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Histórias de Amor Moderno: “Eu nunca fui deste tipo de relacionamentos de uma noite, de conhecer, fazer qualquer coisa e partir, nunca mais pensar nisso”

“Os bares de praia e os seus sunsets de verão são clássicos modernos do verão algarvio. Música mexida, corpos bronzeados, óculos de sol, braços no ar.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

'Antes do Amanhecer' (1995).
'Antes do Amanhecer' (1995). Foto: D.R
29 de julho de 2023 Maria Olívia Sebastião

passei mais férias de verão com o Rafael do que com qualquer outra pessoa, e estou a incluir nestas contas os meus pais, os meus dois irmãos e as namoradas de longa duração que tive. Não foram muitas, é certo, nem duraram demasiado, é um facto - mas existiram e, mesmo enquanto existiram, as minhas férias eram passadas com elas e com o Rafael, tivesse ele ou não namorada na altura.

Nunca tivemos um destino de verão fixo, embora sempre tenhamos tido o Sul como referência. Nos últimos quatro ou cinco anos, explorámos a zona de Altura, Manta Rota, Cacela, sempre tentando não repetir o lugar do ano anterior. No ano passado, fomos para a Praia Verde. Combinámos com mais alguns amigos - duas amigas, a Matilde e a Inês, e um amigo também de longa data, o João, um casal amigo do João e ainda um outro casal amigo desse (as férias com amigos são como cachos de uvas, há sempre mais uma ramificação) - e alugámos duas moradias geminadas, com pátio partilhado. Uma categoria.

Logo na primeira tarde, que depois se prolongou noite adentro, decidimos celebrar o verão, a amizade e as férias: fizemos um churrasco a condizer com o momento, com carnes várias, saladas, sangria em abundância e cervejas frescas em baldes de gelo. O Rafael, que leva estas coisas a sério, trouxe uma garrafa de champanhe que decidiu abrir enquanto eu tratava das brasas e declarou "está aberto o verão!"

O entusiasmo, o calor, o ambiente festivo, os biquinis, os calções e o tronco nu, tudo regado com bebidas frescas e desregrado pelo regulamento implícito das férias que diz que é proibido proibir, é propenso a desencadear certas situações. Acordei no dia seguinte em cima da minha cama, que nem abri. Ao meu lado, a Inês. Não estávamos completamente nus. Alguma coisa aconteceu, seguramente, embora eu não saiba dizer ao certo o que foi. Não acredito que tenhamos feito nada de demasiado sério, o que podia trazer embaraços num futuro imediato - somos amigos há mais de dez anos, nunca sequer me tinha passado nada pela cabeça relacionado com estarmos juntos. A Inês despertou seminua, confusa e envergonhada. Vestiu o que pôde - mas também não havia muito para vestir: a parte de cima do biquini (que deixou para trás, no chão), um top ligeiro, uma canga, na qual se enrolou à pressa - e saiu para o quarto dela, duas portas ao lado do meu. Nós, os solteiros, estávamos todos na mesma casa; os dois casais estavam na casa do lado.

O pequeno-almoço foi estranho e tenso. Eu e a Inês evitámos qualquer tipo de contacto, até mesmo o contacto visual. Quase ninguém falava, só os casais com as suas conversas mundanas, feitas de detalhes desinteressantes, das quais me desliguei desde o início. O Rafael de vez em quando olhava-me visivelmente chateado. Às tantas, perguntou, para toda a gente ouvir e com muita ironia, "então, essa noite foi boa? Ahn, pombinho?" Riu-se cinicamente, levantou-se da mesa e foi-se embora.

Eu nunca fui deste tipo de relacionamentos de uma noite, de conhecer, fazer qualquer coisa e partir, nunca mais pensar nisso. Esse é mais o estilo do Rafael, que toda a vida colecionou flirts e encontros, acasos e one night stands. Não acrefito que o faça por mal ou sequer por alguma espécie de orgulho másculo, ou de exibicionismo macho. Fá-lo porque o diverte, porque o desafia, porque gosta de ser pôr à prova. Mas desta vez ficou claramente melindrado por ter sido eu, e não ele, a pôr em prática um jogo que, parece-me, julga ser o seu domínio.

Conheço o Rafael há demasiado tempo para saber que, quando está naquele estado, o melhor é deixá-lo estar, não adianta ir atrás dele e perguntar-lhe o que se passa. Precisa, primeiro, de se acertar consigo mesmo, de arrefecer os ânimos, baixar a pressão e a pulsação. Assim que ele saiu da mesa, a Inês aproximou-se de mim e, também com ironia, perguntou "então, o teu amigo está amuado?", e foi também ela para dentro de casa, recolhendo ao seu quarto.

