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Histórias de Amor Moderno: “O Filipe diz que já tinha ouvido falar de mim quando me conheceu”

“O Filipe cresceu num subúrbio sossegado e quase chique a norte de Lisboa, no continente. Ou seja, a qualquer coisa como mil e quinhentos quilómetros de distância de mim.” Todas as semanas, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: @IMDB/ Past Lives
15 de novembro de 2024 às 15:45 Maria Olívia Sebastião

Ricardina não é um nome fácil de ostentar, não em criança. "Tens nome de velha", diziam-me os mais bondosos com um bocadinho de maldade. Os outros diziam-me coisas muito piores. Fui gozada muitas vezes ao longo dos primeiros anos de escola, o que levou a que, talvez no quinto ou no sexto ano, a alcunha Ricky tenha pegado. A Filomena, amiga desde o primeiro ano, colega de carteira, vizinha que vivia na mesma rua que eu em São Roque, Ponta Delgada, começou a chamar-me assim ainda na escola primária, mas era a única a fazê-lo. Foi só um bocadinho mais crescidas - já quando leitoras da Bravo, apreciadoras das All Star e fanáticas dos Guns ‘n’ Roses - que o resto da turma seguiu o exemplo da Filomena e passou a chamar-me Ricky. 

Este apontamento do nome não tem grande importância. Hoje, toda a gente me trata por Ricardina, normalmente, professora Ricardina, ou ainda "stôra" Ricardina. Quase ninguém me chama Ricky. Além do Filipe, o meu marido, há duas ou três pessoas da família que o fazem. Perdi contacto com a Filomena desde que foi estudar para o continente e não voltou a S. Miguel. Na época, trocámos alguns telefonemas e uma mão-cheia de cartas. Ao fim de dois anos, deixei de saber dela. Quando a procurei, tempos mais tarde, através das redes sociais, compreendi que a vida nos separara o suficiente para que a cola da infância que nos unia tivesse perdido a força e o efeito. Aceito que seja o normal progresso da vida, que o caminho que cada um faz se depare com veredas, e que cada uma delas implique uma escolha. Ao fim de algumas escolhas, se nos formos afastando na direção oposta à de alguém, será difícil retomarmos o caminho da aproximação, do regresso ao que fôramos com essa pessoa ou para ela. 

O Filipe, portanto, uma das raras pessoas que ainda me chamam Ricky, diz que já tinha ouvido falar de mim quando me conheceu. Que tinha ouvido falar da Ricky quando andou na escola. Importa sublinhar que o Filipe cresceu num subúrbio sossegado e quase chique a norte de Lisboa, no continente. Ou seja, a qualquer coisa como mil e quinhentos quilómetros de distância de mim. Quando me disse que "já tinha ouvido falar da Ricky", e que tinha uma vaga ideia de quem era eu, quis saber como e porquê. Explicou-me que o pai, oficial da marinha, havia passado por uma série de postos móveis ao longo da carreira, alguns nos Açores. Um deles, com uma duração de três ou quatro anos, fora precisamente na ilha de S. Miguel. Como se tratou de uma missão de longa duração, decidiu trazer com ele a família, no caso, a mulher e o filho pequeno. Que tinha a mesma idade que eu tinha quando chegou à ilha: 12 anos. 

Conheci o Filipe há 15 anos. Ambos tínhamos então 25. Foi tudo por causa de trabalho. Ele era estagiário de uma empresa de estudos agrícolas, eu era professora. Não sei ao certo o que levou a que nos cruzássemos no mesmo encontro, não terá sido o background académico comum - que não era nada comum, de resto: eu, inexperiente professora de línguas; ele, engenheiro agrónomo em processo de acabamento. Possivelmente, fôramos convidados para trabalhar numa dessas feiras regionais cuja missão é promover os Açores como destino, ou mostrar o arquipélago como grande produtor de uma coisa qualquer, queijo, ananases, chás, atum, bifes de vaca. Provavelmente, nenhum de nós foi pago. Inevitavelmente, encontrámo-nos no buffet a beber cervejas regionais e eu disse-lhe o quanto detestava os continentais. 

Eu não detesto os continentais. Na altura, era muito mais nova, inexperiente e menos diplomática. Além disso, quase todas as minhas amizades de escola tinham ido para universidade para Lisboa, para o Porto, para Braga ou para Coimbra. Poucos voltaram. Senti-me abandonada, depois de ter crescido na ilha, ainda foi na ilha que me formei e por cá fiquei. A ideia do continente fazia-me sentir pequena. Aos 25 anos, visitara Lisboa uma vez e tinha feito duas vezes férias no Algarve, ambas com os meus pais. Pouco conhecia desse território, o continente, para mim pouco mais mitológico. Naturalmente, desenvolvi preconceitos em relação aos seus habitantes. Para mim, eram todos ignorantes turísticos que chegavam a São Miguel em busca de barrigas de atum, fotografias nas Sete Cidades e banhos quentes de água sulfurosa nas Furnas, onde faziam questão de comer cozidos tradicionais, cozinhados em buracos na terra - quando o eram - e vendidos a preços exorbitantes. Uns básicos, portanto. 

O Filipe respondeu-me que também não gostava assim tanto de viver no continente. E então prestei-lhe atenção. Acrescentou que, na verdade, depois de terminada a licenciatura, decidira desenvolver os estudos e, quiçá, a carreira profissional no arquipélago, de preferência na ilha, precisamente para se livrar da vida do continente. Quando lhe perguntei porquê, disse-me simplresmente que as melhores memórias da adolescência que guardava eram todas de S. Miguel. "Mas tu cresceste aqui?", inquiri com surpresa. "Vivi cá dos 12 aos 15 anos", revelou. 

Há uns tempos, no cinema, vi um filme chamado Vidas Passadas, que contava a história de um rapaz e de uma rapariga, ambos coreanos, que a vida tratou de separar com toda a naturalidade. O filme é muito bonito, mas a história não tem nada que ver com a minha. Só o menciono porque houve uma palavra coreana que me ensinou e que guardei: inyeon. Se não me engano, significa destino ou providência, mas é especialmente aplicada às relações entre pessoas. Inyeon refere-se, portanto, a pessoas que a vida vai cruzando, mais ou menos intencionalmente, de acordo com aquilo que pode ter acontecido em vidas passadas.  

Inyeon é o que pode explicar que, hoje, 15 anos depois de nos termos conhecido - e de termos casado, e de termos dois filhos lindos e felizes -, eu e o Filipe sejamos o resultado de um ou de vários desencontros ou quase-encontros de há praticamente trinta anos. De um tempo em que me chamavam Ricky e que eu não sabia quem era o Filipe. O Filipe, uma das muito pouco pessoas que ainda chama Ricky a esta professora Ricardina. E eu gosto de acreditar que ele regressou à ilha só porque, mesmo sem nunca me ter conhecido, mesmo sem saber se eu existia realmente, veio à minha procura. 

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado. 

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