O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Histórias de Amor Moderno: “O que acontece no escritório, fica no escritório”

“Entre acusações, revelações e insinuações, quem tinha segredos de secretária e horas extra, começava a sentir-se cada vez mais encurralado.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / 'The Assitant'
17 de janeiro de 2025 às 14:47 Maria Olívia Sebastião

É impressionante o tanto que cabe num caixote de cartão. E é esmagador o que fica para trás por não caber em lado algum. Os cadernos de notas, as canecas onde antes púnhamos as canetas, as canetas que lá costumavam estar dentro, fotografias dos colegas e da família, das viagens e dos jantares, lápis e afia-lápis, um furador dos grandes e outro dos pequenos - "estes, lamento, mas levo-os comigo" -, nada menos do que quatro agrafadores, um pequeno, dois médios e um grande e robusto - "e estes também os levo, ah, não quero saber, não fui eu que os paguei, mas fui eu que os escolhi" -, e eu a divagar na minha contemplação, intrigada com toda a situação, mas principalmente com a extravagante fixação das pessoas por certos objetos. Num escritório, o agrafador é um ícone que ninguém deixa ficar na hora da partida.

Ver a Salomé, até então a minha melhor amiga na firma, a encaixotar os pertences antes de se ir embora definitivamente fez-me pena, apesar de tudo. Ao mesmo tempo, trouxe-me algum alívio. Observava-a enquanto ela encaixotava todas as tralhas e sentia uma espécie de conforto. Não terá sido certamente Schadenfreude, não sinto prazer no mal dos outros, nem mesmo na tristeza específica da Salomé. O meu pai costumava dizer que "na morte só há um consolo, que é sabermos que ainda cá estamos, que aquele se foi e nós ficamos". E eu acredito que o meu sentimento fosse semelhante a esse que a sabedoria popular, pelas palavras do meu pai, tão bem descrevia. "Antes tu que eu."

"A Carlinha da contabilidade gosta muito de contar de quatro." A mensagem estava escrita num post-it colado à máquina de café. De manhã, quando nós, os funcionários, chegámos à empresa, lá estava o papelinho amarelo com uma declaração que ninguém sabia se havia de levar ou não a sério. Uns acharam graça, outros consideraram piada de mau gosto. A Carlinha da contabilidade não deu muita importância, fez só uma cara de desagrado, mas ligeiro. Não houve dramas.

O post-it ficou colado na máquina. Ninguém o retirava, nem as mulheres da limpeza. Só que depois apareceu outro, desta vez num dispensador de água no corredor que vai dar à copa. "Marquinho do meu coração, os decotes da diretora dão-te alguma coisa que me ajude com a rima?" A nova mensagem suscitou risota e piadas - estas, sem dúvida, de mau-gosto. Mas todos nos rimos, quem não riria? A vulgaridade tem o condão de fazer rir toda a gente, do espírito mais simples ao mais sofisticado. O Marco é um rapaz dos seus trinta anos. Já não é bem jovem, mas também ainda não o vemos como um homem, pelo que nos rimos não dele, propriamente, mas fazendo pouco do que ainda resta daquele rapazinho meio acanhado. Até porque é verdade que se derrete um bocadinho com a diretora Inês Vilaça. A mensagem deixou-o naturalmente embaraçado.

A diretora não disse nada em público, mas soube-se que chamou o Marco ao gabinete. Não se sabe com que finalidade, especula-se muito e em diferentes direções - que o chamou à atenção, que se insinuou a ele, que o reconfortou dizendo-lhe que não ligasse. A seguir ao almoço, a Patrícia dos Recursos Humanos enviou um email a toda a gente advertindo "o" ou "a" responsável pelos post-it que podia haver consequências. "Não queremos saber quem o fez, mas sugerimos que parem antes que haja problemas sérios. Atentamente." Numa espécie de remate ao e-mail, depois de segura de que a maioria já o tinha lido, a diretora Vilaça saiu do escritório e dirigiu-se ao dispensador de água. Leu a mensagem, largou um sorriso distraído, arrancou o papelito, amarrotou-o e deitou-o ao lixo. "Palermas", disse, e retornou ao gabinete.

Na manhã seguinte, toda gente chegou ao escritório com alguma ansiedade - da boa e da má. Por um lado, havia expectativas quanto a mais mensagens mesquinhas, boatos tão maliciosos quanto infantis, denúncias encapotadas, mentirinhas venenosas de bastidores; por outro, cada um à sua maneira tinha medo de ser o próximo alvo, o nome seguinte num post-it. Quando se percebeu que não havia post-it, notou-se uma certa desilusão generalizada. O ser humano é assim mesmo, curioso e ávido de intriga.

Só que, a meio da manhã, alguém se chegou perto de uma das impressoras e exclamou "olha!", e depois riu-se a bom rir. "Qual o melhor instrumento de escrita? A Vânia prefere marcadores, daqueles mais grossos." O post-it do dia estava servido e caprichava na vulgaridade. A Vânia, coitada, a pessoa mais tímida na base de dados, não gostou. Pegou nas coisas e saiu. "Quem quer que ande a brincar com estas porcarias devia ter juízo e mais respeito pelas pessoas", sentenciou, antes de bater com a porta. Claro, aquela saída dramática atiçou ainda mais gargalhadas. Não estou a dizer que fui uma dos que se riram. Por outro lado, também não estou a negar que o tenha feito. O que acontece no escritório, fica no escritório.

