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Histórias de Amor Moderno: “Fizemos ali mesmo, comigo de costas para ele, voltada para uma grande pedra, onde apoiava as mãos.”

“Abracei-os com força e inspirei fundo, com ternura e com saudade. Meus queridos. E se não nos voltássemos a ver?” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
28 de outubro de 2023 Maria Olívia Sebastião

Estávamos num acampamento na Serra do Gerês, com o Jorge e a Isabel. Era uma noite de verão sem luar, mas com um céu estrelado capaz de iluminar até o bosque mais denso. Pernoitávamos numa clareira só para nós os quatro, cada casal na sua tenda. Fizemos uma fogueira, petiscámos como pessoas rudes assando chouriços, salsichas e pedaços de carne na ponta de espetos improvisados, feitos de ramos de loureiro, tudo enquanto conversávamos, desfiando histórias antigas, a infância, a adolescência, as nossas aventuras, os nossos embaraços insignificantes cuja utilidade se resume a isto: uma história de que nos rimos se estivermos todos juntos a beber cerveja.

E foi então que eu, calada e enleada nos meus pensamentos, me fui dando conta de que, se eu e o António acabássemos, se nos separássemos, provavelmente eu não voltaria a ter uma noite assim, de partilha, de comunhão e de amizade com o Jorge e a Isabel. O Jorge e a Isabel eram uma entidade conjunta, assim como eu e o António éramos uma entidade conjunta. Além disso, o Jorge e o António eram amigos de infância. A Isabel era amiga da irmã do António desde os tempos de infantário. Eu era apenas um acrescento à vida deles, às suas relações. Se a minha relação acabasse, acabávamos todos e eu deixava de ser alguém para eles.

A manhã desse dia foi agressiva para mim. Eu e o António tínhamos planeado acordar cedo e sair para uma caminhada madrugadora. E foi o que fizemos, embora o António tivesse decidido despertar-me bem mais cedo do que eu estava à espera. Não havia sequer sinais de raios de sol quando saímos da tenda. Caminhámos com lanternas ao longo de trilhos que ele tinha estudado nos mapas que certas equipas locais usavam para as provas de orientação. Quando chegámos junto à barragem - uma represa que se encheu sobre as ruínas de uma aldeia abandonada, que hoje repousa, sem ninguém que lhe resgate as memórias, no leito daquele lago -, o sol começava a dar os primeiros sinais de vida.

Na margem do lago, o António abraçou-me pela cintura e puxou-me para ele. Fê-lo duma maneira que eu bem conhecia e que sempre adorei: com fervor, com vontade. Como se me quisesse engolir. Só que, nesse momento, e pela primeira vez que me lembro, não senti vontade de retribuir. Pelo contrário, senti repulsa. Mas ele continuou, não se apercebendo, talvez, de que eu não queria. A persistência dele, juntamente com a vontade quase cega de o fazer, levou-me a não o contrariar, a deixar-me ir. Fizemos ali mesmo, comigo de costas para ele, voltada para uma grande pedra, onde apoiava as mãos. Não foi bom. Muito menos foi bonito.

À noite, junto à fogueira, essas imagens não me deixavam. Nem as imagens nem a sensação de repulsa - não era bem nojo, nunca foi nojo; era mais como se um grande desgosto me percorresse a pele por fora e o corpo por dentro, e simplesmente eu não o quisesse dentro de mim, mas mesmo assim não tivesse outra possibilidade que não fosse aceitá-lo. Seria o fim de nós? O que seria de nós no fim de nós? O que seria de mim sem nós? Sem os nossos amigos? Sem os amigos que agora eram nossos, mas que eram, no início de tudo, apenas dele? Abri mais uma cerveja, voltei à Terra. Juntei os meus ouvidos e a minha atenção às histórias deles e dei por mim a rir-me com algumas delas.

Quando, depois dessa viagem, regressámos à cidade, senti que precisava de falar com alguém. Mas com alguém que me ouvisse e me compreendesse. Liguei à Andreia, combinámos lanchar na boulangerie. E foi entre chás, éclaires e macarons que lhe contei o que tinha acontecido no Gerês. Perguntou-me se ainda sentia desejo pelo António. Disse-lhe que não pensava muito nisso. "Não tens. Nestas coisas não se pensa." Eu sabia que ela tinha razão. Simplesmente, custava-me admiti-lo, custava-me aceitar que, se calhar, já não tinha paixão por ele, que já não o queria. Estávamos juntos há muito tempo. E o tempo cria laços para além desses do corpo e da paixão, do desejo e do fervor. Porém, a verdade é que não sentia pelo António qualquer espécie de desejo. Tudo o que restava era um hábito, uma rotina.

