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Histórias de Amor Moderno: “Tenho 36 anos, a libido a dar em doida a bater com a cabeça no teto.”

“O apetite dele não devia ser inferior ao meu, pelo que marcámos encontro para o dia imediatamente a seguir.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
21 de outubro de 2023 Maria Olívia Sebastião

Instalei uma dessas apps de encontros em que nos pomos a olhar para fotografias de pessoas e, a partir dessas imagens e de umas breves descrições - descrições que vão do singelo "sou sincero, digo o que tenho a dizer" ao mais poético "sê tu mesmo", ou ainda ao filosófico "ama, respira, desfruta" -, tomamos decisões definitivas como "este indivíduo é o par perfeito para mim". Ou, em linguagem de app de encontro, "fazemos match".

Não, não estou desesperada. Acontece que tenho 36 anos e saí de uma relação longa, muito longa, de mais de oito anos, há cerca de 18 meses. Quando se passa muito tempo numa relação segura e, pensava eu, saudável, perdem-se algumas aptidões. Por exemplo, socializar. Socializar passa a ser visto como uma atividade que apenas alguns jovens são capazes de desempenhar. Porque, a meio dos trintas e com uma vida de casada, olhas para as pessoas que saem e que se encontram com outras pessoas, e que convivem entre brindes, jantares, festas e noitadas, como se eles fossem adolescentes - mesmo que tenham a tua idade e façam exatamente aquilo que gostavas de estar a fazer. 

Claro que, perdida a aptidão para a socialização, tudo se torna mais difícil ao nível do romance e de todo o universo sentimental. Mais: mesmo que não haja sentimentos nem romances à mistura, torna-se mais difícil encontrar um homem minimamente interessante para ir para a cama com ele. Não estou a usar meias palavras, é mesmo isto que quero dizer. Peço desculpa aos espíritos mais sensíveis, mas tenho 36 anos, a libido a dar em doida a bater com a cabeça no teto, e não tinha um contacto, um beijo que fosse, um abraço, um toque, uma carícia, há um ano e meio. Acredito que não nascemos para viver em privação, muito menos em tortura. E foi por isso que instalei a tal app.

A minha ideia não era ser picuinhas, mas se o objetivo passava por me envolver fisicamente - qual fisicamente? Sexualmente mesmo, vamos ser claros - com alguém, precisava que, de algum modo, alguma coisa na pessoa me atraísse ou, pelo menos, que ela tivesse algum potencial para me convencer a deitar-me sem roupa a seu lado, ou em qualquer outra posição que, no momento, viesse a revelar-se conveniente - foquemo-nos no "deitar-me sem roupa" para ficar mais simples.

Ao fim do terceiro ou do quarto dia de buscas em vão (nunca foram buscas particularmente intensivas, de resto: abria aquilo e via o que havia de novidades, até pouco depois me sentir entediada e pensar "ai, que disparate" e sentir-me frustrada e até envergonhada por andar naquilo - em geral acabava a rir-me de mim mesma e a pensar "ai, Catarina, onde tu vieste parar"), lá encontrei um rapaz, um homem, que devia estar pertos dos seus cinquentas. Não tenho problemas com isso, pelo contrário. Dadas as circunstâncias, tenho muito mais apetite por alguém que saiba o que faz e que tenha a cabeça arrumada do que por algum miúdo cheio de hormonas, de paixões e de ilusões, com quem o mais provável seria descobrir um beco sem saída, a ilusão do amor e, no fim, um novo desapontamento doloroso. Nem hesitei: fizemos match. Nem dez segundos depois, estávamos a trocar mensagens. O apetite dele não devia ser inferior ao meu, pelo que marcámos encontro para o dia imediatamente a seguir. Fomos jantar. Ponto para ele: gosto de homens com confiança e ele nem por um momento mostrou hesitação.

