“Os sonhos com traições do Márcio foram-se tornando cada vez mais frequentes.”
“Dei por mim a imaginar o que estaria o Márcio a fazer enquanto trabalhávamos, o que estaria ele a pensar enquanto jantávamos, que fotos, que vídeos, que perfis visitaria no mundo secreto do seu telefone.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Da primeira vez, estávamos de férias num sítio medieval, com umas muralhas e umas casas de pedra cinzenta, uma coisa muito gótica, que tanto podia ser Óbidos como Dubrovnik, ou até uma mistura das duas: eu fui à varanda do quarto, olhei para o lado e estava lá o Márcio. Estava com uma rapariga muito bonita e seminua, loura, de olhos claros, com umas vestes muito leves e reveladoras. Estavam a cear, comiam queijos e bagos de uva, e bebiam vinho, davam de beber um ao outro, do copo de um e do copo do outro. E tocavam as mãos, agarravam-se, esfregavam-se. Até que eu não aguentei mais e acordei aos berros, "parem, parem com isso, para traidor!", e o Márcio agarrou-me pelos ombros e abanou-me até eu despertar mesmo daquele sonho horrível.
Os sonhos são muito poderosos. São capazes de nos estragar o dia, durante dias a fio, semanas, às vezes meses. Quando persistem, podem dar-nos cabo da vida toda. De outra vez, eu ia buscar o Márcio ao trabalho e estava à espera dele no parque de estacionamento. E, enquanto esperava, via um carro estacionado lá ao fundo, mas que abanava e ia ficando embaciado. E eu continuava à espera. Passados uns momentos, as luzes do carro acendiam-se e saía lá de dentro o Márcio, ainda a compor-se, a abotoar a camisa, a ajeitá-la dentro das calças para não ficar desfraldado. E eu saía do meu carro, começava a correr direito a ele e desatava a bater-lhe, a dar-lhe murros impotentes e destroçados enquanto o insultava, chamava-lhe porco, chamava-lhe cão, chamava-lhe todos os nomes de animais que me ocorriam e que pudessem ofendê-lo, melindrá-lo, magoá-lo, apoucá-lo. E o Márcio novamente me acordava, abanando-me pelos ombros, "Cristina, Cristina, para querida, estás-me a magoar", dizia ele enquanto me tentava despertar.
Os sonhos com traições do Márcio foram-se tornando cada vez mais frequentes. Alguns, repetiam-se: a aventura no castelo medieval sonhei-a dezenas de vezes. Há sempre alguma nuance. Às vezes, a rapariga é diferente, outras vezes, não é no terraço que eles estão, mas antes num quarto a que por obra e graça de Morfeu eu conseguia aceder, sabe-se lá como. Este outro do parque de estacionamento também o sonhei mais do que uma vez - porém, esse não tinha grandes nuances, ia sempre na mesma direção, sempre da mesma maneira. Só nunca consegui ver a cara da galdéria com quem o Márcio se deitava no banco de trás do carro - e também nunca consegui decifrar a marca e o modelo do carro, mas isso é normal, porque estava sempre escuro no estacionamento, tudo isto ocorria fora de horas. Mas gostava de a ter apanhado, ai se gostava. Contava-lhas.
Houve um outro, mais recente, que até estremeço só de me lembrar. Este era mais simples: eu entrava em casa e dava de caras com o Márcio deitado no sofá e a minha irmã sentada em cima dele. Só que não era bem a nossa casa, nem era exatamente o nosso sofá e a minha irmã eu só a conseguia identificar por intuição - é uma particularidade dos sonhos: às vezes, omitem deliberadamente os rostos dos seus protagonistas. Era o caso deste. Mas eu entrava e gritava, em choque, "Diana, o que estás a fazer?", e depois começava a agredi-la, a atirar-lhe tudo o que apanhava à mão. E, de novo, lá estava o Márcio, "Cristina, Cristina, tem calma, meu amor, acorda, por favor", muito aflito.

