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O assédio sexual é nojento, ponto

Cláudia Lucas Chéu, escritora, argumentista, actriz profissional durante 10 anos, fala sobre o assédio no meio artístico e recorda comportamentos indesejados que presenciou e viveu.

22 de abril de 2021 às 11:46 Cláudia Lucas Chéu

Não dá para pôr paninhos quentes ou falar com rodriguinhos sobre um tema que me dá asco: o assédio sexual. O melhor é ir direita ao assunto. Não sei como será noutras áreas profissionais, mas o meio artístico, sendo o único que conheço minimamente, está pejado de situações de assédio, de abuso de poder, de prepotência sexual sobre o mais fraco. E muitas vezes o mais fraco é a mais fraca; alguma mulher, que por acaso até tem umas belas pernas ou uma cara bonita, independentemente de ter ou não talento para o trabalho para que foi contratada. Fui actriz profissional durante dez anos, fiz teatro e televisão, e mais tarde fui directora de actores de um elenco de novela. Passava horas em estúdio e em exteriores, em plateau e na régie, e vi bem como funciona o sistema do patriarcado em equipas técnicas maioritariamente masculinas, que continham o poder mas não as suas línguas compridas e pouco asseadas quando se referiam às actrizes, muitas não passavam de miúdas, olhando muito mais para o rabo e para as mamas delas em vez de porem os olhos no seu desempenho profissional. Este tipo de assédio, repleto de bocas e graçolas entre pares ou directamente para as actrizes, pode parecer mais subtil, mas continua a ser um comportamento indesejado de carácter sexual e uma forma de constranger ou perturbar o outro, neste caso, a outra. Sei que também há assédio de mulheres com cargos de poder em relação a homens actores, mas, ou eu tive muito azar e nunca assisti a uma cena dessas, ou simplesmente acontece em muito menor número, até porque as mulheres em cargos de poder, nomeadamente no meio artístico, também são uma ínfima minoria.

A onda que a actriz Sofia Arruda veio levantar, seguida de vagas do mesmo set, é na realidade um maremoto em iminência em muitos locais de trabalho. É preciso falar sobre este assunto, sim. As pessoas continuam a fechar bem os olhinhos, e muitas vezes a colaborar por miúfa de lhes lixarem a vida. Somos um meio bem pequeno; crias inimizades com alguém poderoso e estás bem tramada, fazem-te num instantinho a cama, e aqui é sempre no mau sentido. Nunca me aconteceu ser assediada a trabalhar em televisão, obviamente porque não pertenço ao grupo de mulheres lindíssimas que povoam os plateaus, não fiz parte desse target. Mas em teatro aconteceu-me. Não vou dizer o nome do actor, nem qual a companhia de teatro porque não vale a pena, ele sabe bem quem é. O importante aqui é falar sobre a situação. Eu era uma novata acabadinha de sair do Conservatório, ele era um tipo uns anos mais velho e já experiente na representação. Começámos por nos dar bem e desenvolver uma certa ligação, o que até nos dava jeito, porque fazíamos par romântico nesse espectáculo. Acontece que, na única cena sexual que fazíamos juntos, o energúmeno colocava-me a mão mesmo sobre o sexo. Primeiro achei que aquilo tinha sido sem querer, mas depois repetiu-se na noite seguinte. Quando o confrontei depois do segundo espectáculo, disse-me que não era verdade e que não tinha interesse nenhum em fazer isso comigo, que era casado. E por acaso até era, o grande porcalhão. Tentou desvalorizar-me, como se eu não lhe interessasse e não me tivesse feito nada. A partir dessa noite, deixámos de nos falar e passámos uma temporada inteira a contracenar, a fazer par romântico, sem nos cumprimentarmos fora de cena. Esta situação, para uma novata como eu, foi bastante marcante. Felizmente não permiti que isso me prejudicasse ao nível do desempenho no espectáculo, mas o sacana podia ter-me lixado a vida logo no início do meu percurso.

Creio que quase todas as mulheres devem ter pelo menos uma história deste tipo para contar. Alguma situação de abuso de poder ao nível sexual. Não me parece que seja mania da perseguição nossa, das mulheres — sim, é uma estratégia masculina recente dizer que estamos a exagerar e que eles também sofrem de assédio sexual como nós. Na verdade, continuamos a ser um alvo a atingir; a grande e substancial diferença é que muitas mulheres já não estão dispostas a ficar caladinhas. Temos noção de que não é algo que tenhamos de continuar a viver em ambientes de trabalho. Já chega. É a vez dos assediadores ficarem calados, a não ser que seja para pedirem desculpa, e de nós os fazermos baixar a bolinha.

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990. 

 

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