Histórias de Amor Moderno: “'Estás grávida', disse ele, com aquela alegria triste que sentimos pela felicidade de quem amamos”
“Tínhamos 13 anos quando me perguntou se queria namorar com ele. Disse-lhe que não e dei-lhe dois motivos para a minha recusa.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Todos os anos, em agosto, regresso a Portugal. É o mês sagrado, para mim e para muitos como eu. Estou em Genéve há muitos anos, desde início dos anos 80. Passei por outras cidades na Suíça, mas é sempre a Genéve que volto. É a minha segunda casa. A primeira é esta, onde nasci e cresci, uma vila remota, perdida entre serras e vales da Beira Interior.
Genéve e a Suíça têm para mim um sabor agridoce. Por um lado, significam o princípio de uma vida nova. Foi lá que o destino me deu uma segunda oportunidade - uma oportunidade que eu nunca teria se continuasse a viver em Vila Nova, onde a pobreza de dinheiro e de horizontes era uma fatalidade para quem escolhesse ficar. Mas, por outro lado, a minha partida significou uma interrupção abrupta e radical no crescimento de uma miúda de 17 anos, que era a minha idade quando fui com a minha mãe juntar-me ao meu pai, que tinha emigrado dois anos antes. Aos 17 anos, temos toda a vida pela frente, é verdade. Todavia, já não somos uma tábua rasa de memórias. Temos experiências, temos sentimentos, temos gostos, preferências e, com sorte, até alguns desgostos.
Eu, desgostos propriamente ditos, ainda não os tinha. Lembro-me de sentir tristeza pela partida do meu pai e pela sua ausência. lembro-me de sentir saudades dele e um desejo muito forte de o reencontrar. Tive outras tristezas, antes e depois disso, mas tudo em doses miudinhas. O meu primeiro desgosto verdadeiro, só o senti quando me despedi do Sílvio antes de partir para a Suíça. Foi numa noite de fim de verão num setembro muito quente. Fui à porta dele e chamei-o como sempre fazia. Ele sabia que eu e a minha mãe, mais cedo ou mais tarde, haveríamos de nos juntar ao meu pai. Só que ele não esperava ser avisado com tão pouca antecedência: “Vamos embora depois de amanhã.”
Não sei por que não contei mais cedo ao Sílvio que íamos partir. Ao longo dos anos, falámos algumas vezes sobre o assunto e só há uma conclusão possível para eu não lho ter dito antes: na altura, não compreendi a dimensão definitiva daquela mudança. Acho que não conseguia conceber o quão drástica seria a minha saída de Vila Nova. Só nesse dia tive um vislumbre de que o meu futuro seria, dali em diante, uma realidade completamente distinta do que fora a minha vida até então. Percebi-o quando o Sílvio, em lágrimas, me disse “sabes que nunca mais vamos voltar a estar juntos, não sabes?” Como se eu não entendesse, tratou de me explicar como dificilmente nos voltaríamos a ver, estando eu na Suíça e ele, também em breve, no Canadá - a partida dele demorou um pouco mais, só aconteceu no ano seguinte.
O Sílvio foi o meu primeiro amor. Desde a escola primária que nos dávamos, somos praticamente da mesma idade, temos dois meses de diferença - eu sou mais velha.
Gostei dele desde que me lembro. Sempre foi engraçado e esperto, sempre me fez rir, sempre foi cuidadoso comigo. E, mesmo sendo eu um bocadinho maria-rapaz, fez sempre questão de me defender. Acho que, à sua maneira, nunca escondeu que gostava de mim.
No fim da infância, experimentámos dar beijos infantis. Na adolescência, começámos a beijar-nos com alguma frequência. Tínhamos 13 anos quando me perguntou se queria namorar com ele. Disse-lhe que não e dei-lhe dois motivos para a minha recusa: primeiro, éramos demasiado novos para uma matéria assim tão séria; segundo, sendo eu a mais velha, teria de ser eu a pedi-lo a ele em namoro. Não sei onde fui buscar esta regra, mas ele, como bom cavalheiro, acatou. No ano seguinte, perguntei-lhe se ele queria ser meu namorado e ele disse que sim.
