Atual

Julia Navarro: “Reivindico as mulheres! A diferença não tem de nos tornar desiguais.”

Oito romances depois, a autora regressa com "Uma História Partilhada" – com eles, sem eles, por eles, contra eles, o livro em que a escritora espanhola resgata algumas das muitas mulheres que foram ficando fora das narrativas oficiais. Rainhas, filósofas, cientistas, escritoras. Personagens principais de uma História que urge (res)escrever.

Foto: Juan Manuel Fernández
20 de outubro de 2023 Rita Lúcio Martins

Há quem diga que somos o que comemos, Julia Navarro prefere a máxima "somos o que lemos". Ela lê muito e começou cedo, instigada pela avó que, todos os dias, esperava que regressasse da escola para lhe passar livros que até podiam não ser os mais apropriados para a sua idade, mas se revelaram sempre à medida da sua curiosidade. Criança inquieta, em constante negociação com as freiras do colégio onde estudava, Julia cresceu protegida pela família alargada, que a fez acreditar que podia ser o que quisesse. Assim foi. Primeiro, a jornalista que marcou presença nos mais importantes momentos da vida do seu país, depois a escritora, premiada e traduzida em várias línguas, que agora sai do território da ficção para entrar num registo mais confessional e assim nos falar de algumas das muitas mulheres, reais ou imaginárias que, de alguma forma, a inspiraram. Deusas, rainhas, santas, atrizes. Mulheres da ciência e da literatura. Naturalmente, ficaram muitos nomes de fora, como os das Três Marias, referências incontornáveis do feminismo em Portugal e que, em As Novas Cartas Portuguesas, escreviam "continuamos sós, mas menos desamparadas". Julia concorda e, também por isso, quer fazer parte da mudança. "Está na hora de definir novas regras!"

Este é o mais pessoal dos seus livros. De onde veio a necessidade de o escrever?

Precisava de fugir. Escrevi este livro durante o confinamento, na pandemia. Viver através dos vidros, das janelas e das varandas de minha casa foi quase insuportável. Preciso de pessoas para escrever. Preciso de ver seres humanos. O isolamento, a sensação de estar parada, de não me poder mover... tudo isso fazia-me sofrer. A forma que encontrei de contrariar essa tendência foi fugindo. E fugi recordando. As viagens, o meu passado. A certa altura, senti necessidade de recordar estas mulheres, porque foram muitas as mulheres importantes que, de alguma forma, marcaram a minha vida. A começar pela minha avó.

Foi ela quem a ensinou a ler.

Sim, passava muitas tardes a seu lado, a ler em voz alta. Sou o que sou por causa dela e pelas leituras que fiz com ela.

No livro dá conta dessas leituras, que resultaram no conhecimento de clássicos, mas também, de uma forma mais geral, da obra muitas autoras incontornáveis.

Não houve uma decisão de as ler só porque eram mulheres. Mas interessava-me o mundo que construíam nos seus livros. Não foi uma decisão militante, foi fruto da curiosidade. No meu livro falo de muitas mulheres da ciência e não conhecia boa parte delas. Pensava sempre ‘tem de haver mais.’ Houve então esse grande trabalho de pesquisa e de documentação.
Como é possível que elas não façam parte dos livros de história ou dos manuais escolares de física, de química, de matemática?  

Nos manuais da História da Literatura Portuguesa, por exemplo, a percentagem de autoras mencionadas antes do século XX varia entre os 3 e os 5%. As mulheres ficaram sempre fora das narrativas oficiais...

Precisamente. No século XX, e graças ao movimento feminista começa a haver uma consciência da presença das mulheres. Estamos aqui! Trata-se também de ampliar espaços de liberdade, de saber de onde vimos, caso contrário estamos condenadas a não saber nada. Eu sou quem sou a partir da minha avó, dessa mulher que me incutiu esse amor pelo conhecimento, pela cultura. A partir daí fui pensando nas mulheres que fui lendo, nas que fui encontrando nas minhas pesquisas, nas que marcaram.

Por um lado, defende a ideia de que as mulheres eram notas de rodapé e era urgente dar-lhes o protagonismo que nunca tiveram, por outro, sentiu a necessidade de incluir os homens...

Porque penso que não se pode entender a História da humanidade sem ser em relação. Os homens contaram a História esquecendo as mulheres, mas eu sentia a curiosidade de saber quem eram os homens que estavam nas vidas das mulheres que tanto me interessavam. Entendi que podia compreendê-las melhor se soubesse quem eram eles. Creio que não nos podemos explicar mutuamente uns sem os outros. Formamos parte do mesmo todo. Tudo o que fazemos é em relação com os demais. Havia a sensação de que me tinham contado a História pela metade.

É por isso que há muitos homens neste livro.

Claro! Os pais, os irmãos, os maridos, os amantes, os chefes, os professores. Todas temos um pai, por exemplo. E a sua presença ou a sua ausência marca-nos, seja lá como for.

Julia Navarro
Julia Navarro Foto: Juan Manuel Fernández

Diria que essa tentativa de diálogo, de relação, de inclusão está em contracorrente com expressões mais recentes do movimento feminista?

