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Evanna Lynch: “As pessoas tinham medo de me convidar para sair, de me levar a comer fora.”

Uma conversa franca com uma das mais conhecidas atrizes da saga Harry Potter, de passagem por Lisboa para dar a conhecer uma nova faceta, a de escritora, em nome de uma causa maior: o distúrbio alimentar que a privou de uma adolescência normal, mas que a fez crescer e, agora, poder dar o seu testemunho.

Foto: Bruno Colaço
19 de julho de 2023 Rita Silva Avelar

Enquanto esperamos pela chegada de Evanna Lynch à sede da Leya, em Alfragide, pensamos em como os arredores, de aspeto industrial, repletos de armazéns, contrastam veementemente com o tema frágil e delicado da conversa que se adivinha com a atriz e agora escritora. Lynch, conhecida pela sua personagem nos filmes da saga de Harry Potter, na pele da sonhadora e aérea Luna Lovegood, esteve em Lisboa, com passagem pela Feira do Livro, para falar sobre o seu primeiro livro, uma autobiografia que aborda o problema pelo qual passou na pré-adolescência, uma anorexia que a submeteu a vários internamentos. Em O Oposto da Caça às Borboletas (Casa das Letras), relata, através de episódios muito pessoais, as tragédias e as glórias de ter sido forçada a crescer perante um distúrbio alimentar que a obrigou a tornar-se adulta, que a privou do início da sua adolescência e que ainda lhe roubou, de certa maneira, a infância. 

Evanna Patricia Lynch é uma atriz e modelo irlandesa, conhecida por participar na saga Harry Potter.
Evanna Patricia Lynch é uma atriz e modelo irlandesa, conhecida por participar na saga Harry Potter. Foto: Bruno Colaço

Nascida em Termonfeckin, Irlanda, em 1991, e uma de quatro filhos de professores moderadamente conservadores e cristãos, Evanna Lynch foi educada num ambiente puritano, numa redoma cultural que lhe deu simultaneamente a timidez e a perspicácia que agora lhe denotamos nesta primeira aventura literária. Um livro que nos abre a mente, desafiando-nos a criar mecanismos de ajuda diferentes dos tradicionais, pouco empáticos, às pessoas que, tal como Lynch, sofrem de distúrbios alimentares como a anorexia. A viver em Londres, Lynch divide-se entre a representação, a escrita e causas ativistas como é o da luta pela igualdade de género ou pelo fim do sofrimento dos animais. Aliás, é por isso que é vegana, e que solta este comentário, assim que entra na editora: "uau, tantos rostos de homens! Faltam aqui mais mulheres", referindo-se aos vencedores do prémio Leya, ao longo dos anos, emoldurados. Concordamos e temos a fé que sejam escritoras como ela que venham a mudar o mundo, tornando-o mais humanista e igualitário. Para já, começamos por conversar sobre temas difíceis.

Este livro é autobiográfico, é o resultado de uma experiência avassaladora. Crescemos de modo inocente e há um dado momento em que nos tornamos mais conscientes, sobretudo com o corpo. Recorda-se de sentir isso? Foi isso que mudou tudo?

É a [história de] abertura do livro, e sei que é um começo duro. É a minha memória de ver, na televisão, quando era pequena, uma mulher a ser violada. Isso marcou-me, pensei, ‘a sério que há pessoas que se querem apropriar assim do teu corpo?’ Esta ideia de o corpo ser como uma mercadoria, como um prémio, de ser uma ferramenta que usamos no mundo para comunicar com as pessoas, de ser uma 'moeda'… Lembro-me de pensar o que é que o meu corpo diria às outras pessoas, como é que as fazia sentir, que poder teria sobre elas. Em criança não pensava nisso, o meu corpo era só "um veículo" onde vivia. Quando comecei a ouvir estas histórias na televisão, aos 9/10 anos, comecei a sentir que era responsável sobre aquilo, que precisava de entender, e a sentir-me desconfortável. Foi nesse momento que me comecei a desassociar do meu corpo. 

