“Há claramente uma relação entre o conservadorismo e a violência na intimidade”
Sofia Neves, Professora Universitária, doutorada em psicologia social e investigadora das questões de género e violência, traça um retrato do fenómeno, dos jovens aos casais do mesmo sexo, e explica a sua relação com a masculinidade tóxica. Além disso, alerta para o lado ainda oculto da realidade: a violência sexual.

Em ano de pandemia, a violência doméstica voltou a fechar-se sobre antigas barreiras e medos. Neste Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres e numa altura em que ainda pouco sabemos sobre as consequência que 2020 terá para as vítimas, a Professora Universitária do ISMAI, investigadora do CIEG (ISCSP-ULisboa) e Presidente da Associação Plano i, responsável pelo Observatório da Violência no Namoro, explica à Máxima como se caminha para uma mudança "que demora gerações".
De acordo com os dados da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), desde o início do ano até 15 de novembro morreram 30 mulheres no nosso país, 16 das quais em contexto de relações de intimidade. Como interpreta estes dados?

São números que nos dizem que a violência doméstica continua a ser uma realidade muito preocupante em Portugal, ainda mais neste período de pandemia, em que as vítimas estão em contexto de confinamento e por isso com menos recursos e possibilidades para pedir ajuda. Apesar disso, é prematuro tirar grandes conclusões, será preciso deixar que o ano civil termine, analisar as estatísticas oficiais e as estatísticas das organizações não governamentais para se fazer um retrato mais rigoroso do que aconteceu em Portugal. O que sabemos já e a Organização Mundial de Saúde lançou dados preliminares sobre o tema, é que parece ter havido um aumento significativo dos casos porque as vítimas estiveram confinadas com os agressores e estiveram mais expostas à violência.
No período de confinamento foi evidente que os pedidos de ajuda diminuíram. Isto no caso da violência contra as mulheres. Sou presidente de uma organização não governamental, que é a Associação Plano i, que tem sob a sua responsabilidade uma estrutura de acolhimento e atendimento para vítimas de violência doméstica LGBTI e nessa altura tivemos um aumento da procura, contrariando a tendência dos dados que foram recolhidos.
Consegue apontar uma razão para essa tendência ser diferente?

Essas pessoas estão ainda mais vulneráveis por causa do estigma, da discriminação que existe em razão da orientação sexual, identidade e expressão do género e características sexuais. Sabemos que muitas vezes quem pratica a violência são as famílias e, mais uma vez, este contacto mais ininterrupto com as famílias veio agravar os episódios de violência. Tivemos pedidos de acolhimento de urgência para tentar mitigar os efeitos desta violência que são bastante severos.
É expectável que se repitam alguns destes padrões com o novo estado de emergência e o confinamento parcial que estamos a atravessar?O primeiro confinamento foi muito particular, não é comparável ao que vivemos agora. Foi um período que gerou nas vítimas um grande mal-estar, desconforto, houve um aumento de sintomas depressivos, de ansiedade fruto do distanciamento físico. O suporte social diminuiu substancialmente, portanto as pessoas que já estão vulneráveis ainda ficam em maior risco.
Escrevia há uns anos que a violência no namoro era a face menos visível da violência doméstica. Continua a ser assim?

Acredito que já não, foram dados passos muito importantes para chamar a atenção para o fenómeno. A nossa organização tem à sua responsabilidade o Observatório da Violência no Namoro e são muitos os contactos que chegam, os pedidos de ajuda, sobretudo de jovens e de ex vítimas. Há cada vez mais ações em contexto escolar e em contexto académico. O facto de se ter colocado o tema na agenda fez com que este fosse discutido de forma mais aprofundada e mais informada também.
Neste momento, a face menos visível da violência doméstica é a violência sexual, sobre a qual se fala muito pouco. Muitas vezes, as vítimas não reconhecem que aquilo que vivem no contexto das relações de intimidade configura violência.
A sociedade não está ainda preparada para falar neste tema? Mesmo quando já vemos uma ou outra série que o aborda?

