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Histórias de Amor Moderno: “Tinha ciúmes. Achava que eu andava com alguém, ‘com algum desses bêbados que andam a estudar contigo’”

“Enquanto ele me torturava com o seu silêncio, eu soluçava em desespero, sem saber o que fazer, sem saber o que era feito dele - e sem saber que mal tinha eu feito.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Café Society @ IMDB
11 de novembro de 2023 Maria Olívia Sebastião

Havia uma sensação de sufoco de que me recordo particularmente bem: o telefone tocava, tocava, tocava, e ele não atendia. Então eu ligava de novo, e de novo o telefone tocava e tocava, e mais uma vez ele não atendia. Quando digo "ele" refiro-me ao meu marido, mas prefiro nem lhe dar nome, até porque podia chamar-se Manuel, ou André, ou António, ou Frederico. São muitos os homens que agem assim e por certo haverá muitas mulheres capazes de o confirmar; são muitos os nomes de muitos maridos capazes de destruir as suas mulheres simplesmente não fazendo nada, ficando em silêncio, e deixando que esse silêncio nos consuma. 

Quando digo "o meu marido", faço-o pelo hábito. Foram mais de quatro anos de casamento na pontinha de uma relação de mais de dez anos. Mas ele já não é meu marido. Não podia mais continuar a sê-lo depois do que me fez passar e sentir, e ainda por cima num momento que era para mim tão importante.

Fomos sempre bons companheiros, desde que começámos a namorar. Tínhamos um invejável espírito de entreajuda - e, quando digo invejável, não estou a exagerar: uma mulher sabe sentir os olhares, as expressões, as perguntas, as ironias e até os pensamentos de inveja das outras mulheres que a rodeiam. E eu sentia-os. Não sei até que ponto essas invejas que, sem eu querer - sem nós querermos -, foram sendo plantadas ao nosso redor, não vieram a ter uma importância imprevista no desfecho de tudo isto. Agora, que os papéis do divórcio estão entregues e assinados, tudo isso importa pouco, mas não deixa de me intrigar: o que terá acontecido nas minhas costas, na minha ausência? Que sussurros maliciosos não terão chegado aos ouvidos do meu marido - do meu ex-marido - até que a nossa derrocada se tornasse iminente? Com que espécie de veneno adocicado lhe terão azedado o pensamento e os sentimentos?

O nosso companheirismo estendia-se muito para lá do romantismo. Éramos companheiros práticos, como dois melhores amigos que se ajudam mutuamente e que puxam um pelo outro, até que o melhor de cada um fosse depurado e emergisse. Os nossos sonhos eram distintos, mas nem por isso abdicávamos dos incentivos, da motivação e do aconselhamento. Juntos, parecíamos capazes de tudo.

Foi só depois de nos casarmos que entrei para o ensino superior. Decidimos fazer as coisas à vez, de maneira a irmos construindo uma vida mais confortável. Como trabalhávamos os dois e os cursos que queríamos tirar eram mais um capricho, uma realização pessoal, do que uma ferramenta profissional, optámos por fazer assim. Não me arrependo. O meu marido - ex-marido - estudou o que queria, terminou o seu curso, festejámos. A seguir fui eu, estudar o que sempre quis: enologia. Era um gosto que vinha de longe: o meu avô paterno tinha uma vinha, o meu pai ainda fez vinhos com essas uvas. Depois, perdeu-se a tradição na família, mas as memórias de infância não se dissiparam e o meu gosto pelo vinho foi sobrevivendo.

O meu ex-marido não percebia a utilidade de semelhante curso, mas nunca se opôs a que eu estudasse para fazer vinho. Hoje, gostaria de lhe dizer que a enologia não era assim tão inútil e que o curso que tirei me garante o trabalho e o sustento - um trabalho de que gosto e para o qual todos os dias acordo motivada; um sustento que é muito razoável, com um salário que, não sendo elevado, é generoso e me permite viver sem restrições ou constrangimentos.