O Oposto da Caça às Borboletas, de Evanna Lynch (Casa das Letras).
O Oposto da Caça às Borboletas, de Evanna Lynch (Casa das Letras). Foto: Leya

De que género era o sítio onde cresceu? Era uma comunidade judiciosa? De repressão corporal?

Era muito dominado pela religião católica, e agora está a mudar, nas novas gerações. Com a geração dos meus pais tinha uma influência muito opressiva. Em termos de sexualidade, de nudez, de relação com o próprio corpo, em minha casa nada disso era discutido. Era como se tivéssemos vergonha de ser corpos. Hoje penso que isso é tudo errado, que é de uma beleza enorme podermos ter uma ferramenta de interação com o mundo. Ao crescer, era muito do género 'ignora e esconde'. Nunca vi os meus pais de fato de banho, não havia nudez, e se existisse era de certa maneira um motivo de vergonha, era sombrio. Era uma coisa que carregava muita vergonha. Durante muito tempo, vivi do pescoço para cima, vivíamos num ambiente muito intelectual, os meus pais eram os dois professores, tínhamos sempre livros, valorizávamos ideias. 

Como se o corpo fosse visto como uma ferramenta de todos os dias, um tabu. Isso contribuiu, lentamente, para o seu problema de saúde, relacionado com a comida?

Foi uma multiplicidade de coisas. Senti uma desconexão do meu corpo. Certos impulsos naturais como a fome, como a necessidade do toque, e mais tarde a sexualidade - tudo isso fui deixando de lado. Eu sentia que devia arranjar boas formas de controlar o corpo. A raiz do meu distúrbio alimentar partiu desta ideia: o mundo parece-nos avassalador nessa idade, dos 12/13, e questionamo-nos qual é o nosso lugar e o que estamos a fazer. Isso pareceu-me tudo demasiado. O corpo é mesmo a nossa primeira casa, uma gaiola, uma proteção contra o mundo, e eu encontrei uma espécie de calma e paz em conseguir controlar ‘esta coisa que eu habito.’ Eu pensava: ‘se eu sentir uma certa garantia de que o consigo controlar, ao corpo, eu vou sentir que posso fazer qualquer coisa.’ Tinha a ver com uma certa limitação sensorial, não sei se é bem este o termo. Eu não conseguia lidar com os sentimentos que tinha em relação ao mundo, sentia-me muito insegura, pouco certa do meu lugar. Então sim, pareceu-me bem tentar criar estruturas dentro de casa, para proteger o meu corpo. 

O Oposto da Caça às Borboletas (Casa das Letras) é o seu primeiro livro.
O Oposto da Caça às Borboletas (Casa das Letras) é o seu primeiro livro. Foto: Bruno Colaço

Como é a vida, diária, de alguém com anorexia? Há formas de lidar com o mundo, esconder passa a ser imperativo?

Torna-te muito reservada. Eu não sabia que tinha um problema, no início achava que tinha um estilo de vida mais saudável – e em relação essa decisão eu era muito aberta, muito entusiasta a falar sobre isso. Depois, quando tudo levou uma volta sombria, comecei a ficar ansiosa perto de comida, pensava sobre isso de forma obsessiva, se alguém me oferecesse uma fatia de bolo eu queria chorar. Eu notei que isso era uma coisa que me tornava estranha, mas não queria abdicar dela. É uma coisa que faz de nós pessoas astutas, sorrateiras, queres atacar toda a gente. Tornas-te numa pessoa de quem não gostas e que não respeitas. Recentemente, eu conheci pessoas alcoólicas, e apercebi-me que há muitos pontos em comum [com a anorexia]. Há muita vergonha e capacidade para esconder, é preciso ser-se esperto. Isso fez-me pensar no meu problema de outras formas. Quando se está nesse estado de pensamento, é fácil mentir.

De que modo este crescente problema de saúde afetou as suas relações?