As vítimas têm muita dificuldade em expor a sua vida íntima, ainda mais a sua vida sexual. E quando estão numa relação estável e duradoura consideram que muitas das práticas fazem parte do contrato do casamento como se fosse uma obrigação "servirem" – e uso este verbo porque é o verbo que as próprias vítimas usam – os maridos. Isto coloca-se, sobretudo, nas relações entre pessoas de sexo diferente. Quem trabalha com as vítimas tem de ter formação especializada para saber como colocar devidamente as questões para que as pessoas possam falar delas com alguma naturalidade.
O que pode ser feito para chamar a atenção para o problema da violência sexual? Que instrumentos existem?
Eu coordenei um estudo sobre a violência sexual em relações de intimidade financiado pela CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género) e uma das evidências que esse estudo aponta é para a necessidade dos profissionais que estão no terreno a trabalhar com as vítimas (e depois o sistema judicial), poderem ser capacitados para as especificidades da intervenção. As pessoas não se sentem preparadas para intervir. O tema é complexo, tem a ver com questões privadas, por isso uma das prioridades teria de ser essa formação. Temos poucos serviços especializados, existem Centros de Intervenção em Crise, aliás estamos obrigados a isso pela Convenção de Istambul, mas não cumprimos ainda a meta. E estes centros não cobrem todo o território nacional, por isso o acesso não é facilitado. Tínhamos também uma campanha para ser lançada no âmbito do projeto sobre a violência sexual, mas que está suspensa porque entretanto chegou a pandemia e houve uma série de medidas que foram sendo adiadas porque não são prioritárias.

Volta-se, então, à base, que são os papéis dos homens e das mulheres e a desigualdade de género.
Essa é a grande base sobre a qual a violência assenta, que é o facto de no ponto de vista da nossa socialização ainda termos representações sobre os homens e sobre as mulheres que são muito conservadoras, patriarcais e que legitimam muitas vezes o uso da violência. Aliás, no caso da violência no namoro, o que os nossos estudos, feitos com estudantes do ensino superior, têm demonstrado é que quem pratica a violência e quem sofre a violência tende a ter crenças mais conservadoras sobre as relações sociais de género. E isto diz muito do âmago do problema. A forma como pensamos acerca das relações deriva das conceções de género que temos. Há claramente uma relação entre o conservadorismo e a legitimação da violência como parte da intimidade, o que é especialmente preocupante nos jovens.
Qual o papel das escolas, da comunidade escolar (professores, etc.) na desconstrução de estereótipos de género?

É fundamental.
Por exemplo, de que forma é que a discussão sobre a disciplina de cidadania pode, ou não, ter impacto na evolução destas mudanças e conquistas?
Essa foi uma discussão estéril porque aquilo que se ensina às crianças e jovens é precisamente a cidadania, a democracia, a justiça social, no limite os direitos humanos e nada disso põe em causa o desenvolvimento das crianças e jovens, pelo contrário, capacita-as para identificar relações abusivas, indicadores de mal-estar e ensina também a serem pessoas solidárias e atentas às necessidades das outras. Acho que a Educação para a Cidadania é absolutamente fundamental, mas era muito importante que nas outras disciplinas estes temas também pudessem ser trabalhados, é possível fazê-lo na matemática, no português, nas línguas, basta que haja por parte das professoras e professores essa disponibilidade. São temas que podem sair da sala de aula e que deviam ser temas transversais.

Trata-se, no fundo, de desconstruir as bases da masculinidade tóxica a partir da escola. Ainda há muito para fazer?
As coisas já mudaram substancialmente do ponto de vista formal, temos um corpo de lei e um conjunto de medidas e temos uma estratégia nacional, para além da Educação para a Cidadania, que visa prevenir e combater a violência domestica e de género, mas na prática ainda se encontram muitas resistências e barreiras. Não podemos ignorar que vivemos quase 50 anos em ditadura e ainda estamos a pagar esse preço. Estas mudanças levam gerações.
Quando olha para os números da violência do namoro sente que essa mudança está a acontecer?
Por isso é que o problema tem de ser encarado como estrutural, tem a ver com as normas culturais, aquilo que nos é ensinado. Estamos a fazer essa mudança, não tenho uma visão pessimista. Mas também não estamos a atravessar um momento em que estas sejam as prioridades. Estamos novamente a atravessar uma crise económica, uma crise social, temos uma onda de populismo a invadir-nos e que também já chegou a Portugal. Sabemos que estas ondas fazem sempre com que se recue. Andamos dois passos para a frente e dois para trás.
A par da violência contra as mulheres, que outros tipos de violência deste espectro têm chamado a sua atenção?
Acho importante dar enfoque à violência na intimidade entre pessoas do mesmo sexo, que existe na mesma dimensão da violência entre pessoas de sexo diferente. O problema é que há uma dificuldade ainda maior das primeiras em denunciar. Trata-se um processo que apelidamos de "duplo armário": o armário da orientação sexual e o armário da vítima. As pessoas quando vão pedir ajuda têm de forçosamente revelar a sua orientação sexual ou identidade de género, o que causa enorme constrangimento.
Por outro lado, se não existe ainda grande preparação para trabalhar com mulheres vítimas de violência, muito menos com pessoas LGBTI, que sentem, por vezes, que o sistema as vitima mais do que protege.
