Histórias de Amor Moderno: “Puxou-me para ele, beijou-me com uma loucura e um fervor de animal esfomeado.”
“Não sabia se havia de insistir, de lhe ligar, de lhe mandar mensagens, ou se era melhor ficar quieta e esperar para ver.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Não choro um cêntimo dos muitos, muitos euros que gastei com o meu ex-namorado. Ao contrário do que ele me dizia, o meu Deus não é o dinheiro. Não, Rafael, não é. O dinheiro é só uma ferramenta necessária, um instrumento que nos permite estar de uma determinada maneira na vida - por exemplo, tendo uma casa para viver a que podemos chamar nossas (e que tu nunca tiveste), ou tendo carro próprio, como tu nunca tiveste, em vez de andarmos à boleia ou em carro emprestado - e executar certas tarefas, cumprir determinados objetivos que, de outro modo, ficarão por cumprir ou, pior, estarão à mercê da boa-vontade de outras pessoas. Pessoas como eu quando, por exemplo - e isto é só um exemplo: de novo, não me arrependo de um cêntimo -, te comprei a passagem, de ida e volta, para ires a Moçambique ver a tua mãe, que não vias há anos e anos.
O Rafael era cruel. Não sei se será um traço comum a todos os homens charmosos ou somos nós, as mulheres como eu, que apreciam os sintomas de bad boy num rapaz e que transformam certas características, que mais parecem transtornos de personalidade, em nuances de charme, de caráter forte e fora do comum. Na verdade, quando nos afastamos, como agora me afasto, e olhamos de fora - e eu agora estou fora, Rafael, estou longe, estou tão longe de ti que já estou no futuro, mas num futuro que não é o teu -, percebemos que tudo isso a que chamamos charme resulta de um violento egocentrismo e de uma narcisismo tão egoísta que faz da maldade alimento. Indivíduos como o Rafael trituram corações por uma só razão: para provarem a si mesmos que são capazes de o fazer - e não o fazer será fraqueza. Mal sabes tu, meu amor do passado, que essa maldição que me destruiu a mim e que destrói todas quantas se cruzam contigo, também te destrói a ti, porque nunca terás paz nem sossego, nunca saberás o que é o amor longo e terno, muito menos o conforto do que é para sempre.
Quem nos conhecia, quem nos rodeava, via-nos como um casal perfeito, um perfect match. "A que diabo vendeste a alma para conseguires estar assim?", perguntaram-me um dia, aludindo à nossa relação. Mal sabiam eles que essa perfeição se construía com sacrifício - com sacrifício meu, entenda-se, pois tudo na nossa relação dependeu sempre, e exclusivamente, do gosto, da vontade e até do humor dele. Não quero ser injusta, que não é o meu feitio: foi junto dele que eu fui mais feliz na minha vida, o Rafael despertou a versão mais feliz, otimista, festiva e realizada de mim. Mas tudo foi sempre tão difícil que, hoje, já não sei bem se essa felicidade resultava da junção e da interação entre nós dois, ou se era antes o meu respiro de alívio existencial que, no culminar de um tão grande esforço e de tantos e tamanhos sacrifícios e cedências, desencadeava em mim um processo de relaxamento que euforicamente eu confundia com a condição de estar feliz.
Ele era tão instável que essa felicidade não podia ser mais do que passageira. Bem sei, não felicidade que dure para sempre, mas no nosso caso, o plano em que existíamos e funcionávamos não era sequer um plano - era uma montanha russa: num dia, queria casar comigo, no dia seguinte, saía porta fora, acusando-me de qualquer coisa, aos berros. Batia com a porta, chamava-me nomes. Normalmente, acusava-me de ser uma oferecida, sem vergonha. Eu, que sempre lhe fui fiel, que nunca enquanto estivemos juntos desejei outro homem. Eu, que mesmo depois de nos termos separado definitivamente, não voltei a ter outro homem, porque sei lá eu se não sou ainda apaixonada por ele - não é que eu pretenda ou voltar, ou sequer considere essa hipótese; simplesmente, ter já alguém ainda gostando do Rafael seria muito injusto para esta nova pessoa: as comparações, as saudades do outro, as memórias dele, sempre presentes, o desejo carnal que às tantas será indistinto (será que quero o novo? Será que só o desejo a ele e este fogo de agora é travestido num novo corpo?).