A Andreia, que era minha amiga desde o liceu e que não gostava particularmente do António, reconfortava-me com palavras pragmáticas, "ainda és nova", "há mais homens lá fora", "não podemos viver infelizes", dizia-me ela sem reticências nem hesitações. "Vou sempre estar aqui", acrescentava, mas esquecia-se que, entretanto, o marido dela, o André - Andreia e André: quão mais piroso pode ser isto? -, se tinha tornado um dos melhores amigos do António, o seu companheiro de bola, o compincha com quem partilhava cervejas nas roulottes e a fila de lugares anuais no Estádio de Alvalade. Confrontei-a com isso. Concedeu, "não vai ser a mesma coisa se vocês se separarem". Era uma evidência. "Mas eu serei sempre a tua amiga, amiga", e abraçou-me, e eu acho que chorei um bocadinho - não sei se pela sensação de conforto (aquele conforto que aquece por dentro e nos faz sentir seguros, como se a nossa mãe viesse aconchegar-nos, ajeitar-nos os cobertores à noite), se pela tristeza de perceber que, acabando tudo, nada voltaria ser igual. Nem com a Andreia, nem com nenhum dos nossos amigos.

Despedi-me da Andreia e apanhei o metro. Fui ter com o António. Íamos jantar a casa da irmã dele, a Patrícia, de quem me tornei razoavelmente próxima com o passar dos anos. A Patrícia já tinha dois filhos, o Francisco e a Beatriz. Praticamente vi nascer ambos, e sempre os tratei como sobrinhos - sobrinhos mesmo, de sangue. Quando chegámos a casa da Patrícia, fizeram-me a festa que sempre faziam, pendurando-se em mim, abraçando-me, enchendo-me de beijos - e de baba, e do que quer que tivessem a besuntar-lhes as mãos, o que podia ir de chocolate a doce de ovos, de chupa-chupa a leite com cacau. Abracei-os com força e inspirei fundo, com ternura e com saudade. Meus queridos. E se não nos voltássemos a ver? Como é que eles cresceriam sem mim? Ou como é que a minha vida podia continuar sem os ver crescer?

"Querido António, quero que saibas que estou bem. Preciso de uns tempos sozinha, preciso de pensar - de pensar em mim, em ti, na vida, no que temos juntos, no que me faz feliz, no que espero viver ainda. Gosto muito de ti, mesmo que a paixão de outrora já não conserve o mesmo fogo. Não te preocupes comigo. Estou bem e darei notícias. Um beijo". Deixei este bilhete em cima da mesa de cozinha e saí com uma mochila de roupa. Por precaução, levei comigo o passaporte. Estava decidida a chegar ao aeroporto e a apanhar o primeiro voo disponível para um sítio que me desse sol, praia e paisagens exóticas. Por sorte, apanhei um avião para Maiorca. Cheguei sem saber onde ia ficar nem o que iria fazer, ao certo - e era isso o que mais me animava, precisamente.

Quando aterrei, tinha uma mensagem do António no Whatsapp. Dizia qualquer coisa como "toma cuidado com as tuas amizades" e "não deixes que te entrem na cabeça". Referia-se à minha conversa com a Andreia, claramente. O André deve ter-lhe dito que estivemos juntas, e ele juntou dois mais dois. Mas falava como se toda esta situação fosse um erro ou, pior, uma impossibilidade, um disparate, um absurdo. Terminava com "não sejas idiota como a idiota da tua amiga".

O fim daquela mensagem entrou-me pelos olhos como se um xarope calmante me entrasse no corpo. De repente, fazia sentido. Eu tinha razão. Eu não estava enganada. As coisas tinham acabado - é claro que as coisas tinham acabado. E sim, haveria consequências, mudanças. E perdas - amizades perdidas, afetadas, adulteradas, amassadas. Mas também haveria futuro, qualquer coisa nova e diferente. Coisas por acontecer. 

Vesti um casaco, a noite estava fresca, e desci para comer tapas e beber copas. Entrei num barzinho e pedi um shot de tequila. Um grupo de raparigas eufóricas e muito bêbadas entrou logo a seguir. Vinham pintadas e mascaradas, cantavam e dançavam. Era uma despedida de solteira. Brindaram comigo e, vendo como estava melancólica, desafiaram-me: "Vem beber e cantar connosco", gritavam. "És a nossa nova amiga." E eu fui.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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