A quantidade e a frequência dos sonhos começaram a deixar-me assustada e a causar-me transtornos. Quando os sonhos persistem, lá está, as ideias que eles trazem são capazes de transpor a fronteira do mundo onírico para o mundo real, enfiam-se nos nossos pensamentos, perturbam-nos, agitam-nos. Corroem-nos. Dei por mim a imaginar, durante o dia e bem acordada, o que estaria o Márcio a fazer enquanto trabalhávamos, o que estaria ele a pensar enquanto jantávamos, que fotos, que vídeos, que perfis visitaria no mundo secreto do seu telefone, com quem conversaria quando eu não estava por perto, com quem trocaria mensagens sempre que o caminho estava livre. Tudo isto começou a tornar-me obcecada.
Quando senti que precisava de ajuda, visitei uma taróloga. Fui lá a conselho de uma amiga da minha irmã, que é dada a coisas dos espíritos, do destino, dos astros e até das vontades que os búzios expressam quando são atirados sobre um tapete especial pela mão hábil de um técnico especializado na leitura dos destroços que daí resultam. Virou-me as cartas. Não me lembro ao certo quais eram. Lembro-me de que havia uma com um arlequim pendurado de cabeça para baixo e que ela abriu muitos os olhos quando a carta saiu. "Ai senhores", disse ela, "a Cristina tem de ter muito cuidado". E eu perguntei com o quê, ela guardou silêncio e tirou nova carta. Eu não olhei para o pano aveludado da mesa, não olhei para os desenhos nem para os símbolos que o baralho e as mãos gordas de Madame Zuleyde iam desvendando aos poucos: concentrava-me apenas nos seus olhos, verdes como esmeraldas, debaixo de uma sobrancelhas pintadas com lápis castanho. "Ai, Cristina… eu não sei se a menina quer mesmo saber." Eu queria mesmo saber. "É o meu amor?", perguntei, com certa inocência. Ela franziu os lábios e nada mais disse.
Nessa noite, quase não consegui dormir. Só pensava no que seria o Márcio quando não existia perto de mim, junto a mim, à distância de um toque, de um dedo, de um olhar que fosse. Que beijos davam aqueles lábios quando eu não os via, quando não beijavam os meus? No dia seguinte, confrontei-o. Disse-lhe "Márcio, tu tens alguém?" Olhou-me com surpresa, perguntou-me o que eu queria dizer com aquilo. Expliquei-lhe que não havia muito que interpretar: se tinha alguém na sua vida, para além de mim, fisicamente, romanticamente falando. "Vou fingir que esta conversa não aconteceu", disse, numa voz suave e num tom grave, antes de sair porta fora, sem me dizer onde ia. E eu lá fiquei, a atormentar-me, a torturar-me enquanto ele não chegava.
Os sonhos continuaram e continuaram e continuaram. Pensei em ver um psicólogo, um psiquiatra, um psicanalista, alguém que me olhasse para a mente e vislumbrasse, lá no meio do espírito que me anima e das sinapses de que ele se alimenta, o mal de que eu padeço, esse mal que tanto me tortura. Noite após noite, a mesma coisa: agitação, suores, gritos, murros, as mãos do Márcio agarrando-me nos ombros, a voz suave e firme, "Cristina, acorda, Cristina". Semana após semana, mês após mês. Até que há duas semanas, em mais um ritual desses, senti as suas mãos nos ombros e ouvi a sua voz suave, "Diana, acorda meu amor, é um sonho". E eu acordei, "chamaste-me Diana!", e ele jurou que não, que eu ainda estava estremunhada, baralhada, dormente, semiconsciente. "Chamaste-me Diana, que eu ouvi muito bem, Márcio." Nessa mesma hora, fiiz as malas e saí de casa. Vim para casa da minha irmã. Hei de os apanhar.

Mundo, Diversão, Histórias de Amor Moderno, Casamento, Traição
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