Demorei dois anos a curar-me, mais ou menos. Eu deixei de ver os meus amigos. Para eles, eu tornei-me estranhíssima. Quando se tem este problema, só se pensa nele. Elas falavam de namorados, de maquilhagem, e eu achava tudo isso aborrecido. Eu só pensava em chegar a casa para fazer exercício, numa espiral de pensamentos obsessivos. Eu sentia que tudo aquilo que não se relacionasse com essa necessidade era um desperdício de tempo. Eu não queria socializar, só queria estar em casa a trabalhar nesta coisa. Eles ficavam desconfortáveis, eu não queria estar lá, foi um afastamento gradual, deixaram de me telefonar. Depois da minha primeira hospitalização as pessoas tinham medo de me convidar para sair, de me levar para situações em que eu teria de comer em público. Vivia em permanente discussão, em casa. Discutia com a minha mãe, porque ela conseguia ver que eu estava a mentir, mostrava que não havia confiança, só desilusão. E também discutia com os meus irmãos, que me diziam que eu era uma cabra egoísta, por levar toda a atenção dos meus pais, claro, eles também eram pequenos. A única relação segura que eu sentia ter, nessa altura, era com a minha terapeuta. 

Lynch conta com 4 milhões de seguidores no Instagram.
Lynch conta com 4 milhões de seguidores no Instagram. Foto: Bruno Colaço

É verdade que quanto mais as pessoas forçam e incentivam a comer quem passa por isto, pior se torna o problema?

É o pior sentimento. Há situações em que as pessoas, durante o tratamento, são de facto forçadas a comer para que se mantenham vivas. Eu não tive escolha na minha forma de recuperação, e queria ter tido. Há demasiada patologização, demasiada demonização do problema, demasiado ‘não vou ouvir uma única palavra que tenhas a dizer.’ Lembro-me de sentir que ninguém me via ou ouvia. Há uma ideia interessante, e no livro falo sobre isso, que defende que o paciente deve ser celebrado pela sua doença, na medida em que se lhe devia dizer – ‘muito bem, parabéns por teres encontrado alguma coisa que te ajudou a cooperar com a vida, embora seja disfuncional, não seja bom para ti, mas encontraste o teu mecanismo.’ Quando passamos por uma situação tumultuosa na nossa cabeça, a coisa que encontramos e que nos faz sentir bem – seja anorexia, seja álcool, seja droga – parece-nos ser nossa amiga. Se demonizarmos isso, o único efeito que tem é que te distancias ainda mais das pessoas [que te querem ajudar]. Dizerem-nos que estamos doente, que é tudo terrível, forçarem-nos a comer, faz com quem queiramos estar ainda mais refugiados nessa situação, tornarmo-nos mais defensivos, mentirosos. Não devemos tratar este tipo de problema como uma força do mal. Não é funcional, precisa de ser curado, mas precisamos de encontrar uma forma melhor de o fazer [referindo-se à cura].

Tornou-se vegan. Foi uma decisão advinda do distúrbio? Ou era coincidente?

Sou vegan há 10 anos. Eu não gostava da ideia de pensar em carne, não conseguia pensar na ideia de sangue, de pele. É difícil tirar essas imagens da cabeça. Portanto, o facto de ser vegetariana foi uma decisão natural e fácil. Foi difícil, porque tendo recuperado do meu distúrbio alimentar, parte disso passava por trazer alimentos doces, bolo, chocolate. Sobre voltar a gostar de tudo isso, de sentir poder em tirar prazer de comer coisas deliciosas de novo. E ao tornar-me vegan, isso despertou alguns triggers, limitou-me, claro. Foi um processo lento, não podia fazer tudo de uma vez. Em relação às causas, seja por razões relacionadas com os animais ou não, defendo que ser vegano é mais complicado que isso. Se há alguma coisa mais pessoal, essa coisa é a relação que temos com a comida. As coisas que levamos à boca e que nos alimentam, que nos mantêm vivos. Tem de ser uma coisa que fazes de forma consciente, não sem culpa, no sentido em que deve ser em sintonia com o mundo que queres criar. Que suporte os teus valores. Para mim, foi passar por aprender a cozinhar melhor, descobrir o chocolate vegan, tudo isso.

