Histórias de Amor Moderno: “Temi nunca vir a conhecer alguém que me aceitasse assim, com estes caprichos, com estes prazeres”
“Ir às compras foi sempre um dos meus passatempos favoritos, se não mesmo o preferido.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Entrar em lojas ao acaso e ficar horas de roda do que encontrasse: casacos, saias, blusas e camisas, ou tapetes, atoalhados, mesas de cabeceira e candeeiros, ou perfumes, sais de banho, cremes anti-rugas e desmaquilhantes, ou qualquer outra coisa. Até um bazar chinês era capaz de me prender durante uma ou duas horas, como se fosse um mundo de fantasia, um paraíso de possibilidades, novos mundos por desvendar, curvas das vida por desdobrar, cada uma com uma etiqueta de preço.
Ir às compras foi sempre um dos meus passatempos favoritos, se não mesmo o preferido de entre todos. Há quem goste de ler, há quem aprecie passear, quem se deleite com a gastronomia, as artes, as conversas. Eu prefiro as compras. Digo-o e sinto que preciso de me explicar: a compra, em si, não é o meu objetivo. Não me vejo, de todo, como uma pessoa consumista. Do que eu gosto é da possibilidade de comprar, da aquisição em potência, de imaginar o que poderia fazer com cada objeto, que função poderia cada um desses potenciais novos bens desempenhar na minha vida. Se a vida se faz de pequenas coisas, então todas essas coisas pequenas representam mudanças de vida em potência, caminhos, ainda que curtos, que eu tenho por desbravar, às vezes à distância de uns poucos euros.

O preço mais caro a pagar por estes prazeres não é financeiro. Nem todos os homens são capazes de lidar com alguém que tanto preza o andar de loja em loja, sem destino nem propósito, só em busca de tudo o que pode acontecer e quase nunca acontece. Houve, pelo menos, duas relações longas que acabaram por não se alongar ainda mais porque, acho eu e me disseram eles, este meu comportamento, ou esta minha compulsão, causou um desgaste irreversível naquilo que tínhamos. Vi-me obrigada a escolher: em ambos os casos, ou eles ou as lojas. No primeiro caso, com o Lourenço, escolhi-o a ele. Ao fim de algum tempo, tornei-me triste, apagada, sem vida. Parecia que vivia sem objetivos, os meus dias não tinham uma finalidade. Percebi depois que o amor que tinha por ele era pouco quando comparado com a vontade que eu tinha de voltar para perto das estantes, prateleiras e cabides que compunham o mundo encantado onde me perdia em sonhos e fantasias. No segundo caso, com o Raul, nem hesitei: impelida a escolher, escolhi as lojas.
A vida tem muitas surpresas. Depois da minha separação do Raul, que foi o culminar de uma relação que ainda durou quase três anos, temi não voltar a encontrar alguém. Ou, melhor: mesmo sabendo que havia de encontrar outras pessoas, temi nunca vir a conhecer alguém que me aceitasse assim, com estes caprichos, com estes prazeres, porventura raros, acredito que o sejam. Mas é um gosto mais forte do que eu. Além disso, nunca exigi de ninguém tempo nem dinheiro para os meus devaneios pelas lojas. Nunca fui de gastar muito. Só gosto de imaginar coisas, de experimentar as roupas e os sapatos, de contemplar, muito concentrada, um conjunto de cozinha e de imaginar o que faria com ele, onde o arrumaria, em que circunstâncias havia de pô-lo a uso.
Foi numa loja de roupas, num grande outlet dos arredores de Lisboa, que uma dessas surpresas da vida veio cair-me no colo. Os provadores masculinos eram ao lado dos femininos. Eu, solteira, sozinha, decidi mimar-me com uma tarde a experimentar roupas. Quando passas uma hora, duas, três horas na mesma loja, as pessoas acabam por te reconhecer. As funcionárias começam a sorrir-te, primeiro, depois a revirar os olhos quantos lhes pedes um S ou um XS, mais tarde voltam a sorrir-te - porque acabas por vencê-las pelo cansaço, suponho. Um reconhecimento semelhante ocorre com clientes que se demoram tanto como tu. Se o cliente for homem - e como é raro um homem demorar-se todo esse tempo entre escolhas e provadores - é normal que repares nele. E que ele repare em ti.