Encontrámo-nos num restaurante daqueles neo-chics do centro da cidade. Um daqueles onde se pode comer atum braseado e saladas com salmão fumado. Desses mesmo. O vinho era biológico e a copo. Não me importei. Ele chamava-se Gustavo e reproduzia, no mundo real, uma imagem fiel daquela que o seu avatar de engates online prometia - só que era ainda mais giro. Mais pontos para ele. Começou a falar-me de si mesmo, da vida, do trabalho, do sucesso. "Tenho um turismo rural no Alentejo", disse ele, e eu não consegui suster o riso. Foi só uma risada, não desatei a rir-me à gargalhada. Perguntou do que me ria, disse-lhe "nada, nada, lembrei-me só duma coisa, um dia eu conto". Não conto nada, estava a mentir. Ri-me porque acho muita graça a esta gente, estas pessoas que já não conseguem ter alojamentos, nem hotéis, nem pensões, nem albergues, nem hospedarias: têm turismos. Neste caso, turismos rurais. Acho piada, faz-me rir esta ideia de que se pode ter "um turismo". Obviamente, não detalhei com o Gustavo esta particularidade. Não estávamos ali para isso: estávamos ali para bebermos três ou quatro copos cada um, o mínimo razoável para nos sentirmos reciprocamente atraídos e, desse modo, sermos incapazes de resistir ao impulso animal que nos diria "eu preciso urgentemente de acasalar com esta pessoa que está diante de mim". A minha exigência era baixa e acredito que a dele também.

A seguir falou-me dos seus gostos refinados. Começou por aquele que, a seu ver, seria o mais sofisticado e distinto: "Adoro viajar". Franzi o rosto, como se não tivesse percebido. "Não, a sério, gosto mesmo de viajar", disse ele, sem perceber a minha reação. Nestas ocasiões, tenho um dispositivo interno que gera uma espécie de bílis sentimental, e que obtenho a partir da mistura entre o sarcasmo e a compaixão. Então, decidi explicar-lhe, ou dar-lhe a entender aquilo que eu achava. "Mas não gostamos todos de viajar?", perguntei-lhe. Fez uma expressão de espanto e, ao mesmo tempo, recuou como se estivesse surpreendido, ou apreensivo, ou talvez melindrado por eu não lhe apreciar devidamente uma paixão tão rara. Indiferente, prossegui: "É que eu não conheço ninguém, uma única pessoa, que não goste de viajar. E, repara, se fizermos as contas, é possível que não exista um português, um único compatriota nosso a residir em território nacional, que more a mais de duas horas de um aeroporto com voos low-cost para um destino qualquer."

O Gustavo não parecia lá muito convencido com esta minha explicação em que reuni factos com ironia e os apresentei quase sempre sob a forma de questões. Achou que devia explicar-se. E aqui, preciso de fazer um à-parte. Há dois tipos de pessoas no mundo: as que discordam daquilo que dizes começando por "sim, mas" e as que o fazem iniciando as frases com "não, mas". O Gustavo era do primeiro tipo: disse "sim, mas eu herdei o meu gosto já dos meus pais, que viajavam muito" (ele não disse "muito", disse "imenso", mas eu não gosto quando as pessoas dizem "imenso" por tudo e por nada). "Eles iam a Espanha constantemente, e não era só a Badajoz", disse isto e riu-se; mais uma vez por compaixão, sorri também. Pedi mais dois copos de vinho, ele pareceu surpreendido, mas não se opôs. 

"Adoro Londres", continuou. "Já fui a Londres seis ou sete vezes", e eu "ah, boa, Londres. Ena". "E Amesterdão, gosto tanto de Amesterdão, dos canais, das bicicletas, dos coffee shops", e eu "caramba, tu certamente sabes escolher as tuas viagens. Aposto que também conheces Roma e Paris", atirei. "Ah, claro que sim. Adoro Paris, o Sena, o Quartier Latin - que significa ‘quarteirão latino’ -, a arquitetura, os cafés, enfim. Sou fascinado." "Meu Deus, Gustavo. Quem me dera ter tido uma educação assim dos meus pais, essa coisa, esse estímulo pelo exótico, pelo que é raro." Pedi mais dois copos e engoli o meu quase de penalti enquanto pensava "vamos, Catarina, agora não vais voltar atrás". Acabámos em minha casa. Não me lembro do resto da conversa. Na manhã seguinte, acordei ressacada e sozinha, ele já se tinha ido embora. Tinha também rasgado um canto de uma folha de papel que estava em cima da mesa da sala para escrever uma nota de despedida: "Encontramo-nos por aí, no vasto mundo. Beijo, G". Fiz café. Precisava de muito café. E de muita água, "imensa água". Doía-me a cabeça e sentia o corpo amassado - sentia-me invadida, remexida, usada. Sentia-me bem.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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