes sociais é identificada como um dos "principais culpados", ferindo a democracia, "tornando-nos divergentes, enchendo-nos de desinformação". O Facebook, acusa ela, está "ciente de tudo isto. Na verdade, o seu modelo de negócio assenta nisso."
Se pudéssemos fazer o tempo voltar para trás, talvez Clinton fosse hoje a senhora Presidente. Na ficção, Adams poderá ainda chegar ao topo. Não há promessas, mas Clinton e Penny deixaram a porta firmemente escancarada para que haja sequelas. Sempre que o planeta precisar de ser salvo, há duas mulheres de meia-idade prontas para a ação.

Quem é quem em Estado de Terror
Eric Dunn, ex-Presidente dos EUA
Derrotado, demagogo, a conspirar um regresso a partir do seu covil em Palm Beach. "O seu império cresceu, depois desmoronou-se, depois cresceu outra vez. De cada uma das vezes mais audacioso, mais inflado, mais frágil." Foi eleito com a ajuda de potências estrangeiras.

Douglas Williams, Presidente dos EUA.
Antigo adversário que convida Adams para servir na sua "equipa de rivais", na esperança de que ela fracasse. Sabe como ter um "aspeto presidencial". É "mais inteligente do que ela pensava", mas terá ele unhas para tocar a guitarra da liderança?
Bellington Adams, Primeiro-ministro britânico

Cabelo em desalinho. "Um homem vazio, um idiota da classe alta, com alguma coragem que talvez já tivesse sido substituída por um sentido de prerrogativa e frases em latim aleatórias."
Maxim Ivanov, Presidente russo.
"Um tirano impiedoso, adestrado em opressão, tanto subtil como cruel". Do estilo de se esparramar de perna aberta nas cadeiras, mais pequeno do que Adams espera, com uma "intensa" presença física.

Bashir Shah, terrorista nuclear.
Tem alguns traços de AQ Khan, o "pai" da bomba nuclear do Paquistão e de Osama Bin Laden. Em conluio com grupos sinistros da extrema-direita. Adams entra em choque com o aiatola, o primeiro-ministro do Paquistão e o ministro dos Negócios Estrangeiros nas reuniões dos "Cinco Olhos".
LOUISE PENNY

Idade: 63
Número de livros de ficção publicados: 18
Residência: Knowlton, uma pequena cidade na região de Eastern Townships, Québec

Cultura popular: uma adaptação para filme e uma série de TV em produção
Parceiro: conheceu o seu falecido marido, Michael Whitehead, num encontro arranjado com um desconhecido
Álcool: alcoólica entre os 21 e os 35 anos

HILLARY CLINTON
Idade: 73
Número de livros de ficção publicados: 1
Residência: propriedades em Nova Iorque e Washington
Cultura popular: mais de 40 representações culturais, incluindo em The Simpsons, uma ópera e o processo de destituição (2021)
Parceiro: conheceu o Bill na biblioteca da Faculdade de Direito de Yale
Álcool: teria sido a "Presidente mais beberrolas" desde Franklin D. Roosevelt, de acordo com Chasing Hillary por Amy Chozick
Sarah Baxter/The Times/Atlântico Press
Tradução: Adelaide Cabral
