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Histórias de Amor Moderno: “Sozinha e à beira dos 50, uma mulher fica diante de sentenças pouco ou nada abonatórias."

“Ou já temos amigos e amigas no contexto, ou corremos o risco de ser aquela cota lá ao fundo a ir direito a um grupo e a tentar colar-se a ele.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
19 de outubro de 2024 às 14:06 Maria Olívia Sebastião

Eu ia a caminho da repartição, ainda não eram oito da manhã, portanto, quando recebi a mensagem: "Bom dia Cila, precisamos de conversar." O Fernando nunca me tratou por Cila. Chamou-me praticamente tudo, até Cecília, que é realmente o meu nome. Cissa, Chixa, Chuxa, minha querida, meu amor, amorzinho, em dias de fúria melosa "môr", ou até "môre" - porém, quase sempre me chamava Cissa ou Cissy, como se eu fosse princesa (e eu nunca quis ser princesa, a sério que não). Também me chamou outras coisas, mas essas ficam entre nós. Agora, aquele "Cila" numa mensagem matinal madrugadora não podia ser bom sinal.

Eu à mesa, sozinha, num restaurante quase chique, daqueles de toalha branca de pano, guardanapo de pano, tudo tecido de uma maneira que qualquer pessoa que esteja sozinha se sinta ainda mais só. Tenho um copo de vinho diante da minha mão direita. Percorro com os dedos o pé do copo até lhe chegar ao bojo. Não sei porque o faço. Mas não me restam muitos mais gestos na solidão de um restaurante cheio de gente organizada, bem-sucedida, com idade para ser alguém - e que, em princípio, é mesmo. E eu também. Só que eu estou sozinha e as outras pessoas não.

Tenho quase 50 anos. Não é muito. E não faz mal, os 50 são os novos 47, já li algures. Não vamos entrar em pânico. Que mal faz mais uma ruga, mais uma madeixa branca, mais um olhar cansado, uma dioptria, uma estria, um dia a menos no mundo, outro dia a seguir a esse, nenhum deles com sentido? Não faz mal, nenhum. É isto que nos dizem quando estamos fracas e nos tentam mostrar como devemos aceitar o que a vida nos dá. "Que mal tem? Qual é o problema?" Eu digo-vos qual é o problema: o tempo, como diz o cliché, não volta mesmo para trás. E eu, eu que tenho quase 50 anos, tenho menos tempo agora do que tinha há 20 anos. Há 20 anos, eu podia errar, espatifar-me, equivocar-me, ser enganada, ser dispensada, trocada, deitada fora. Porque há 20 anos tudo era possível. Agora, não. Agora nem tudo pode ser. 

O Fernando disse-me que ia seguir a sua vida, e seguiu mesmo. E eu respeito-o por isso. Foi sério. Não sei de que era feita a insatisfação dele, nunca mo explicou em detalhe. Mas senti respeito pela sua frontalidade. Admitiu que estava saturado. Assumiu que a vida que levávamos o fazia infeliz. Disse-me que precisava de amor, "mas eu amo-te, eu sempre te amei, Fernando". Respondeu-me que não era desse amor que falava. Era do amor que nascia dele - e ultimamente não havia amor que lhe brotasse do aparelho circulatório - que o Fernando sentia falta. Eu não lhe fazia mexer as células, ou lá que micróbios são esses que as pessoas usam para sentir o amor. Eu era-lhe indiferente. Pegou numa mochila e numa mala de viagem. Foi tudo o que levou. Foi-se embora como um poeta russo. Deixou para trás uma imensa mágoa existencial e o vazio da sua presença. Pouco mais. Talvez uns pares de meias.

Uma pergunta que me fazem muito desde há vinte ou trinta anos: "Então e para quando um bebé?" Com o tempo, amadureci; com a maturidade, modifiquei as possibilidades de resposta. Inicialmente, só me apetecia explodir, gritar "que pergunta mais estúpida!" Nunca o fiz, nunca gritei essa frase, o que pode explicar a quantidade gigantesca de explosões que tenho aqui dentro por explodir. Cápsulas, escudos, todo o tipo de proteções emocionais que fui usando, criaram em torno das possíveis erupções contra a pergunta uma espécie de versão filtrada da minha ira. Agora, ao fim de tantos anos, já ninguém me pergunta quando é que tenho um bebé. Estou velha. Ninguém espera que eu tenha um bebé. E logo agora que eu tinha resposta para a pergunta. "Para quando um bebé?" "Para ocasiões especiais. De resto, dispenso." Deixaria pessoas confusas, disso estou segura. A minha sensibilidade para o absurdo costuma deixar marcas. "Cissa, por amor de Deus, não digas essas coisas", suplicava-me o Fernando, no tempo em que ainda era de súplicas, sempre que eu abria a boca sem moderação ao pé de gente que não fosse a minha - normalmente, eram familiares dele.