Chamava-se Manuel, mas não mo disse logo. Primeiro, perguntou-me "acha que me fica bem?" Estava cá fora, diante do espelho. Apanhou-me de surpresa, não consegui responder. Antecipou-se, percebendo a minha atrapalhação, pediu desculpa, disse que não tinha a quem pedir opinião. "É que tenho um casamento dentro de duas semanas e não tenho a quem pedir opinião", explicou-se, acrescentando que "é o lado mau de ser solteiro", e riu-se e eu ri-me também, porque, de facto, teve graça.
Nessa tarde, ajudámo-nos um ao outro. Eu a ele, a escolher as peças de roupa que havia de levar ao tal casamento, e mais umas quantas peças que levou porque simplesmente gostou; e ele a mim, a escolher peças de roupa para eu fantasiar durante alguns minutos, mas que não compraria, porque na realidade nunca as quis comprar. Simplesmente, queria senti-las, vesti-las, projetá-las num futuro que nunca viria a acontecer, mas que podia ser o meu se eu quisesse. O Manuel não comentou nem fez perguntas acerca deste meu gosto. Sorriu e continuou a dar-me as suas opiniões, que me pareceram de cultivado bom-gosto, ao mesmo tempo que ia escolhendo para si peças que experimentava e que, na maioria dos casos, acabava por rejeitar e devolver às empregadas.
Quando saímos da loja, ao mesmo tempo, não me apetecia separar-me logo dele. E acredito que ele também não quisesse separar-se de mim. Assim que pusemos um pé na rua, disse-me "quer vir comigo à próxima loja? Preciso de escolher uns óculos de sol e gostava de contar com a sua opinião." Acredito que o meu "sim, claro" saiu muito mais rápido do que eu desejaria. Entrámos na loja e, ao fim de algumas experiências, perguntou-me se eu não queria experimentar alguns. Acedi, experimentei. Acho que experimentamos tudo o que havia na loja. Acabei por gostar de uma mão-cheia de modelos, alguns deles de marcas razoavelmente caras; o Manuel gostou também de uns poucos e, de entre esses, houve três acerca do quais concordámos que lhe ficavam lindamente. Comprou-os a todos. E ainda me desafiou a dizer-lhe quais tinham sido os meus preferidos daqueles que eu tinha gostado. Disse-lhe "estes aqui", eram uns Gucci lindos de morrer. Perguntou-me se mos podia oferecer. Corei, fiquei embaraçada, disse-lhe que não me sentia à vontade para aceitar. Então respondeu-me "você é que sabe, mas eu já os comprei - e comprei-os para si". "Não posso obrigá-la a aceitar, mas parece-me um desperdício que fiquem para mim, já que não me ficam bem." Fez-me rir. E fez-me aceitar.

Nessa tarde, convidou-me para jantar, mas eu não aceitei. Não quis acreditar que tudo pudesse acontecer assim tão depressa e eu sabia muito bem que, naquele momento, estava completamente rendida aos seus encantos. E o Manuel, encantador como é, não insistiu. Pediu-me duas coisas: o meu contacto e que nos tratássemos por tu. Sorri e disse-lhe que sim a ambos os pedidos. Depois, quando nos despedimos, voltou-se para trás e disse: "Podemos marcar já um encontro? Gostava muito que fôssemos às compras juntos." O meu sorriso deve ter sido exageradamente espantado e incrédulo, pois ele próprio se riu. "A sério, vamos os dois. Pode ser amanhã?" Eu fiz que sim com a cabeça e não disse mais nada. O tal casamento é para a semana. Vamos juntos. * Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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