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Manuela Tavares: “o que mais custa a mudar numa sociedade é a mentalidade"

Uma mulher à frente do seu tempo, Manuela Tavares continua a lutar pelos direitos das mulheres. Conversámos com a fundadora da UMAR sobre a liberdade, os novos feminismos e as causas que importam hoje.

25 de abril de 2019 às 07:00 Rita Silva Avelar

Ativista, feminista, fundadora da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), especialista em estudos do género feminino. Mulher, acima de todas as coisas, Manuela Tavares continua a falar com a mesma garra com que o fazia nas primeiras reuniões com as mulheres do seu bairro, no Pragal, no pós-25 de abril. Estava a descobrir os problemas das mulheres: a discriminação de género. Doutorada na área de Estudos sobre as Mulheres, Manuela Tavares é hoje investigadora integrada no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, investigadora colaboradora no Centro de Migrações e Relações Interculturais da Universidade Aberta e coordenadora do Centro de Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães. Foi a primeira ativista feminista a defender um doutoramento sobre feminismos, em 2008. Entre outras, foi membro da delegação de ONG’s Portuguesas à conferência das Nações Unidas sobre Direitos das Mulheres em Pequim (1995), tendo sido Representante Portuguesa no Lobby Europeu de Mulheres entre 1992 e 1996. Hoje continua a ser um dos membros da UMAR, que fundou, e a acompanhar as lutas dos nossos tempos.

A Manuela nasceu e cresceu nas décadas de 50 e 60. Em que momento sentiu as desigualdades de género?

Eu não nasci feminista. Há algumas companheiras minhas que dizem que nas suas famílias, perante os irmãos, sentiam diferenças. Eu nunca tive isso, era filha única. Fui para a faculdade, participei nas lutas estudantis, mas aí também eram lutas contra o regime. Foi com as mulheres do meu bairro que eu aprendi que as questões do feminismo estavam no meio das relações familiares. Quando andava na luta estudantil sentia que era igual aos rapazes…

Quem foram as suas primeiras referências femininas?

As minhas primeiras referências foram as mulheres do bairro onde eu vivia, no Pragal. A seguir ao 25 de Abril houve uma ocupação de um palacete abandonado para se fazer uma creche, e eu pertencia a uma comissão de mulheres, que estava a trabalhar com a comissão de moradores, éramos muitas, e fomos tratar de transformar esse palacete na creche. Desde pinturas de janelas ao domingo a ir pedir apoios ao Ministério da Educação para termos educadoras, conseguimos abrir aquela creche, a creche popular do Pragal. Todas aquelas mulheres faziam parte das minhas vivências, eu tinha 21 anos. Isso foi muito importante porque foi assim que eu me apercebi dos problemas que estavam colocados às mulheres. Elas tinham que se defrontar com os problemas e os maridos em casa. Às vezes diziam-me: "vim para aqui mas já tive que deixar a mesa posta". Se não o fizessem eles chateavam-se por elas irem para a alfabetização.

O que é que reivindicavam essas mulheres?

As discriminações que elas tinham em casa acabavam por vir ao de cima, acentuavam-se quando elas queriam sair para fazer outras coisas. O 25 de abril trouxe muitas mulheres para a rua. A saída delas de casa, de participarem em assembleias e reuniões, o facto de terem voz… Levou a que acabassem por mostrar que em casa, as contradições que existiam se começavam a agudizar. Porque, após o 25 de Abril, as mulheres queriam ocupar outro espaço além do espaço da casa, e isso foi muito importante nas minhas aprendizagens.

Nessa altura falava-se de feminismo?

Esta minha sensibilidade para as questões feministas despertou aí e nessa altura nem se falava de feminismo. Apercebi-me que além dos problemas da sociedade, como a falta de habitação, a falta de creche para os filhos, o problema dos empregos (porque haviam entidades patronais que iam embora e deixavam as fábricas abandonadas) existiam outras contradições, que estavam muito camufladas e que sempre que tentavam saltar da esfera privada era um problema. Não falávamos em feminismo, mas aquelas já eram posições nitidamente feministas, tentativas de serem elas próprias sujeitos com direitos e não estarem amarfanhadas pela casa e pelos maridos.

Como é que viveu o 25 de Abril de 1974? Pode contar onde estava e como tudo se passou?

