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Sexo, raiva e feminismo em ‘Animal’, de Lisa Taddeo

Após o impacto de 'Três Mulheres', o seu pimeiro livro, Lisa Taddeo estreia-se no romance com a história de uma mulher à beira de um precipício moral, um thriller de vingança que se lê de um fôlego.

Foto: J Waite
03 de dezembro de 2021 às 11:51 Rosário Mello e Castro

Lisa Taddeo está assoberbada. Para uma jornalista relativamente desconhecida transformada em autora de best-sellers, ser responsável por uma equipa de centenas de pessoas, aquela que produzirá a série de televisão baseada na sua estreia literária, Três Mulheres (2019, Editorial Presença), é a última coisa que o seu cérebro de escritora precisa. Ainda assim, é difícil imaginar que alguém que ao longo de oito anos atravessou os EUA várias vezes para acompanhar intensamente a vida de três mulheres e assim remexer nas emoções e na sexualidade mais cruas, se dê por vencida.

A partir do seu escritório no Connecticut, a autora norte-americana fala à Máxima por Zoom. Tem olhos atentos e empenhados e tanto reflete sobre violência de género e papéis sociais como brinca com o stress que é tomar decisões de milhões de dólares. Animal (2021, Editorial Presença) apresenta-nos Joan, uma mulher que se descreve como "depravada" e que testemunha um crime hediondo logo nas primeiras páginas. Percebemos rapidamente que essa é apenas a ponta do iceberg do passado de violência e trauma sexual da jovem protagonista para quem a vida se tornou numa sucessão de consequências disso mesmo. A certa altura, num supermercado, Joan repara num homem que remexe numa borbulha enquanto olha fixamente para ela. "Há centenas de violações destas todos os dias," diz-nos, e percebemos que em todas as mulheres vive uma pequena parte de Joan.

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Animal surgiu das suas experiências pessoais e também das experiências que outras pessoas partilharam consigo. Como é trabalhar realidades tão violentas num romance?

Quando o meu editor leu o primeiro esboço de Animal disse-me que algumas partes eram demasiado. A avó da Joan é violada e a minha avó foi violada por um estranho em pleno dia quando tinha 75 anos. E é uma coisa chocante, acho que era mais nova que a Joan quando aconteceu, mas aquilo ficou na minha cabeça porque os meus pais falavam sobre isso e eu não conseguia entender exatamente que mistério era aquele. Fez parte de mim e das minhas memórias de infância e a maneira como isso cresce connosco era algo que eu queria explorar. Depois de contar isto ao meu editor, ele disse: "então acho que devemos deixar no livro." Só que essa não é a razão certa para o fazer. Talvez devêssemos olhar para o porquê de ele não querer deixar essa parte no livro. Não é o facto de ter acontecido que faz com que a história deva ficar, tudo o que conseguimos imaginar aconteceu até um certo ponto a alguém. Então porque é que não podemos escrever sobre isso? O que é que estamos a salvar? Porque é que alguém não se preocupa com esta pessoa se isto também lhe aconteceu? Porque é que é demasiado?

Logo no início de Animal, Joan diz-nos que é uma assassina. Não conhecemos a sua história, mas a violência está latente logo desde as primeiras páginas do livro. Precisamos de acontecimentos físicos para explicar porque é que esta mulher está tão zangada? Como se fosse uma espécie de terapia de choque?

Eu perdi os meus pais, não da mesma forma que a Joan, mas o modo como senti a perda foi tão difícil e fora do normal que me pareceu que algo selvagem e louco tinha acontecido em vez de um acidente de viação, num caso, e um cancro noutro. É assim que muita gente morre. O problema é quando as pessoas olham para a tua situação e dizem "oh, não é assim tão mau porque X"’. É a mesma coisa quando alguém perde um animal de estimação e os outros sentem que isso não é tão importante como perder um filho. A questão não é retorcer a perda de alguém de uma maneira que se possa entender, é ver e ir ao encontro do que a pessoa experienciou. Foi isso que o Animal representou para mim.

Porque é que temos tanto medo de uma mulher zangada?

Porque a mulher tem sido durante séculos o género mais sossegado e aquele com que nós, coletivamente, homens e mulheres, não precisamos de nos preocupar tanto. Sabe, é engraçado, a minha filha já sabe ler, mas há dois anos, quando ela não sabia eu podia dizer-lhe: "Oh não, a piscina está fechada", e agora ela responde-me "mas ali diz que está aberta". As mulheres conseguem ler que a piscina está aberta e agora temos muitas pessoas na piscina e há quem não queira que isso aconteça. Hoje em dia, eu tenho de dizer à minha filha que a piscina está aberta, mas que existem razões pelas quais não podemos lá ir e quais são essas razões. Demoro 20 minutos com tudo isto, quando antes demorava 20 segundos a dizer não, mas de que é que eu poderia estar à espera se não disto? A resposta não pode ser "não leias", mas sim vamos pôr as coisas em pratos limpos.