E, no entanto, ele acusava-me de ser uma desavergonhada, só porque eu tenho de viajar em trabalho - nunca saberás o que é isso, Rafael, porque o teu trabalho nunca exigirá que viajes e, infelizmente para ti, este é o melhor emprego que conseguirás arranjar (não tens de agradecer, não te estou a cobrar). Dizia-me que essas viagens de certeza que só serviam para andar com o meu chefe por hotéis de todo o mundo, a divertir-me. Ou então implicava com o Filipe, um amigo meu dos tempos de faculdade e que é daquelas pessoas que, sem sabermos bem porquê, se tornam próximas e confidentes, que são sempre leais e conseguem estar sempre presentes, mesmo à distância. O Filipe ligava-me sempre que precisava ou sempre que queria saber de mim, e eu fazia o mesmo. Até que as birras ciumentas do Rafael fizeram com que nos afastássemos um pouco e perdêssemos o hábito de falarmos regularmente - como é que se recupera esse hábito, já agora? Tenho saudades tuas, Filipe.
De cada vez que acabávamos tudo - entenda-se: que o Rafael acabava tudo -, eu não sabia o que fazer. Não sabia se havia de insistir, de lhe ligar, de lhe mandar mensagens, ou se era melhor ficar quieta e esperar para ver. Das primeiras vezes, eu ia atrás dele, telefonando, tentando que me respondesse de uma maneira ou de outra. Nunca me respondia. O silêncio dele, aquela ausência absoluta e inacessível, torturavam-me. Sentia o meu coração estilhaçar-se como nas metáforas mais banais e desinteressantes da literatura de cordel, mas a verdade é que ele se enfraquecia - eu sentia-o ficar frágil, como se perdesse massa muscular e ficasse menos denso e no lugar daquele magnífico objeto pulsante e maciço surgisse uma esponja esburacada e mole. E era com esse coração esponjoso e meio disforme que eu sobrevivia, quase sem pulsação, até que o Rafael me ligava ou mandava mensagem, ou batia à porta, com os seus olhos de cachorro que pede desculpa. Então, o meu velho coração voltava e palpitava de alegria, e tudo o resto na vida perdia importância.
Nos tempos mais recentes, quando reatávamos - faço uma pausa para sublinhar um detalhe: o Rafael acabava tudo muitas, muitas vezes, não era só de vez em quando, era recorrente - não era um reatar consistente, muito menos definitivo. Nunca ficava tudo bem. Voltávamos a estar juntos, mas precariamente. O mais normal era ele chegar a minha casa e, em vez de pedir desculpas e que voltássemos, acusar-me de ter sido a causadora de tudo aquilo, daquele final abrupto. Depois, pegava-me e beijava-me. Em menos de minutos, estávamos nus e na cama. Acabávamos por passar a noite juntos. Mas eu nunca sabia o que iria acontecer na manhã seguinte. Tudo era instável, imprevisível e fonte de ansiedade para mim. Às vezes, ficava dias sem me atender, e eu sem saber que mal tinha feito. Nunca o soube, aliás.
Na última vez em que acabou tudo, esperei pelo seu regresso. Eventualmente, aconteceu: entrou-me em casa, insultou-me, depois agarrou-me pela cintura - só ele sabe agarrar-me assim pela cintura -, puxou-me para ele, beijou-me com uma loucura e um fervor de animal esfomeado. Acho que me desejou como não me desejara antes. À noite, deitados na cama, de mão dadas, perguntei-lhe "estamos de volta?" Respondeu-me que não. Não discuti. Na manhã seguinte, saiu e ficou dias sem dizer nada, sem me devolver chamadas, sem responder a mensagens. Nada. Tornou-se fantasma, tornou-se memória. E depois, como fantasma que se preze, regressou do Além, por mensagem: se nos podíamos encontrar "depois de amanhã". Claro que sim. E não falámos entretanto, mas também não desmarcámos. Quando o dia "depois de amanhã" chegou, ele não apareceu no sítio combinado e também não atendia o telefone. O carro dele estava à porta. Insisti por mensagem. Respondeu-me que estava no ginásio, que tinha ido de boleia. Fiquei à espera que regressasse e disse-lhe que ficava ali até que ele chegasse. Até que me cansei de esperar - o que é que eu esperava, ao certo? Obviamente estava em casa com outra - e me fui embora. Até sempre, Rafael.

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