Sim, a chamada quarta vaga. A sociedade está em permanente evolução e eu defendo que todas as gerações têm o direito de opinar e de ter uma visão própria. Pessoalmente, interessa-me muito escutar e dialogar com as feministas da quarta vaga, mas isso não significa que tenha de concordar com tudo o que dizem. O debate é interessante. Quero entender porque dizem o que dizem. Para mim, o feminismo tem a ver com a democracia. Não se pode ser democrata sem ser-se feminista. Não é admissível que metade da população não tenha as mesmas oportunidades e direitos que a outra metade. Eu parto desta base. Mas as feministas da quarta vaga, no ocidente, já nasceram em contexto democrático e não viveram na Europa de há 30, 40 ou 50 anos. Temos pontos de partida diferentes. Aquilo de que não gosto nesta quarta vaga é de um certo adamismo, ou seja, tendem a pensar que a História começou com elas e isso parece-me muito injusto para com todas as que, desde o final do século XIX e durante o século XX, lutaram para que as sociedades contemplassem os direitos das mulheres. Essa ampliação das liberdades e dos direitos das mulheres não foi alcançada pela quarta vaga do feminismo, vem de antes. Parece-me injusto dizer que esta luta começa agora. Para que possamos viver como vivemos e dizer o que dizemos houve muitas mulheres a lutar, a sacrificarem-se lá atrás. É preciso fazer este reconhecimento para entender onde estamos e para onde vamos. Dito isto, há outra coisa que me preocupa: durante séculos fomos discriminadas por sermos mulheres. Ser mulher não é uma decisão, é um facto biológico. E este é outro dos aspetos em que discordo com as feministas da quarta vaga: eu não decido ser mulher.

Biologicamente, sou mulher. Durante séculos, a medicina tratou as mulheres pelos mesmos parâmetros que os homens. Agora, a ciência já reconhece que as doenças não se manifestam da mesma forma em mulheres e em homens, porque biologicamente, sim, somos diferentes. Quando a mulher tem um enfarte, por exemplo, os sintomas são diferentes e é por isso que o diagnóstico muitas vezes é errado. Resumindo, eu não escolhi ser mulher, eu sou mulher, biologicamente. Muita da discriminação que sofremos teve a ver com esta biologia. A maternidade, que é algo biológico, determinou durante muito tempo o nosso papel na sociedade. A pílula deu-nos a possibilidade de tomar as rédeas das nossas vidas, de controlar a nossa sexualidade e decidir a nossa maternidade. Para mim, é o maior descobrimento da história das mulheres. Até então não eramos donas do nosso corpo.

Rejeita a expressão seres gestantes.

Não a suporto! Não somos seres gestantes nem seres menstruantes. São eufemismos para não se pronunciar a palavra mulher. Eu existo. É curiosa a forma como esta quarta vaga do feminismo não suprime a palavra homem, mas suprime a palavra mulher. Os homens existem, mas as mulheres não? Eu compreendo que tenha sido preciso encontrar uma resposta para as questões do movimento trans e eu defendo que, numa sociedade democrática, ninguém tem de sofrer pela sua condição ou pela sua sexualidade, mas creio que a resposta a esta problemática não tem nada que ver com os problemas das mulheres. Defendo que, numa sociedade democrática, as minorias têm direito a que se dê resposta aos seus problemas. Mas façamo-lo sem anular a existência das mulheres.

Mas reconhece a legitimidade da luta das pessoas trans?

Sim, claro, mas não se pode dizer que as mulheres não existem ou que é tudo a mesma coisa, porque não é a mesma coisa. (...) Aquilo que reivindico é que as mulheres possam defender a sua forma de ser mulher. Pertenço a uma geração em que, quando uma mulher se incorporava no mundo do trabalho, tinha de adotar as regras dos homens. Muitas vezes, masculinizávamo-nos. Eramos levadas a isso. Eu defendo uma sociedade em que possamos ser o que somos. Não me parece que tenhamos de renunciar à nossa condição de mulheres ou que tenhamos de nos masculinizar para que possamos ser aceites ou vistas como iguais. Da mesma forma que não defendo que um homem tenha de se feminizar, se não for essa a sua vontade. Eu posso falar de menstruação com um homem, mas, por muita boa vontade que ele tenha, nunca o vai entender como uma mulher, porque não é essa a sua experiência. Eu não consigo levantar 100 kg, como muitos homens, eles não conseguem parir. A diferença biológica marca-nos, mas não limita o nosso talento ou a capacidade intelectual. Aquilo que reivindico é a possibilidade de viver numa sociedade de iguais em que ninguém tenha de renunciar a quem é para que seja levado/a a sério. Reivindico a minha condição de mulher, ter uma visão do mundo através dos meus olhos de mulher. Não quero ser um homem. Parecem-me legítimos os diferentes sentimentos e aspirações, mas isso não vai alterar a sua condição. Não podes acordar e dizer "hoje sinto-me mulher".

Defende que esse tipo de discurso, e a polarização que acarreta, pode trazer ruído para a luta feminista?