Estava preparada para ir para a faculdade. Antes do 25 de Abril, eu tinha alguns livros considerados proibidos e tinha um sofá cama que se abria e que tinha espaço para os guardar. Na minha ingenuidade e na minha ilusão, achava que se a PIDE fosse lá a casa eles lá estavam seguros… Portanto, quando veio o 25 de Abril não sabíamos bem o que era. Começou a haver uma transmissão na televisão que dizia para as pessoas ficarem em casa. Eu vivia em Almada e os meus pais não queriam que saísse. E fui ficando, à espera de saber notícias. Só mais tarde saímos à rua… Em Almada, não cheguei a ir para Lisboa. O 25 de Abril estava muito no segredo dos militares que o fizeram e de um grupo de pessoas que tinham uma participação política mais ativa que a minha. Fomos recebendo as notícias com muita alegria.

Quais foram as primeiras mudanças que testemunhou?

Lá no Pragal, foi a creche. Depois, e como o bairro era de terra batida, exigimos que aquilo ficasse alcatroado. A comissão administrativa da Câmara dizia que dava os materiais, mas que a mão de obra era nossa. Era preciso descarregar camionetas de areia, as mulheres saíram de casa e agarravam nas pás para ajudar. Isto foi a ocupação do espaço público pelas mulheres, e este foi um pequeno exemplo lá no bairro, aconteceu em muitos mais sítios… Nós tínhamos uma força imensa dentro de nós para transformar a sociedade, para mais democracia, mais participação… Mas como dizia a Maria de Lourdes Pintassilgo, a seguir às revoluções há sempre um período em que há um certo recuo, e as mulheres são as primeiras a recolher.

Esteve na linha da frente do "arregaçar das mangas" por parte das mulheres, logo após a revolução. Faz esse retrato social no livro Movimentos de Mulheres em Portugal…A revolução trouxe tudo a que aspiravam?

As maiores mudanças derivavam de direitos que foram alcançados. De leis que embora nem todas fossem aplicadas, sabia-se que se podia reivindicar determinado direito. O alcançar de direitos também ajuda a mudar mentalidades, em especial se se lutar pela aplicação desses direitos. A outra questão foi a autonomia económica das mulheres. Saírem de casa, terem o seu salário, e a seguir ao 25 de Abril houve realmente uma grande valorização de salários – infelizmente, atualmente há uma grande precariedade, há muitas pessoas a ganhar o salário mínimo. Uma outra questão importante foi quando se levantou o direito ao corpo e o direito à interrupção da gravidez, que nem teve só a ver com a saúde, mas com o direito de poderem decidir se querem ou não ter um filho, e quando é que o querem ter, planear a sua vida. A descoberta da pílula contraceptiva, que só começou a ser comercializada na década de sessenta, levou a que muitos médicos a receitassem para regularizar o ciclo menstrual [dando essa desculpa, com receio]. O direito de podermos dizer o que queremos fazer com a nossa sexualidade foi um debate que percorreu a sociedade portuguesa durante vários anos, com a igreja, com a sua hierarquia, dos grupos mais à direita…  

O que é o 25 de Abril trouxe às mulheres? Mudaram-se mentalidades?

Houve grandes mudanças, não se pode dizer que não existiram. Mudaram-se as mentalidades. No meu tempo, uma jovem que quisesse viver com um rapaz sem estar casada era um grande problema para a família e para a sociedade. As uniões de facto estão aí, as pessoas admitem isso perfeitamente, houve evolução de mentalidades. No entanto, o peso secular que existe sobre a mulheres para elas serem as cuidadoras continua mesmo nos casais mais jovens – é preocupante. O que mais custa a mudar numa sociedade é a mentalidade, é uma alteração que tem avanços e recuos. Hoje muitas mulheres consideram que é um direito trabalhar fora de casa, e muito bem, mas na base do trabalho precário em que ganham pouco, e que depois têm de pagar creche, viver na periferia, tudo isso tem um peso muito grande. Fazendo as contas com os gastos, hesitam, e recolhem a casa. Esse recolher [a casa] induz problemas de mentalidade. Quando elas estão fora de casa com outras redes de sociabilidade, acabam por ganhar mais empoderamento nas suas vidas. Lembro-me de uma mulher me dizer: eu posso ganhar pouco mas eu não tenho que pedir dinheiro ao meu marido para comprar umas meias. As mulheres ficam quase sempre para último lugar, mas o sentido de autonomia em termos económicos é muito importante para a emancipação.

Como é que vê o nascimento dos novos movimentos feministas, que já não são tanto ativismo político mas mais mediáticos. Há um lado bom e um lado mau?

