Histórias de Amor Moderno

“Os homens são estranhos quando querem pagar tudo (...) para que, em troca, os tratemos como se fôssemos a mãe deles.”

“‘Se o teu sonho era seres tu a pagar, podes ficar feliz - abre o Dom Pérignon e celebra, Valter, hoje és mesmo tu quem paga a conta’”. Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB @ Animais Nocturnos
04 de novembro de 2023 Maria Olívia Sebastião

Aproveitei o momento em que o Eduardo se levantou para ir à casa de banho - ele, se me ouvisse, corrigir-me-ia de imediato: "quarto de banho", diria ele, com aquela maneira afetada de falar de menino que cresceu na Foz - e pedi para pagar. Já tínhamos terminado a refeição, sobremesa e tudo, e até tomado café. O empregado respondeu-me "trago já a conta", mas eu disse-lhe que me trouxesse tudo, a conta e a máquina dos cartões, queria tratar logo de deixar pago.

Quando o Eduardo regressou à mesa, refrescado e penteado, sorriu-me e fez sinal ao empregado - aquele sinal universal para pedir a conta, em que fingimos escrever no ar. O rapaz sorriu como quem não entende e o Eduardo insistiu, agora em voz alta, "era a conta", ao que o outro respondeu "já está pago, senhor". Não me importava de pagar uma vez mais só para poder ver de novo a expressão no rosto do Eduardo: baralhado, deixou que a firmeza muscular que lhe levantava o sobrolho lentamente desse de si e o olhar lhe descaísse, como se estivesse a derreter-se pela face abaixo, e tudo isto enquanto a palidez lhe tomava conta da pele que, passado uns momentos e uma vez recuperada a tensão de todos os tecidos que lhe compõem a cara, passou rapidamente a ruborescer - de raiva. "E você aceitou?", perguntou ele, fulminando com o olhar o rapaz que não sabia o que responder, muito menos o que fazer. "Vamos embora", ordenou-me. Eu fingi que obedeci e usei o meu melhor sorriso.

Assim que saímos do restaurante, gritou-me, disse-me que não me admitia, que não foi criado assim, que uma mulher, à mesa dele, nunca pagará a conta, que há certos preceitos em que não se mexe, "as boas maneiras são sagradas, Maria" - ele disse-me isto e eu pensei "que frase mais pia". Deixei-o falar, até que lhe respondi: que ele era um conservador, que ele gostava de sentir o poder nestas pequenas coisas, que eu não queria sentir-me condicionada por ele e muito menos ser refém das suas maneiras antiquadas. Quando chegámos a casa dele, eu não entrei. Peguei no meu carro e fui-me embora, para o meu apartamento. Felizmente, não tivemos a má ideia de viver juntos.

Passado um bocado, talvez meia-hora ou pouco mais, tocaram à campainha. Era o Eduardo, queria conversar. Perguntei-lhe se estava mais calmo, respondeu-me que sim e apontou o rótulo de uma garrafa de bom vinho para a câmara de vigilância como quem diz "vamos fazer as pazes". Subiu, abrimos o vinho enquanto conversávamos sobre os limites da legitimidade e o futuro do conservadorismo, mas sem grande fervor. Ao segundo copo, estávamos enrolados no sofá e não chegámos ao terceiro: levei-o para o quarto, despi-o, atirei-o para cima da cama. Makeup sex é uma recompensa mais do que justa para toda aquela tensão injustificada. Quando me sentei em cima dele, no clímax da excitação, disse-lhe "não sejas um menino, Eduardo, eu paguei o jantar, podes muito bem ser a minha bitch".

A relação com o Eduardo acabou naquele dia agora distante. Não importa o que me disse a seguir, nem a maneira humilhada como pegou na roupa e a levou embrulhada debaixo do braço até ao parque de estacionamento. Deixou os sapatos para trás, deixei-os cair da janela do quarto andar. Não sei se os apanhou, não me interessa. Tive uma certa pena desse final abrupto e, principalmente, sem fundamento, agora que penso nisso. O motivo parece-me, a esta distância, mesquinho, pobre. O Eduardo era um bom rapaz, educado, bem formado, com a cabeça no lugar, bonito. Só que este exagero conservador não era compatível comigo. E às vezes é nas coisas simples que os exageros e as incompatibilidades se revelam. Uma conta deixa de ser só uma conta quando se transforma em motivo para uma discussão séria.