Quem tem telhados de vidro não pode sentir-se à vontade numa situação destas. Os post-it iam continuando a surgir com cadência irregular e, entre acusações, revelações e insinuações, quem tinha segredos de secretária e horas extra, começava a sentir-se cada vez mais encurralado. Desta vez, não estou a pôr-me de fora do grupo. Pelo contrário, eu era possivelmente uma das pessoas mais assustadas com toda aquela brincadeira. Ao início, teve a sua graça, mas, com o apertar do cerco, temia que o meu nome não demorasse a aparecer.

"A Zeza gulosa gosta de se deitar debaixo do engenheiro." A mensagem, colada na porta do frigorífico - não é inocente, não pode ser inocente, todos sabem a importância e o valor de uma mensagem afixada na porta de um frigorífico -, não fez ninguém gargalhar sonoramente. Pelo contrário, os sorrisos escondiam-se por trás das mãos e os comentários eram feitos em cochichos, em sussurros e com risinhos. O engenheiro é o administrador, e é casado com a diretora. A Zeza sou eu. E a história era verdadeira.

Eu e o engenheiro tínhamos um caso. Pelos vistos, não éramos tão discretos quanto julgáramos. Quando me apercebi do que se passava, fui-me sentar no meu lugar tão calmamente quanto possível. Debaixo do rato do computador, outro post-it. Este era dirigido a mim, só a mim, não era para os olhos de todos. "Pensavas que isto era tudo brincadeira, não é? Olha que o melhor ainda está para vir."

Havia que resolver a situação. Eu tinha demasiado a perder. E o Cláudio - o engenheiro - ainda mais, pois tinha a sua família, o seu casamento, o seu estatuto. Decidi agir. Vi uma vez num documentário daqueles sobre a natureza que as zebras ou os gnus ou os impalas, enfim, uns desses bichos da selva, para fugir aos predadores criam o caos. Misturam-se todos uns com os outros e correm em direções opostas. Baralham-se, substituem-se, trocam de lugares, tudo isto a alta velocidade. Os felinos que os perseguem, os leões e outros do género, não conseguem fixar-se num só animal e então acabam por perder o foco, como se diz em linguagem empresarial, acabando por não conseguir capturar presa alguma. Achei que a estratégia era adequada e decidi aplicá-la com as devidas adaptações. Iria espalhar diversos post-its com conteúdos maioritariamente aleatórios. Desse modo, tiraria o crédito e a atenção à mensagem sobre mim. De caminho, se tivesse sorte, ainda acabaria por revelar o autor de todas mensagens as anteriores.

A diretora reuniu-se com o engenheiro. Não houve gritos, mas sentia-se a tensão cá fora. Momentos mais tarde, a Patrícia dos RH entrou no gabinete de Inês Vilaça. Alguma coisa estaria para acontecer. Passados alguns minutos, chegou um email. "O que se tem passado é inaceitável", blábláblá, "e, por isso, contra toda a filosofia e código de conduta desta empresa, iremos tomar medidas preventivas e restritivas." Não sei ao certo que medidas seriam essas, mas, pela maneira como punham as coisas, calculei que fossem apertar a vigilância.

Não me deixei intimidar e avancei com o meu plano. Fui discreta. Às vezes, a melhor maneira de se ser discreto é fazer-se tudo às claras, nas barbas do público, como os ilusionistas fazem. Durante o dia, com todos presentes, aproveitava e colava os post-it em sítios onde não conseguissem isolar-me e acusar-me. Usei a minha imaginação mais selvagem e bárbara para agitar ainda mais as coisas. Houve vítimas, claro. Conhecia alguns boatos, que usei para criar confusão. Infelizmente, a história da relação entre o Artur e o Filipe era mesmo verdadeira. O Artur demitiu-se. Sinto remorsos, não o devia ter feito, mas, se me serve de aconchego à consciência, fi-lo para me salvar. Como um gnu, ou uma zebra. Em simultâneo, a pessoa que deixava os post-it originais parecia ter entrado numa vertigem demolidora. As mensagens tornaram-se cada vez mais pesadas, mais ordinárias e mais maldosas.

Quando a Salomé foi chamada ao gabinete da diretora, ela sabia que ia ser demitida. Fora apanhada, era ela a autora das mensagens malditas, o que a denunciava igualmente como autora da mensagem sobre mim e o engenheiro. Portanto, para ela eu era a "gulosa". Porque é que, de entre todas as pessoas, tinha de ser a Salomé a denunciar-me, e logo daquela maneira grosseira? Quando passou por mim a caminho do gabinete da diretora, sorriu-me. Não reagi. Inspirou fundo, como que a ganhar confiança, e avançou. Quando de lá saiu, notava-se que tinha estado a chorar, mas vinha de novo a sorrir. Piscou-me o olho e disse baixinho "desculpa, desculpa", ainda com lágrimas nos olhos. Continuei impávida e sem expressão. Não queria interagir com ela. Contudo, não conseguia deixar de sentir pena.

Na altura, não percebi o alcance e a gravidade de tudo aquilo. Enquanto a observava a arrumar os caixotes e me interrogava acerca do que levara Salomé a fazer tal coisa, um sentimento de compaixão crescia em mim. Seria preciso alguém muito infeliz, muito insatisfeita com a vida para fazer o que ela fizera. Foi só depois de regressar a casa nesse dia que comecei a compreender na totalidade o que acontecera. Levei a mão à carteira e senti lá dentro um papel com cola. Um post-it.  Uma última mensagem da Salomé, deixada sem que eu desse conta. "Zeza, sua gulosa, não passas de uma paixoneta do engenheiro. É de mim que o Cláudio gosta. Eu não te disse que o melhor estava para vir?"

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

Leia também
As Mais Lidas