Foi precisamente quando eu estava a terminar o curso que tudo se precipitou em direção ao triste fim. Na fase final da licenciatura, foi-me dada a oportunidade de fazer um estágio em Itália, com sede num instituto em Roma e vertente prática na Toscana. Após longa reflexão e algum debate - um debate amistoso, sereno e construtivo - concluímos, eu e ele, que o estágio seria enriquecedor e que tudo se resolveria, mesmo a distância seria fácil de suportar e até de contornar: ele poderia visitar-me em Roma, eu voaria para Lisboa regularmente, poderíamos até fazer escapadinhas em Florença ou na costa de Livorno ou de Piombino. Nunca o fizemos. Veio ter comigo a Roma duas vezes, tirámos fotos no Coliseu - ou, melhor dizendo, diante do Coliseu, porque a visita era "demasiado cara" - e na Fontana di Trevi, comemos pizza - "os italianos chamam a isto pizza?" - e pasta, não creio que tenha desfrutado de nenhuma das duas. "Mas eles acompanham tudo com alcachofras?" foi o comentário mais profundo que fez à gastronomia de Itália. Só pareceu feliz quando passeámos pelas imediações do Estádio Olímpico, que fica num sítio horroroso e desinteressante, mas que pareceu ser o suficiente para o encantar.

No último mês do meu estágio, e sem que nada o fizesse prever, começou a mandar-me mensagens muito feias. Tinha ciúmes. Achava que eu andava com alguém, "com algum desses bêbados que andam a estudar contigo", dizia-me ele, porque para ele enologia era coisa de bêbado, não era académico o suficiente. No meu estágio, havia oito pessoas; seis, contando comigo, eram mulheres; os dois homens eram um jovem de 21 anos, que eu não consideraria nem para ir comer um gelado; o outro era um senhor alemão dos seus quarenta e muitos, que talvez seja a pessoa mais desinteressante com quem me cruzei na vida. Fora isso, cheguei a Itália profundamente apaixonada pelo meu marido - na altura, ainda era o meu marido. 

Os seus ciúmes eram não só infundados, eram também ofensivos. Insultava-me, ligava-me a meio da noite, às vezes de madrugada, "onde é que tu estás, Inês? Onde é que tu andas? Com quem é que tu estás?" Todo esse tipo de perguntas, todo esse inquérito clássico dos ciumentos, todas essas maneiras opressivas de quem exerce poder sem se preocupar com as consequências - acredito que ele não mediu bem a gravidade dos seus atos nem a profundidade da minha autoestima. Azar o dele.

E foi então que chegámos ao ponto em que simplesmente deixou de me atender o telefone. E enquanto ele me torturava com o seu silêncio, eu soluçava em desespero, sem saber o que fazer, sem saber o que era feito dele - e sem saber que mal tinha eu feito. Eu, que nunca, nem em pensamentos, o tinha traído, estava a ser tratada como uma galdéria que tivesse ido para Itália conviver com os italianos, como uma enóloga que tivesse ido estagiar para se embebedar. (E penso de novo, para comigo: que palavras doces de veneno lhe terão soprado ao ouvido enquanto eu, distante, acreditava que tudo estava bem.)

Cheguei a um ponto em que não aguentei mais. Decidi que não voltaria a ligar para ele. E decidi que, quando regressasse a Portugal, não voltaria a casa. Iria para casa dos meus pais, se fosse preciso, nem que fosse temporariamente e até reorganizar a vida. Mas não podia permitir-me ficar com um homem que me destratava assim. Aquele que eu achei que era o amor da minha vida, afinal revelou-se um desconhecido cheio de ódio e de ressentimento infundado. Lembro-me de ter telefonado à minha mãe a explicar-lhe tudo e a contar a situação: estava na Fontana di Trevi, precisamente onde milhares e milhares de casais se beijam, se apaixonam e se pedem em casamento. É curioso, pois foi nesse sítio exato que eu decidi e anunciei o fim da minha relação de uma década.

Quando voltei a Portugal, o Afonso tentou ver-me - podia ter todos os nomes do mundo, mas o nome dele era Afonso e era igual a qualquer Pedro, a qualquer Rui, a qualquer João que destrate as mulheres. Não aceitou que tudo tivesse acabado. Só se apercebeu de que era definitivo quando, diante de si, me tinha a mim, assinando os papéis do divórcio. Pelas suas faces correram lágrimas. Espero que estivessem temperadas com o mesmo veneno que o fez odiar-me.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
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