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Histórias de Amor Moderno: “A noite avançou, até que não me contive e disse ‘Flávio… tu és o rapaz mais bonito que eu conheci em Lisboa’"

“Aquilo de que eu mais gostava era do Flávio, um empregado de mesa italiano com tudo aquilo que um rapaz italiano merece ter.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: White Lotus
01 de julho de 2023 Maria Olívia Sebastião

Cheguei a Lisboa em novembro de 2019, pouco antes da maldita pandemia que mudou tudo. Se calhar não mudou tudo, talvez tenha mudado pouca coisa, mas o mundo, quando despertou lentamente daquele pesadelo coletivo, já não era exatamente o mesmo. A mim, pelo menos, nunca mais me pareceu igual.

Tanto quanto sei, Lisboa era então a cidade mais vibrante do planeta. Tinha tudo o que alguém como eu - jovem, empreendedora, independente e com uma profissão liberal - podia desejar: um clima fabuloso, uma beleza natural ímpar, uma arquitetura sui generis, que tanto podia ser puramente acidental como fruto do génio artístico de alguém que conseguisse ir desenhando, com caos e criatividade, um centro histórico feito de subidas e descidas, cores, fachadas, feitios e tamanhos diferentes. Tinha uma gastronomia local peculiar e permitia um custo de vida muito equilibrado, até para quem cometesse excessos, o que não era o meu caso.

Essa foi a Lisboa de que pude desfrutar durante cerca de meio ano. Depois, com a clausura compulsiva do mundo, tudo parou. E quando, dois anos mais tarde, as portas começaram a  reabrir-se, já era outra a Lisboa que ali estava. Os meus amigos tinham todos, ou quase todos, mudado de cidade, uns porque regressaram ao sítio de origem nos intervalos dos confinamentos, outros porque simplesmente continuaram as suas vidas de trota-mundos. E eu dei por mim um pouco à deriva, sem referências. De repente, a minha comunidade esfumara-se. Os próprios lugares - cafés, entenda-se - que frequentava tinham fechado ou mudado.

Foi então que comecei a ir ao Food Hub do bairro onde vivi mais tempo. A esplanada era ótima e foi esse o primeiro motivo que me levou a experimentar um café que, na verdade, estava a poucas dezenas de metros do apartamento onde eu vivia. Aos poucos fui experimentando vinhos e comecei a apreciar até algumas das cervejas artesanais portuguesas do menu. Os preços eram simpáticos e o atendimento era amistoso e descontraído. O café tornou-se o sítio ideal para manhãs intensas de trabalho e longas tardes de lazer com o laptop à frente, só para o caso de ser preciso. 

Mas aquilo de que eu mais gostava era do Flávio, um empregado de mesa italiano com tudo aquilo que um rapaz italiano merece ter: pele morena, cabelo escuro, olhos quase negros, lábios carnudos, uma barba curta, um certo ar de pirata. Infelizmente para mim, era gay. Mas isso não seria impedimento para que eu me sentasse na esplanada durante horas, com o computador aberto, a trabalhar e a saborear uma cerveja ou provar um copo de vinho, enquanto fazia conversa com ele e aproveitava para o contemplar. O Flávio merecia ser contemplado.

Não demorou muito tempo até que eu e o Flávio nos tornássemos amigos. Não diria próximos, não quebrámos certas barreiras, não nos punhamos a desabafar intimidades um com o outro nem entrávamos nos universos confidenciais um do outro. Mas ganhámos confiança, contávamos piadas, ríamo-nos das trivialidades, sempre num registo absolutamente recíproco e nada forçado. O Flávio acabou por me convidar para jantar em casa dele. Aceitei o convite com muito entusiasmo. Comprei um vinho italiano, um Primitivo da Puglia, que achei que faria sucesso - e fez mesmo -, vesti-me com aquela descontração que leva algumas horas a compor e que sabemos que causará impressão. Acreditei que, da mesma maneira que eu me sentia fisicamente atraída pelo Flávio, também ele, apesar da sua sexualidade, podia sentir algum tipo de desejo por mim.