O ambiente manteve-se tenso durante quase dois dias. O Rafael mal me falava, a Inês evitava-me a todo o custo e os outros, por precaução, não se aproximavam de nós, com receio de tomar partidos, exceto a Matilde, que era amiga de infância da Inês e que, por isso e pelo inestimável peso da sororidade que decidiu carregar sobre os próprios ombros e descarregar sobre a minha consciência - a expressão com que me olhava transbordava de acusação, recriminação e nojo -, decidiu que andaria sempre ao lado da amiga, estimando-a e protegendo-a, como se fosse sua aia.

Habituei-me ao ritmo e ao estado geral das coisas, mas custou-me. A ideia de passar as férias de verão excluído de grupos e de amizades deprimia-me. Decidi, então, mandar mensagem ao Rafael, "mano, vamos lá beber uma e ver as vistas no bar da praia?" Acho que ele próprio estava desejoso de que eu o desafiasse. Respondeu quase de imediato, "vamos lá".

Os bares de praia e os seus sunsets de verão são clássicos modernos do verão algarvio. Música mexida, corpos bronzeados, óculos de sol, braços no ar, cheios de pulseiras de tecido e de cabedal. No meio de toda esta vaga frenética de contemplar o pôr-do-sol, estávamos nós, a beber a nossa cerveja, lado a lado, a observar, a conversar sobre a vida. O Rafael acabou por admitir que sempre teve um fraquinho pela Inês, mas que sempre lhe faltou a coragem para avançar, para lho dizer, para tentar alguma coisa. Pediu-me desculpa pelo comportamento e pela zanga. Rimo-nos, brindámos. A nossa amizade acima de tudo!

E estávamos nisto, na mais juvenil celebração da amizade e dos bons tempos, quando a vimos passar: morena, cabelos comprido atados atrás num rabo de cavalo, um biquini reveledor, um corpo esculpido, tonificado. E depois o comentário clássico do Rafael: "Achas que são verdadeiras?" Ri-me, meio envergonhado, não costumo reagir com à-vontade a este tipo de comentários. Mas a dúvida pareceu-me legítima, pelo que respondi "a pergunta certa é: será que conseguimos descobrir?" E então rimo-nos os dois. Ela percebeu que estávamos a falar dela, olhou para nós e sorriu. E depois caminhou na nossa direcção.

O Rafael, que é um tipo confiante e experiente, disse "ups, eu acho que é melhor seres tu a resolver este problema", levantou-se e foi-se embora. "O teu amigo ficou com medo?", perguntou-me ela quando chegou ao pé de mim, e eu só pensei "porque é que se referem a ele chamando-lhe ‘o meu amigo’?" "De que é que estavam a falar e a rir tanto enquanto olhavam para mim? Achas que tenho muita graça?" Eu sou terrível a mentir e, depois de duas tentativas de justificar as nossas gargalhadas com invenções disparatadas, acabei por admitir: "Ficámos com dúvidas, só isso", "dúvidas em relação a quê?" Mantive-me em silêncio durante uns segundo e depois não resisti: "Não sabemos se são verdadeiras", disse, e fiz a minha melhor expressão de puto reguila, com o meu melhor sorriso de quem sabe que vai ouvir ralhar. Ela abriu a boca de espanto e depois riu-se, mas riu-se às gargalhadas, "eu não acredito", dizia enquanto se ria, "eu não acredito", repetia. "Que vocês tenham comentado isso, ainda vá… agora que tu tenhas a lata de admiti-lo, isso é demais. Adoro!" E deu-me um beijo. "Queres tirar as dúvidas?"

Eu nem acreditava no que me estava a acontecer. Foi tudo tão rápido - e tão leve, tão simples, tão bem-disposto, positivo, feliz. A felicidade deve ser só isto: pessoas que estão bem e que não se complicam. Durante a noite, que era a última noite de Cristina na Praia Verde, divertimo-nos em sua casa, fazendo tudo o que nos apeteceu enquanto ouvimos música, comemos e bebemos. Também conversámos muito. Falámos de tudo o que se fala quando se conhece alguém por quem ficamos deslumbrados. Falámos de cinema. Decidimos não trocar contactos e não procurarmos um pelo outro nas redes sociais: "Fazemos como no Antes de Amanhecer: se nos desejarmos realmente, para o ano, daqui a exatamente um ano, encontramo-nos de novo ali, no bar da praia, durante o sunset", ordenou Cristina. E eu, a muito custo, obedeci. Por isso, Cristina, se me estiveres a ler: estou a caminho.

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