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Histórias de Amor Moderno: “O amor até pode ser moderno, mas estas histórias são milenares”

“As más línguas dizem que o grande salto do seu progresso profissional foi dado num resort em Marbella numa escapadinha pela Páscoa de 1993.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / Succession
08 de julho de 2023 Maria Olívia Sebastião

Entrei para a firma em 1987, há 25 anos, vai fazer 26. Daqui, de onde estou, vejo muita coisa. E ao longo de todos estes anos, as coisas que vejo vão-se acumulando. Uma pessoa dá por ela e é como aqueles sujeitos que apanham tralha do lixo e juntam tudo, guardam em casa, enchem móveis, quartos e corredores, empilham despojos até ao teto. Assim sou eu com aquilo que observo. Não sei para que serve o que guardo na memória, mas também não consigo evitar guardar. Querem histórias de amor moderno? O amor até pode ser moderno, mas estas histórias são milenares, são sempre as mesmas. Mudam os tempos e os lugares, os nomes e os rostos, mas a essência, essa, será sempre o melhor e o pior que há no mundo: o ser humano, com as suas emoções e as suas ambições.

Por exemplo, o Filipe, o diretor de produto. Hoje, é o doutor Filipe, já não é só Filipe, como era no dia em que entrou para cá. Não demorou muito até perceber que a doutora Suzete, diretora de marca e com assento na administração, lhe deitava uns olhares curiosos. Digo curiosos para não dizer lascivos. A Suzete é mais velha do que o Filipe uns bons 12 anos, talvez 13. Ele entrou para a casa ainda rapaz, pouco mais de 20 anos, nem o curso tinha acabado. Ela era casada com o doutor Rodrigo, diretor de dados e vice-presidente da empresa. Era casada e foi, durante muitos anos, que esse casamento só veio dar de si muito tempo depois de descoberto segredo. Digo segredo, mas é quase em sentido figurado: era segredo porque eles pretendiam esconder a relação alternativa e não a assumiam abertamente, preferiam viver o amor, ou lá o que era que eles tinham, na clandestinidade.

O Filipe, que hoje é doutor Filipe, saltou etapas e galgou na progressão de carreira. As más línguas dizem que o grande salto do seu progresso profissional foi dado num resort em Marbella numa escapadinha pela Páscoa de 1993. Mas eu sei - sei porque mo contou ele mesmo - que a família da Suzete tinha um pequeno chalé em São Pedro de Moel. O Filipe não me contou mais nada. Nem precisava. 

Em 1994, era subdiretor de produto. Quando se acabaram as escapadinhas para São Pedro de Moel, mudou para produção, mas a posição e o salário que então já tinha conquistado dentro da empresa, tudo escrito preto no branco e assinado pela administração, eram irreversíveis. Não tiveram outro remédio, até para não perderem dinheiro, senão fazê-lo subdiretor de produto, cargo equivalente ao que desempenhava, embora com outro tipo de responsabilidades. A doutora Suzete ficou melindrada por não conseguirem livrar-se do doutor Filipe - e, principalmente, por se deparar todos os dias com o novo amor do seu ex-amante, uma assistente que começou como estagiária, chamada Beatriz, que tem uns cabelos muito compridos e um corpo 20 anos mais firme do que o da Suzete. É assim a vida: às vezes por cima, às vezes por baixo, outras vezes posta de parte.

O doutor Rodrigo sabia que a Suzete e o Filipe tinham um caso. Não terá sido sequer o último da firma a sabê-lo, como a tradição diz que é costume. Só que dava-lhe jeito que tudo continuasse exatamente assim: enquanto a mulher se entretinha com os cabelos ao vento Atlântico, junto ao mar do Pinhal de Leiria, o doutor Rodrigo ia em viagens de negócios normalmente curtas, mas não demasiado. Austrália, África do Sul, Uruguai, Brasil e Argentina, México, Canadá, Cabo Verde e aquelas nações das Caraíbas que uma pessoa nem sabe dizer o nome nem encontrar no mapa, porque aquilo é tudo ilhas muito pequeninas. Com ele seguia sempre uma assistente, claro. Normalmente, faziam duas, três, vá lá, quatro viagens, e depois a moça ou mudava de departamento, ou mudava de emprego. 

O doutor Rodrigo nunca foi amigo do tédio, muito menos da repetição. E é curioso que tenha sido precisamente a repetição aquilo que lhe deu cabo do casamento - um casamento que mais parecia um acordo de cavalheiros celebrado entre marido e mulher: tu fazes a tua vida, eu faço a minha, gerimos investimentos, poupanças e a educação dos filhos em conjunto. Um paraíso, um negócio de sonho. Porém, um dia chegou ao escritório a Soraia, que usava camisas coloridas e sedosas, daquelas que não se colam às curvas do torso, mas que as revelam por pousarem sobre elas com uma ligeireza fina, serena e distinta. 

A Soraia é hoje doutora Soraia, diretora de vendas - ficou também com o lugar da Suzete, não lhe bastou ter-lhe roubado o marido. A doutora Suzete não aguentou o vexame: depois de mais de duas dezenas de viagens de trabalho, cada vez mais longas e para cada vez mais longe, o doutor Rodrigo nomeou a Soraia "diretora de projetos futuros". Inventou um departamento só para poder nomeá-la diretora de qualquer coisa - nesta casa temos diretores de tudo e para tudo, às vezes fico com a sensação de que, com tantos diretores, nem sei como é que o trabalho aparece feito, porque, vamos lá, se todos são diretores, quem é que efetivamente trabalha? 

Eu nunca fui diretora de nada, estou muito bem como estou, e sou casada desde o fim do liceu com o mesmo Alfredo de sempre, já não sei bem se por amor, se por comodismo. O que sei é que não ando aqui para me queixar. Se fosse para mudar a vida, tinha mudado enquanto a vida estava toda à minha frente, não seria agora, à beira dos sessenta que me ia pôr a pensar nisso. Mas, voltando ao assunto: a doutora Suzete, que aceitava praticamente tudo o que o doutor Rodrigo fazia, até porque também ela fazia o que tinha a fazer, não suportou aquela ascensão às claras da garota nova, a tal Soraia, oriunda duma família de retornados do Lobito e dona de um porte capaz de fazer parar o trânsito - digo porte e refiro-me ao conjunto, ao global: do traseiro redondo e portentoso ao saracotear das ancas, como se tudo aquilo se dependurasse duma cintura fina, esculpida num corpo ao mesmo tempo delgado e atlético. Um anjo moreno, como aqueles da Victoria’s Secret, só que em modo administrativa pronta para progredir na carreira.

Tudo isto aconteceu uns poucos anos depois de o doutor Filipe começar a engraçar com a Beatriz, acabando com o idílio dos fins de semana de retiro para repouso em São Pedro de Moel. É natural que a doutora Suzete não aguentasse. Ficou deprimida, disse ela. Foi ao médico, meteu baixa psiquiátrica, primeiro, e depois meteu os papéis para a reforma antecipada. Diz que saiu da firma com os bolsos bem recheados. Contudo, foi daqui sem amor: nem moderno, nem antigo.

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