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Histórias de Amor Moderno: “Com o entretenimento, estive à beira do deslize. Experimentei o Call of Duty”

“Não consegui imaginar-me a levá-la para casa e a dormir com ela.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
25 de novembro de 2023 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Eu tenho um cão. Um Malinois, um Pastor Belga. Todos os dias, religiosamente às 6h45 da manhã, damos o primeiro passeio do dia. Num dia ideal, damos três passeios, o primeiro dos quais deve ter uma duração nunca inferior a 45 minutos, que devem ser distribuídos da seguinte forma: passeio rápido de trela sem comunicação além da essencial durante um terço do passeio; jogo com corrida no parque - normalmente, com bola ou com obstáculos - com uma duração de 20 minutos; 10 minutos para o regresso a casa, descontraído, com treats e festas. Chegados a casa, é hora da refeição: a ração de sempre na quantidade certa, à hora certa. Sem desvios.

O Dogo, o meu cão, é um animal de hábitos rígidos. A exigência das suas rotinas foi uma das características que me levaram a adotar um Malinois, e não qualquer outro cão. Físicos, enérgicos, inteligentes e leais, os Malinois são cães que exigem do dono cuidados rigorosos, atenção, planeamento e tempo. A palavra-chave aqui é tempo: quando adotei o Dogo, tempo era o que não me faltava.

Por vezes, é na mais profunda solidão que nos deparamos com a vida como se olhássemos para um puzzle: descobrimos lugares para as peças, às vezes peças de que desconhecemos a existência. E depois vamos montando tudo, preenchendo, até que o quadro ganhe forma, ganhe cores, ganhe uma paisagem, uma figura. Essa figura somos nós a existir. Antes da minha solidão, havia a Elsa. A minha paixão desde os tempos de faculdade, fez o curso ao mesmo tempo que eu fiz o meu. Conhecemo-nos porque frequentamos a mesma esplanada e porque tragicamente sofremos da mesma tendência para repetir padrões e horários, por dependermos mais do que seria saudável das rotinas intransigentes. Ao fim de algum tempo, reparámos um no outro. Depois sorrimos, depois falámos, depois sentámo-nos na mesma mesa. Cinco anos depois, casámo-nos. Ninguém da nossa geração se casava, muito menos com apenas 23 anos. Mas nós fizemo-lo. Não significa que tivéssemos feito bem.

Durante nove anos, fomos tentando construir uma vida em comum, enfrentando as dificuldades que as pessoas enfrentam no princípio da vida adulta e até encontrarem aquilo que, em princípio, será o seu lugar no mundo. Empregos instáveis e mal pagos, ambições oscilantes, insatisfação, incerteza, falta de dinheiro. À entrada nos trintas e sem uma cadeia de hábitos devidamente instituída, sem o conforto essencial a uma mente em permanente desassossego, descobrimos que não lidamos da mesma maneira com as mesmas coisas. Eu tentava reagir com método; a Elsa definhar, dia após dia, a caminho da frustração irremediável.

Eu tinha de a salvar e tudo o que podia fazer era deixá-la ir, deixá-la começar de novo - fazer reset, apagar-me da sua vida, tentar tudo outra vez. De início, a ideia não lhe fazia sentido, mas então decidi explicar-lhe com lógica, assertivo: se vais ficar deprimida, vais-me tirar ânimo e prejudicar; se me prejudicares, se eu ficar desanimado, nenhum dos dois terá cabeça para encontrar soluções; estaremos os dois condenados ao falhanço. Compreendeu a mensagem e aceitou. Acertámos detalhes da separação, dividimos o que havia para dividir, assinámos papéis, oficializámos o divórcio e concordámos nunca mais nos comunicarmos. Até hoje, temos cumprido. Já lá vão cinco anos.