Cheguei a casa do Flávio, um apartamento num último andar sem elevador de um prédio muito giro num dos bairros indie-chic da cidade, bati à porta. Ele abriu, olhou-me de alto a baixo, abriu a boca de espanto e soltou um "uau, Maria!" E enquanto eu sorria, gozando o momento e sentido aquele prazer tímido do entusiasmo e da esperança, ele gritou lá para dentro, por cima da música que tocava nas colunas, "Rafael, vieni qui!, vieni ver a Maria, linda". O Rafael era um rapaz mulato, atlético, com dreadlocks curtos e muito estilo. Era brasileiro, "olá Maria, você é mesmo muito linda, o Flávio tinha falado, uau". O Rafael era o namorado do Flávio e eu era uma pilha de desapontamento em forma de ser humano debaixo de um sorriso falso e forçado e por detrás de um olhar vidrado.

Entretanto, foram chegando mais pessoas ao jantar. Éramos sete, ao todo, o que me facilitou a vida, porque assim consegui mudar os settings do pensamento e não ficar só a pensar no erro ingénuo, na crença pueril de que, enfim, a beleza e o charme pudessem de certo modo contrariar a natureza de um homem. Sentia-me embaraçada, mas tentei não pensar muito nisso. Fui convivendo, o grupo era muito heterogéneo, claro, cheio de gente interessante com histórias magníficas, muito mundo, muita vida, muitas experiências. Também fui bebendo, o que me desbloqueou para que eu própria partilhasse as minhas histórias interessantes, as minhas aventuras, um pouco do meu percurso, o que restava das minhas ambições. Mas, acima de tudo, para fazer aquilo que sei melhor quando as noites vão avançando suavemente entre copos: ter uma certa graça. E foi assim que a noite avançou, até que, entre piadas e risos, não me contive e disse "Flávio… tu és o rapaz mais bonito que eu conheci em Lisboa" - disse-o num tom brincalhão e amistoso, aquele tom de alguém que afirma um facto facilmente constatável e inquestionável, não o tom de alguém que faz uma inconfidência sentimental. Ele agradeceu, "grazie, ragazza mia", e sorriu com franqueza e a boca mais linda que alguma vez vi e que me apeteceu beijar com urgência. Em vez disso, sorri também e perguntei, na brincadeira, "por acaso, não tens um irmão gémeo, pois não?" E ele riu-se, "ahahahahahah por acaso tenho mesmo, o Francesco".

Acho que nunca mais voltei a pensar nessa conversa, porque a noite prosseguiu, bebemos mais e certamente a minha memória obliterou a informação fugaz acerca da existência de Francesco. A minha vida continuou, tal como a vida de todos. Fiz novos planos. Como nada me prendia a Lisboa, reorganizei-me de maneira a mudar-me para Budapeste, cidade para onde duas das pessoas de quem me tinha aproximado na Lisboa pré-pandémica se tinham mudado também. Antes da paragem definitiva em Budapeste, ainda passaria dois meses em Antuérpia, com os meus pais.

Foi precisamente uma semana antes de viajar para Antuérpia que, ao chegar ao Food Hub, me deparei com o Flávio, só que era um Flávio diferente: em vez da barba, tinha somente um bigodinho e parecia um pouco menos moreno, talvez fosse impressão minha. Chamei-o, "Flávio, Flávio", e ele riu-se e respondeu "io sono Francesco, ragazza". E o meu cérebro e o meu coração pararam por momentos, como se fizessem freeze. Acho que sorri. Sei que senti um turbilhão confuso dentro de mim com muitos fins e muitas pontas soltas. "Deves ser a Maria", disse-me enquanto se aproximava, com um sorriso confiante. "Só podes ser tu a Maria…"

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