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Em Portugal só recentemente começámos a falar seriamente de temas como o consentimento, o assédio sexual, mas imagino que movimentos como o #Metoo tenham influenciado bastante os seus livros…

Influenciaram-me, sim. O mesmo aconteceu com o Black Lives Matter e todas as lutas raciais e estruturais, tenho muita dificuldade em entender porque é que alguém trataria outra pessoa de qualquer outra forma sem ser com compaixão, amabilidade e igualdade. A única vez que não se deve ser simpático para alguém é quando esse alguém não é simpático para ti. Para mim é difícil existir nesta mentalidade… Acho que, em boa parte, Animal nasce da raiva provocada pelo facto destas questões continuarem a ser tema de conversa. Parece-me de um nível muito básico, a ideia que devemos ser iguais é tão óbvia. Sinto o mesmo em relação a outras questões, transtorna-me o facto de as pessoas não serem humanas umas para as outras. Cada um protege-se a si mesmo e depois existe medo. Quer dizer, é normal, eu estou assustada a toda a hora, mas sinto que quando as pessoas estão assustadas tentam proteger as suas coisas, agarrar tudo o que conseguem. Isso deixa-me zangada.

Três Mulheres foi um best-seller mundial e será em breve uma série de televisão. Agora que já tem alguma distância desde a publicação, porque acha que o livro teve tanto impacto?

Acho que houve uma coalescência de coisas. As mulheres deixarem de não querer ser ouvidas. Mas o impacto do livro deve-se à bravura das mulheres que participaram e não tanto a mim. É que estas mulheres estavam dispostas a ser totalmente honestas e a deixarem-me entrar na vida delas de uma maneira bastante detalhada, o que torna estas vozes femininas o princípio de alguma coisa. Todo o sucesso e todo o fracasso é frequentemente devido a milhões de coisas diferentes. Acho que eu tive alguma coisa a ver com isso, acho que as mulheres tiveram tudo a ver com isso e acho que o ponto onde o mundo estava teve muito a ver com isso.

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Durante anos seguiu de forma muito próxima a vida destas mulheres completamente diferentes. Quando começou a pesquisa sabia que ia resultar neste livro?

Sempre tive interesse em falar com as pessoas e contar histórias que vão ao detalhe da realidade. Naquele dia em que te apaixonaste por aquele rapaz que tipo de vestido tinhas? Eu estou interessada nesses pequenos pormenores. Tudo o que queria fazer era contar histórias desta forma e até pensava que seriam mais de três. Tudo o que aconteceu a partir daí não foi planeado.

Houve quem ficasse chocado com Três Mulheres e o mesmo está a acontecer com Animal. A sociedade continua a ver as mulheres como santas, desprovidas de desejo?

Sabia que isso ia acontecer até um certo ponto, mas fico sempre surpresa o quanto precisamos que as mulheres sejam de uma determinada forma. Não só as mulheres, temos noções pré-concebidas do que toda a gente numa sociedade deve ser, e se alguém tenta ser diferente não é aceite. Há tanta gente a impedir outras pessoas de existirem seja de que forma for. No caso das mulheres especificamente, as pessoas não querem ouvir os seus desejos sexuais, especialmente outras mulheres. Notei muito isso e essa é uma das razões pelas quais fui muito específica no meu trabalho. À exceção de Maggie [que alega ter tido uma relação sexual com o seu professor de liceu], as mulheres que estão no livro estão lá porque me deram um acesso maior e porque me deram a verdade. E também porque foram as mais julgadas pelos outros, o que me interessou. Ver outras mulheres julgá-las foi chocante para mim.

E acredita que Animal provoca as mesmas reações?

Julgamos mais as pessoas que são diferentes de nós e também as que nos são demasiado chegadas. Estava muito interessada na Joan, e em escrever Animal no geral, porque queria mostrar como tudo aquilo que lhe aconteceu pode acontecer. Ao longo da minha vida, e sobretudo durante a pesquisa para o Três Mulheres, conheci tantas pessoas que experienciaram coisas terríveis, mas sinto que os outros conseguem lidar com estas histórias apenas até um certo nível. Muitas coisas que acontecem em Animal são verdadeiras, aconteceram-me a mim ou a pessoas que conheço. E existem tantas outras vidas das quais não falamos no mundo real, empurramos as coisas para debaixo do tapete. Não podemos julgar os outros pelo que lhes acontece na vida.

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O que pensa da recente discussão sobre o aborto nos EUA e sobre os direitos das mulheres em geral?

Faz parte do que estava a dizer. Penso que a ideia de alguém pensar que pode controlar o corpo de outra pessoa é uma loucura. É uma loucura completa. O segundo em que se conta a alguém o que estamos a fazer ou a pensar, essas pessoas passam a ter informação sobre nós, têm este poder, ao passo que antes elas poderiam nunca ter sequer pensado no assunto de que lhe falámos. Sentem-se empoderadas e não tem a ver com o facto de se preocuparem com os bebés, tem a ver com o facto de terem o poder de impedir as ações de alguém. Se olhas para ti mesma e ficas do género "porque é que estou a fazer isto? Estou a fazer isto porque quero ter controlo sobre outro ser humano?" Se essa é a razão, e é na maioria das vezes, é uma violação das condutas humanas básicas. É uma mentira, a suposta preocupação dessas pessoas não passa de uma mentira.

Foto: J Waite
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