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Histórias de Amor Moderno: “Eu senti a mão de um rapaz a invadir-me o corpo”

“Tudo o que aconteceu ali foi a consequência, o culminar de um episódio que acontecera dois meses antes, durante as festas dos santos populares, em Lisboa.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Reuters
07 de junho de 2024 às 16:37 Maria Olívia Sebastião

Nunca mais comi bolas de Berlim. Ainda hoje sinto desconforto e quase repulsa, uma espécie de desgosto diluído e envelhecido em fúria contida, quando, na praia, ouço os vendedores ambulantes, "olha a bolinha de Berlim, bolinha de Berlim". Estávamos em Alvor quando tudo em mim finalmente se desmoronou - ainda me recordo do pregão do vendedor, "Olha a bolinha de Alvor - recomendada pelo senhor doutor!". Eu disse ao Francisco "Chico, apetecia-me uma bolinha" e ele respondeu-me, um pouco aborrecido, "e queres que eu vá lá comprar uma, é isso?" Eu podia simplesmente ter respondido "ó ‘môr, vá lá, apetece-me tanto", enquanto fazia olhinhos de cachorrinha. Mas já estávamos num ponto em que isso não era possível. Nenhuma resposta remotamente romântica ou apaixonada era viável. Todo o chão emocional debaixo de nós tinha desaparecido. "Será que tu nunca és capaz de fazer nada por mim?" Foi assim que comecei. E depois descarreguei tudo - "para que me serves tu", "é a isto que chamas ser homem", "nunca me compreendes, nunca me defendes".

Foi de tal ordem a minha descarga que o Francisco não conseguiu responder. Ficou apenas boqueaberto, a engolir em seco. Ia ficando pálido, os lábios perdiam toda a cor e dos olhos esvaía-se a vida, como se fossem deixando de ver o que havia para ser visto, como se deixassem de me ver e de perceber o que estava à volta, para se transformarem em dois berlindes mortiços, pálidos, sem brilho nem pingo de sangue, só a enfeitar um rosto abstraído, distante e desligado.

O vendedor de bolas de Berlim aproximou-se, "então, a menina não quer hoje uma bolinha de Alvor? Olhe que são recomendadas pelo senhor doutor!", brincou, pela enésima vez. "Deixe aqui todas", disse o Francisco. "Abra a caixa, quero as bolas todas." E passou para a mão do homem um rolo de notas de 10 e de 20. "Ó amigo, isto é muito", disse o vendedor - deviam ser 70 ou 80 euros, talvez mais -, mas o Francisco já se tinha levantado e caminhava no areal em direção ao parque de estacionamento. Foi-se embora. Ficámos os dois sem saber o que fazer, eu e o vendedor, até que eu disse ao homem "olhe, distribua pelas crianças, pelos primeiros que aparecerem e que as queiram, diga-lhes que são oferta". Horas mais tarde, recebi uma mensagem do Francisco: "Deixei as chaves na mesa da entrada. Desculpa, mas não aguento mais."

Nada do que aconteceu ali teve a ver com aquele dia, ou com estar ali, e muito menos com bolas de Berlim, pregões ou apetites. Tudo o que aconteceu ali foi a consequência, o culminar de um episódio que acontecera dois meses antes, durante as festas dos santos populares, em Lisboa. Foi isso que nos destruiu. Foi esse episódio que acabou por revelar coisas que eu nem sabia que tinha em mim. E também por me fazer exigir aquilo que, hoje, compreendo que talvez não fosse justo. Mas que culpa tenho eu? Não podemos passar a vida a culpar quem é vítima. E eu, por mais voltas que se dê à narrativa, fui e sou a vítima - uma vítima do machismo e da toxicidade, da masculinidade tribal e da impunidade dos rapazes que atacam em matilha; uma vítima da normalidade instalada e da mentalidade do "deixa lá isso, não exageres"; uma vítima do silêncio cúmplice dos que, confortáveis e acomodados, pensam "não quero saber, não é comigo"; e uma vítima das raparigas que, como eu, têm de lidar com essa gente e essa mentalidade, mas mesmo assim, por medo ou por procurarem proteção e aceitação, tudo calam e tudo concedem, e ainda me acusaram de ser louca, além de me terem ameaçado, mandando-me estar "mas é caladinha".