Os novos movimentos que surgem muitas vezes mobilizados pela internet, e por muitas jovens, são a promessa de que o feminismo não vai acabar. Para as mulheres da nossa geração é a confiança. Com novas configurações, é certo. Hoje luta-se contra a dicotomia de género, por setores como as mulheres transsexuais, as mulheres lésbicas, as mulheres negras, as mulheres imigrantes, as mulheres trabalhadoras sexuais, as mulheres dos serviços domésticos, que sofrem múltiplas discriminações nesta sociedade. E a UMAR está nesse caudal, não à frente, mas estamos nesse caudal, e vimos isso como uma esperança de que os feminismos não vão acabar. Eles são diversos e até podem existir contradições, desde que se mobilize e lute por causas. Continuam a existir algumas das velhas causas, o salário igual para trabalho igual, as mulheres na decisão política… Mas as novas gerações trazem novas causas.

A dia 12 de setembro de 1976, foi constituída a vetusta União das Mulheres Antifascistas e Revolucionárias (UMAR), hoje União de Mulheres Alternativa e Resposta, UMAR. Qual continua a ser a missão da associação desde a sua génese?

Quando a UMAR surgiu, levei mulheres do meu bairro à primeira reunião, que foi no Salão Nobre do Instituto Superior Técnico. Quando estas mulheres vinham para as reuniões eu tinha uma ordem de trabalhos estabelecida, e elas davam cabo dessa ordem! O que elas queriam era desabafar sobre as questões que se passavam em casa, sobre os problemas dos filhos, dos maridos, da sobrecarga de trabalho enorme que tinham. Muitas trabalhavam fora em serviços pesados, e quando chegavam a casa tinham que fazer a lida e tomar conta dos maridos e dos filhos. Era sobre isso que elas queriam falar.

E quais são as causas que têm carecido mais atenção?

A UMAR tem uma atividade bastante importante nas vítimas de violência, temos casas de abrigo para as vítimas, uma área que para nós é muito importante. Mas não só…Precisamos de fazer prevenção, e por isso temos um grande projeto de prevenção nas escolas que se chama projeto Artemis e temos companheiras a trabalhar em Braga, no Porto, em Coimbra, na Madeira…É um trabalho de intervenção que acompanha várias escolas desde o início do ano lectivo, é um trabalho em conjunto com os conselhos pedagógicos. A UMAR vai trabalhando com essas turmas de forma a não dar uma lição porque são os alunos que colocam as temáticas que querem ver tratadas, através de vídeo, dramatização de textos, dança… Há dois anos consecutivos que fazemos estudos sobre a violência no namoro, com base em inquéritos em quase todos os distritos do país, para observamos como é que essas questões da violência no namoro são naturalizadas pelos alunos. É um trabalho a nível de educação que consideramos de muita importância. Por fim, outro trabalho é a memória dos feminismos – temos cerca de setenta histórias de vida de mulheres pelo País inteiro*.

As novas gerações – os chamados millennials – estão mais acordados para a necessidade de mudança mas também mais confusos? O que é que precisa de mudar e de ser clarificado?

É natural que isso aconteça, porque muitas vezes oiço dizer que o feminismo é o contrário do machismo, e esses comentários só acontecem porque não se sabe bem o que é. Nisso, recorrer à história dos direitos das mulheres é fundamental, para se perceber que hoje temos direitos porque houve mulheres que lutaram por eles. É um despertar confuso em muitas direcções, mas tentamos sempre que haja um maior esclarecimento. À medida que os jovens vão intervindo, vão entendendo.

Qual continua a ser o papel supremo da comunicação social em defender os direitos mulher?

Banaliza-se a violência dando-se notícias das mulheres que são assassinadas, mas não se dão notícias das condenações que são feitas. Quando os tribunais têm decisões extremamente polémicos, como o último caso em que se diminuiu a pena a um homem que agredia consecutivamente a mulher, que foi condenado no tribunal de Vila Real a quatro anos, mas depois no de Guimarães ficou em três anos – e a atenuante era o facto de não ter histórico de tribunais. Os agressores sentem mais força quando há notícias desses casos e chegam a ameaçar as mulheres: "qualquer dia acabas como aquela…". Infelizmente as mulheres só são notícia quando morrem ou quando apresentam queixa.

*A UMAR publicou vários livros com histórias de mulheres de norte a sul do país e ilhas, cada livro para cada distrito. Ao todo, são setenta histórias que relatam as vivências de mulheres de todas as idades e estratos sociais.

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