Conheci o Julien poucos anos depois de me ter mudado para Genéve, devia ter 21 ou 22. Antes do Julien, tive alguns relacionamentos, todos eles fugazes e sem importância. Estudava na faculdade e os namoros - ou os “dates”, como se diz agora - eram praticamente inevitáveis, já para não dizer que eram quase obrigatórios. Contudo, não guardo memória de nenhum - há uns rostos vagos, uns nomes mais ou menos repetidos (ou será que já os confundo com outros nomes que ouvi ou até que imaginei?).
O Julien não é suíço, é francês. Vivia junto à fronteira, em Saint-Julien-en-Genevois e, como muitos dos seus conterrâneos, trabalhava do lado suíço. Conhecemo-nos num qualquer fim de tarde, estávamos no mesmo café, havia amigos em comum, alguém nos apresentou, demo-nos bem. Abreviando: três anos depois, pediu-me em casamento. Não tendo eu motivos razoáveis para dizer que não, e acima de tudo pretendendo superar, finalmente, o desgosto que, embora sossegado pelo tempo, ainda me doía, resolvi dizer que sim. Disse-o com alegria sincera, pois fiquei contente por dar aquele passo em frente na nossa relação, por sentir que o futuro se desenhava com traços mais firmes. Mas não consegui fingir uma felicidade que não sentia. Essa, percebi nesse momento, era uma impossibilidade para mim.
Voltei a ver o Sílvio quase 12 anos depois de nos termos despedido daquela maneira meio desastrada numa noite quente de setembro. O reencontro aconteceu em agosto, naturalmente, quando tanto eu como ele regressámos a Vila Nova para gozar as férias. Desde que partira para o Canadá, o Sílvio - contou-me então - só tinha conseguido voltar à vila em três ocasiões: nesse agosto, no Natal de dois anos antes e, antes disso, para o enterro da mãe (cuja data teve de ser gerida com habilidade e puxando alguns cordelinhos para que ele conseguisse chegar a tempo da última despedida).
Foi de certa forma perturbador ver o Sílvio tantos anos depois. Tanta coisa havia mudado, tanto acontecera nas vidas de ambos. E, no entanto, ao encontrá-lo senti o mesmo que sempre sentira, uma felicidade imensa por vê-lo, uma vontade indomável de estar ao pé dele, um desejo absolutamente inadequado de o abraçar. “Violeta? És mesmo tu?” Foi assim que me abordou quando me viu, “Sílvio!”, gritei e abracei-o, “estás igual!” Ele largou-me e olhou-me, “estás grávida”, disse ele, com uma voz de surpresa, de choque e de alegria por mim - aquela alegria triste que sentimos pela felicidade de quem amamos, uma felicidade que não nos diz respeito, mas que sentimos ser justa, porque queremos bem ao outro, queremos o melhor, tudo do melhor, que tudo corra pelo melhor, que sejas muito feliz! “Este é o Julien, o meu marido.”
E foi então que eu percebi que estava grávida e que não estava muito feliz - tal como no dia em que o Julien me pediu em casamento, sentia uma grande alegria, é verdade, mas feliz mesmo só me senti quando ouvi a voz do Sílvio, momentos antes, pronunciando o meu nome.
Desde então, vemo-nos quase todos os anos em agosto. Encontramo-nos em Vila Nova, cada um com a sua família. Os filhos cresceram, nós envelhecemos, temos rugas, temos corpos mais gordos, mais flácidos, temos cabelos brancos. Não tarda, teremos netos. Temos planos para a reforma, talvez voltemos para a terra - talvez, talvez, quem sabe, sabe Deus, quem me dera, por aí fora, mas ninguém volta (na melhor das hipóteses, só voltamos para morrer, para que nos sepultem junto dos nossos). E, todos os anos em agosto, eu sinto vontade de chegar à porta do Sílvio e de chamá-lo para lhe dizer “olha, meu amor, afinal já não me vou embora”.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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