O Eduardo não era o único a não saber lidar com a minha postura no que respeita a pagar ou não pagar. Os homens são estranhos quando fazem questão de pagar sempre tudo. Porque parece que o fazem para que, em troca, os tratemos como se fôssemos a mãe deles. É uma espécie de transação. Em troca de jantares em bons restaurantes, conquistam o direito de nos perguntar se sabemos das suas meias, dos seus relógios, dos sacos de viagens, do blazer bege, dos óculos de aviador, dos botões de punho. E eu com isso não lido bem. Se não sabem das roupas, procurem-nas; organizem-se, arrumem-nas, antes de mais. Precisam dos objetos, dos utensílios, dos gadgets? Pois bem, então vão buscá-los. Já são crescidinhos. Se são adultos o suficiente para pagar o jantar com o objetivo de, horas mais tarde, se entreterem a tirar-me o soutien e a colher recompensas entre as minhas pernas - e não só -, também já têm idade para saber onde deixaram a carteira e o relógio, o casaco e a pasta do trabalho. Não me macem.

Além desta tendência natural para, a troco de jantares e de viagens, de saídas e de estadias, se sentirem no direito de serem cuidados por nós, mulheres, existe ainda um lado cultural, uma coisa muito tradicional que os condiciona e que não tenho outra explicação para a sua origem que não seja o machismo enraizado. E é nítido o desconcerto nas expressões deles quando percebem que perderam o direito a pagar-me tudo, como achavam que estava pré-definido pela ordem universal dos assuntos entre homem e mulher. Vivi um caso em que esse desconcerto se transformou num drama muito maior.

O Valter. O Valter uma vez riscou-me o carro com um vidro. Saímos do restaurante, paguei eu a conta, e ele perguntou-me "também pagaste o vinho, ou não?" Encolhi os ombros, "claro, paguei tudo". Voltou a entrar. Saiu de lá com a garrafa na mão. Bebeu da garrafa aquele último gole, um resto que tinha. Depois, partiu a garrafa, ficou com o gargalo na mão. Temi o pior. Mas não veio em direção a mim, foi direito ao carro e riscou-o, da traseira até à frente, do lado do condutor. No fim, chamou-me cadela, atirou o vidro fora e seguiu a pé a sua vida, foi-se embora. Dias mais tarde, comecei a receber nas redes sociais vários comentários dele. Não eram apenas desagradáveis, eram ameaçadores. Tentei chamá-lo à razão, primeiro em privado, por mensagem, "Valter, porque fazes isto? Só porque paguei uma conta?" Não quis saber, continuou. Soube, poucos dias depois, que circulavam fotos minhas, nua ou seminua, em poses comprometedoras, que deviam ter ficado na nossa intimidade, mas que ele cobardemente tratou de partilhar em grupos de Whatsapp e de Telegram. Cortei relações, mas não deixei que acabasse ali: fiz denúncia ao Ministério Público, consegui uma providência cautelar que lhe impunha uma série de restrições. O caso seguiu para tribunal, foi para julgamento - mexi todos os cordelinhos que podia, contratei a melhor equipa de advogados. Consegui uma indemnização apreciável, que um dia hei de gastar em viagens e jantares com um companheiro que me mereça. Depois de lida a sentença, aproveitei para lhe dizer, cara a cara: "Se o teu sonho era seres tu a pagar, podes ficar feliz - abre o Dom Pérignon e celebra, Valter, hoje és mesmo tu quem paga a conta".

Mantenho-me intransigente na minha postura: nenhum homem há de controlar-me. Pelo menos, não só porque me paga coisas fúteis. Podem dar-me ordens, sim, desde que no sítio certo e se me souberem levar para lá. Têm de ter jeito e espírito. A força que me importa não lhes pode vir da conta bancária nem do controlo dos timings, "vou pagar, vamos embora" - e se não me apetecer ir embora? E se eu não quiser sair daqui contigo? Gosto de manter o meu perímetro de autonomia completamente desimpedido. E, para mim, qualquer empecilho pode tornar-se um impedimento. E eu não lido bem com impedimentos nem com empecilhos.

No último verão, conheci o Filipe. É lindo. Quando digo que é lindo, não me refiro a uma pessoa linda por dentro, cheia de sol new age e excelentes intenções para resgatar o mundo da sua marcha inexorável em relação ao abismo cósmico. Não: é um borracho, uma coisa estonteante. Se alguém neste mundo merece ser objetificado sexualmente, é ele, o Filipe. Uma verdadeira bênção da natureza que, em sorte, me calhou. Seis anos mais novo do que eu, ingénuo e curioso, inteligente e fresco, vigoroso, claro, e acima de tudo sem preconceitos nem dinheiro: é perfeito. Jornalista imberbe e pretendente a escritor, tem também uma banda e compõe canções. Não tem sucesso, mas tem talento. É giro, é divertido, é desprendido. Este ano, para o Ano Novo, perguntei-lhe onde é que ele gostava de ir. Disse que queria ir aos Açores, porque só lá foi uma vez há já muitos anos, com os pais, e lembra-se de ter gostado, gostava de lá voltar. "Açores? Não é má ideia", disse-lhe eu. "Mas sabes o que é que é muito parecido com os Açores? É o Havai. Ah, vamos! Convido eu."

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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