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Nessa altura, coincidentemente fez o famoso casting para os filmes de Harry Potter. Era fã dos livros de J.K. Rowling? E como foi lidar com isso?

Houve uma espécie de gap. Quando os problemas estavam no seu pior, eu tinha 11/12. Quando fiquei com o papel tinha 14 anos. Demorei um ano e meio a curar-me, entre o hospital e esse casting. As pessoas diziam-me: ‘Porque estás a ir para um meio em que a imagem é tão importante, depois do teu problema? Como consegues sequer lidar com isso?’ Eu acho, de certa maneira, que a cura preparou-me para isso, mentalmente estava mais forte que nunca, é um tema que exploro muito no livro. O meu maior bully estava dentro da minha cabeça. Sempre que lia algum comentário na internet mais cruel ou desagradável, eu sentia que já tinha passado por isso. Tornar-me famosa e ver negatividade não foi uma grande surpresa, eu estava habituada. Tive muito tempo para processar esse tipo de coisas.

Embora tenha crescido nesse meio mais conservador, sempre se sentiu instigada a expressar-se, criativamente? A representação vem de que altura?

Desde sempre que quero fazer parte de histórias, não se resumia a representar. Eu queria estar onde as coisas estavam a acontecer. Lembro-me de irmos à missa todos os domingos, era aborrecidíssimo, mas tínhamos, a cada segundo sábado do mês, uma espécie de missa para crianças, e fazíamos performances baseadas nas histórias da Bíblia. Foi nessa altura que decidi que queria estar nesta área. Pensava: ‘isto parece ser tão divertido!’. Não me apetecia ficar só sentada no recreio. Era uma criança ansiosa, desconfortável com algumas pessoas, era estranha em certa medida, mas a representar sentia-me livre, ia para casa estudar, tomar decisões sobre a personagem, isso era libertador para a criança estranha que eu era. Ainda me sinto assim. Em situações em que não há estrutura - por exemplo, se não tivéssemos agora o livro para conversar, sentir-me-ia ansiosa. Eu acharia isso difícil. Ter um foco, estudar as personagens, liberta-me. 

Evanna Lynch em 2011 na saga Harry Potter.
Evanna Lynch em 2011 na saga Harry Potter. Foto: IMDB

Filha de dois professores, provavelmente cresceu com boas referências literárias e culturais, com o apelo pelo conhecimento. Isso contribuiu para essa capacidade de trabalhar uma personagem?

Eu era uma pessoa que se dedicava a ler livros, no quarto, e ao mesmo tempo tinha sonhos, claro. Havia essa ponte entre ‘isto é o que eu quero, mas tenho medo.’ Não sei se conseguia ter feito tudo isto sozinha. Quando fiquei com o papel [de Luna Lovegood], foi bom ter começado logo a ser integrada em equipas. Há certas coisas que as pessoas não pensam sobre esses processos. Por exemplo, todos os dias éramos levados para o set, com um motorista, de carro. Em crianças, geralmente nunca somos postos nessa situação. Eu tive de perceber como é que conversava com ele, com o motorista que me levava. Primeiro era uma situação que se configurava stressante, ficava do género: ‘o que é que eu vou dizer a esta pessoa, durante uma hora?’ A maior parte do tempo dormia (risos). Aprendi a conectar-me às pessoas, ultrapassar a minha ansiedade social. Que se eu abrandasse, conseguiria lidar com o mundo, estabelecer relações com pessoas. Trabalhar em Cinema é sobre encontrar pessoas que acordam coisas em ti, é disso que se trata, e para mim foi muito importante. Se não me tivesse tornado atriz possivelmente nunca teria deixado o meu quarto (risos).

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