Não me parece que seja um discurso feminista. Creio que não devemos confundir a defesa dos direitos de minorias com o feminismo. As sociedades democráticas têm de dar resposta aos problemas das minorias. Numa sociedade democrática ninguém tem de sentir-se mal pela sua condição, seja ela qual for. Mas isso não pode implicar decidir que as mulheres não existem, porque existimos e lutámos muito pela nossa condição de mulheres.

Tendo sido uma jornalista durante quase toda a vida, como é que avalia o papel dos media no desenvolvimento destes processos?

Preocupa-me muito o retrocesso nas liberdades. O movimento woke, que provavelmente nasceu com a melhor das intenções, tornou-se absolutamente reacionário. Tentar impor um pensamento único sobre as coisas, perseguir as pessoas nas redes sociais, "queimar alguém" com uma opinião dissonante, numa fogueira, como se fazia aquando da Inquisição... é tudo muito perigoso. É a sociedade do Big Brother de que [George] Orwell falava, do Ministério da Verdade... em que todo o que tem uma opinião contrária se transforma num inimigo a abater. Isso é o que mais preocupa. O jornalismo deveria ser um garante da democracia, mas as pessoas têm cada vez mais medo. Medo de serem queimadas nessa grande praça pública que é a internet. Veja-se o caso da J.K. Rowling e a perseguição que lhe foi feita (porque disse que uma mulher era uma mulher e um trans era um trans). Os autos de fé que se estão a fazer a pessoas, só porque têm opiniões próprias. O debate e a multiplicidade de ideias são bons. O pensamento uniforme é que não. Já não nos atrevemos a dizer o que pensamos em voz alta, ou então escondemo-nos para o fazer. E isso é um retrocesso no caminho da liberdade.

Julia Navarro
Julia Navarro Foto: Juan Manuel Fernández

Porque é que abandonou o jornalismo?

O jornalismo foi uma grande paixão, mas houve um momento em que me dei conta de que não podia ser jornalista e escrever romances. Não se pode ser jornalista das oito às seis da tarde. Era algo que me ocupava as 24 horas do dia. Era uma paixão impossível de compatibilizar com a escrita.

Foi difícil conciliar a sua vida pessoal com a profissional?

Sim, muito. E só foi possível porque tinha uma mãe na retaguarda. Não teria sido nada do que fui sem ela.

No livro refere uma entrevista de Doris Lessing em que ela confessa que só compreendeu a mãe demasiado tarde...

Verdade. Creio que muitas mulheres chegam a essa conclusão. Lamentam algo que não chegaram a dizer. Eu tenho essa noção de que não poderia ter sido o que fui sem a minha mãe. Mais do que dar-me apoio, ela encorajava-me. Era ela quem me dizia para ir, para fazer. Creio que há cada vez mais mulheres a dizerem isso a outras mulheres. A serem um estímulo. Creio que as mulheres, de forma coletiva, perceberam que tinham renunciado a muitas coisas. Muitas coisas não nos foram permitidas porque eramos mulheres. Agora prevalece esse sentimento de ter de continuar. Por isso me irrita tanto esta tentativa de fazer desaparecer o conceito de mulher. Por isso reivindico as mulheres! A diferença não tem de nos tornar desiguais.

Diz que foi o jornalismo que lhe deu ferramentas para escrever romances.

Sim, porque vivemos muitas vidas. Não só vamos a muitos lugares como os vemos com outros olhos. Ir à Terra Santa em reportagem é muito diferente de ir em peregrinação.

Falando na Terra Santa... O romance Dispara, Eu Já Estou Morto foca o conflito entre Israel e Palestina. Como é que regressa a ele, quase dez anos depois de o ter escrito?

Foi o único romance histórico que escrevi. Foi difícil de escrever. Sou uma defensora dos dois Estados e creio que estão condenados a entenderem-se. Vai demorar gerações para que ambos os lados superem todo o sofrimento, mas não vejo outra solução. Eu viajei muito nesta zona enquanto jornalista, conheci muitas pessoas, escutei muito ambas as partes. Meti-me na pele dos outros. Creio que é só assim que podemos escrever. Não voltei a ler o livro desde então, mas é uma aposta na esperança, na paz.

Como é que vai gerindo as suas leituras, nestes dias?

Sou muito anárquica. Sou uma leitora compulsiva. Compro livros todas as semanas. Tenho mais livros do que alguma vez será possível ler. Se um livro me chama, compro. Tenho um enorme interesse por tudo o que se passa à minha volta.

Incluindo jovens autores/as?

Claro! Renunciar aos jovens seria como morrer antes do tempo. Interessa-me saber em que mundo vivo. Quase não tenho futuro, mas tenho de tentar perceber que mundo é esse que estão a construir para os jovens. Tenho um filho de 30 anos! Claro que há coisas que me interessam menos, mas tenho sempre curiosidade. No dia em que deixar de ter curiosidade, estarei morta por dentro.

Saiba mais
Mundo, Julia Navarro, Mulher, Faminismo, Escritora, Romance, Jornalista
As Mais Lidas