Quando ficamos sozinhos e nos deparamos com o tal puzzle da vida do qual desconhecemos as peças e a imagem final, encontramos a primeira dificuldade: começar por onde? Tudo o que temos é um vazio e um monte de entulho indecifrável ao lado desse vazio. Depois de alguma hesitação, decidi arriscar e mexer no monte: tirei a primeira peça. E assim fui buscar o Dogo. Educá-lo, treiná-lo, cuidar dele, todo esse processo iria ajudar-me a criar as minhas novas rotinas. O tempo que o Dogo me ocupa ajudou-me ainda a descobrir uma nova preciosidade: o tempo que me sobrava. É muito importante sabermos a que horas do dia estamos livres para que possamos ocupá-las apropriadamente e sem desperdício. Acredito que uma rotina saudável produz mentes organizadas. E uma mente organizada estará sempre mais próxima da felicidade do que uma cabeça caótica.

Comecei a construir o puzzle. Entre o cachorro e o trabalho, determinei os tempos mortos e os espaços vazios. Aos poucos, fui encontrando as peças para os preencher: o ginásio, cinco vezes por semana, logo após o passeio matinal; o jantar de vinhos, uma vez por semana, de preferência à sexta-feira; experiências culinárias, leitura intensiva e entretenimento avulso nas outras noites da semana.

Com o entretenimento, estive à beira do deslize. Experimentei o Call of Duty. O entusiasmo pelo jogo, juntamente com a necessidade de o jogar em rede, dependendo da disponibilidade e das rotinas - ou da falta delas - de pessoas com quem não convivia e que divergiam de mim na maneira como estão na vida, fez-me baralhar horários e atrapalhar necessidades. Uma vez mais, o Dogo salvou-me: quando a sua rotina foi afetada, mostrou-se transtornado, diferente, mais triste, menos alerta, menos afetuoso. Vi-me obrigado a mudar, a corrigir. Deixei o jogo e escolhi outro. Hoje, o entretenimento lúdico limita-se ao Football Manager, cuja ampla vantagem reside na possibilidade de ser disputado em sossego e isolamento durante precisamente a quantidade de tempo de que disponho e que lhe destino.

Recentemente, num dos jantares vínicos, conheci uma pessoa. Chama-se Cândida, que é um nome encantador, e que remete para a imortal personagem criada por Voltaire. Sintonizámo-nos com muita facilidade durante as provas, trocámos ideias, rimo-nos com cumplicidade. Gosto da Cândida. Saímos uma vez, só os dois. Sacrifiquei uma das minhas noites de experiências gastronómicas, mas sinto que valeu a pena. No entanto, é hoje difícil para mim imaginar-me numa situação em que tenha de partilhar a minha vida e abdicar da minha solidão programada, em que todas as peças se encaixam com harmonia de maneira a formar aquilo que eu sou.

Nessa noite, jantámos, fomos a um restaurante simples, embora de qualidade. Depois disso, prolongámos o encontro e tomámos mais uma bebida noutro sítio. Mas não consegui imaginar-me a levá-la para casa e a dormir com ela. Cinco anos depois, prezo demasiado a minha vida com todos os meus pequenos rituais, todos os meus horários, todas as obrigações que assumi perante mim e também perante os que dependem de mim, como o Dogo.

Há uns dias, mandou-me mensagem, sugeriu que passássemos um fim de semana juntos. Mas eu disse-lhe que o fim de semana se dividia entre a família e o desporto: portanto, a minha visita aos meus pais, que estaria sempre dependente do calendário das equipas de futebol que acompanho. Ela respondeu-me com smiley. Sei que terá ficado triste. Sei que provavelmente me acha estranhíssimo e que dificilmente quererá arriscar alguma coisa comigo. E eu compreendo-a. Só que, no meio da vida, eu preciso de qualquer coisa que me seja infalível, que seja segura, estável, inabalável. E isso eu só posso encontrar em mim e no que construo, não existe lá fora. Resta-me esperar que a Cândida me compreenda e aceite.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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