O Fernando deixou-me e eu fiquei sozinha. É uma grande chatice uma pessoa ficar sozinha. Aos vinte anos, aos trinta anos, até aos quarenta, se calhar, ficar sozinha pode ser uma libertação, uma nova oportunidade. Contudo, à beira dos cinquenta, uma mulher fica diante de sentenças pouco ou nada abonatórias. Andar à caça é meio ridículo, mas prosperar entre amigos é muito improvável. Ou já temos amigos e amigas no contexto, ou corremos o risco de ser aquela cota lá ao fundo a ir direito a um grupo e a tentar colar-se a ele, de copo na mão e um sorriso a dizer "opá, gosto tanto de vos ver, adoro a vossa vibe". Para começar: não, não adoro. Vocês são velhas ridículas e ressabiadas, que andaram a vida inteira a rejeitar o que podia ter, a ser picuinhas nas vossas escolhas, por aí fora. Eu não fui assim. Eu não sou isso. Eu não sou vocês. Eu vivi mais de vinte anos com um homem que amei - e que ainda talvez ame - e só aqui vim parar por azar, por acaso, por maldição. Não andei a gozar a vida com quem me calhasse, como vocês fizeram. A minha vida não foi de galdéria. Não sou púdica, e nunca fui, mas não me venha, com loucuras nem promiscuidades. Gosto de saber com quem me deito, suas vadias. Por isso, poupem-me nos olhares de desdém.

Fechei-me em casa. Eu, a minha cozinha, a televisão, os livros, filmes no computador. O meu universo, de repente, reduzido a uma partícula ainda mais pequena do que o infinitésimo da Via Láctea a que estava condenada à partida. Eu, menos do que uma gota de água num mundo que é muito, muito menor do que um oceano - mais pequeno do que uma piscina olímpica. Que tristeza de mim, sinceramente.

E na quarta-feira rebentaram-me as águas. Não literalmente, todavia literalmente. Não se me rompeu o saco amniótico, o meu problema não foi gravidez. O meu problema foi muito grave: rebentaram-me o cano da água que liga ao contador dentro do apartamento. Tenho obras no prédio há mais de quatro meses. Partem paredes, reconstroem paredes, e depois abrem-nas de novo. É uma loucura. Mas eu de obras não percebo. Sei que tinha água a jorrar-me cozinha adentro e eu sem solução. Partiram-me novamente a parede, desta vez num sítio mais errado. Chamei o responsável pela obra.

"Sodona Cecília, neste momento não consigo ajudá-la, peço desculpa, o melhor é chamar o piquete da água." Esta foi a resposta do responsável da obra. E eu, entre o desespero e a ira, a fúria e a desistência, abri a porta de casa e deparei-me com a equipa de trabalhadores que ali andavam, a partir e a remendar as coisas nas paredes do prédio. Sem me aperceber, estava a chorar. "Escute", disse alguém com uma voz muito mais grossa do que eu poderia antecipar. Olhei para o lado de onde me vinha o braço que se estendia sobre o meu ombro. Na sua origem, um homem grande. Mais de um metro e noventa, certamente. Sorridente. "O que é que se passa?"

Quando lhe mostrei a parede e o cano e o que a equipa dele tinha esburacado, abanou a cabeça. Pediu que fechassem imediatamente a coluna de água do prédio. E depois perguntou-me se eu não me importava que ele deixasse tudo pronto ainda hoje, ou seja, naquele dia. Nem respondi, tratou logo de justificar-se: "É que venho de Vila Franca e hoje, para chegar aqui, demorei mais de uma hora e meia. Assim, amanhã não precisava de me preocupar em chegar cedo." E eu, que sou de Vila Franca, nascida e criada, estremeci um bocadinho. Respirei fundo. Tentei não falar cedo demais nem demasiado depressa. Mas depois não me contive. "Ai, é de Vila Franca? Olhe, tem graça, o senhor nem vai acreditar."

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado. 

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