O Santo António já tinha passado, mas era um sábado de junho e, por isso, os arraiais de Lisboa ainda continuavam em festa. Eu, o Francisco e mais uma amiga decidimos subir até à Graça para ver como estava a festa na Vila Berta. Mais tarde, viriam outros amigos ter connosco, "vamos ter aonde estiverem", era daquelas combinações fáceis e descomprometidas. No fundo, era só um pretexto para sair, para estar na rua, ouvir música popular de má qualidade e beber cerveja tépida e inflacionada em copos de plástico. Fomos, entrámos pela multidão que enchia a rua estreita, preenchida por mesas, balcões de imperial e ainda um palco, que estava montado na entrada de um dos prédios. A noite estava a ser divertida. Tínhamos petiscado algures, tínhamos conversado muito, desabafado um pouco, bebido uns quantos copos de vinho - ao jantar, o vinho era de qualidade.

No arraial, conseguimos encontrar um espaço onde cabíamos os três, bem próximo do palco. As canções, tão brejeiras quanto ritmadas, tão populares como mal cantadas, animavam o povo, que desafinava e não era exatamente rigoroso a cantar os refrões ao mesmo tempo que saltava de copo na mão ou cumpria a estranha tradição folclórica de fazer um comboio dançante e cantante. Eu, o Francisco e a nossa amiga também estávamos imbuídos do espírito festivo. Até que senti - e senti, mas não consegui identificar logo o que era aquilo, porque uma pessoa é apanhada de surpresa, quando nada o fazia prever. Mas senti, ou creio ter sentido, qualquer coisa a passar-me pelo cimo das pernas, pela barriga, pelas ancas. Pela púbis. E então olhei. E, de novo, desta vez comigo a olhar e a ver, eu senti: a mão de um rapaz a invadir-me o corpo, a apalpar-me, a mexer-me. A mexer-me sem vergonha nem pudor. Num reflexo, afastei-lhe a mão e gritei-lhe, insultei-o. No meio do barulho e da agitação da festa, ninguém percebeu ao certo o que aconteceu. Gritei para o Francisco, chamei-o, "aquele gajo apalpou-me toda", e ele, sem perceber bem o que tinha acontecido, "o quê? Ele fez o quê?", e eu, de novo, "ele apalpou-me! Ele meteu-me a mão!"

No corpo, na púbis, nas ancas, no alto das pernas, por baixo da barriga. Há tantas maneiras de dizer o que foi e onde aconteceu. Foi na vulva. Podia usar muita terminologia, até vocabulário inspirado nas canções ordinárias que os santos populares sempre trazem à tona. Mas não vale a pena. Foi isso mesmo que me fizeram, uns rapazes, não sei se um só, por duas vezes, ou se dois diferentes, do mesmo grupo, cada um na sua vez. Porém, fizeram-no, e fizeram-no ali, diante de toda a gente, em público, à vista de todos e ao abrigo do ruído, das luzes, da música pimba e do álcool a rodos. E protegidos pelo bem-estar geral, pelo conforto de quem não se quer meter, de quem finge que não viu, de quem não tem nada com isso.

"Quem foi?", perguntou o Francisco, e eu, completamente fora de mim, apontei, "foi aquele, acho que foi aquele ali". E ele "mas achas ou tens a certeza?" "Defende-me, porra! Defende-me", foi tudo o que lhe pedi. E ele olhou para o outro, e o outro, no meio da multidão, disse-lhe qualquer coisa, ameaçou-o, e logo os amigos e amigas dele se acercaram de nós e nos rodearam, "sai daqui, puta!", "estás maluca", "está mas é caladinha", "eu mato-vos aos dois" - foi com este tipo de insultos e de ameaças que começarama correr connosco dali para fora e a calar-nos, claro. Mas eu estava fora de mim, estava enfurecida, incrédula, descontrolada, amassada, desesperada, invadida, injustiçada, eu só gritava "defende-me, porra! Defende-me, se és homem" - eu, a feminista, eu, a emancipada -, e o Francisco, pegando-me na mão e levando-me dali para fora, só me dizia "eu estou-te a defender, Miriam, se não saírmos daqui, eles dão cabo de nós, temos de ir embora e depressa".

Nunca mais fomos a mesma coisa. O acontecimento, que podia não ter sido nada mas que foi tudo - porque é o meu corpo, porque é a minha liberdade, porque é o respeito mínimo que se exige, e acima de tudo porque nada disto é justo, mas continua a acontecer e nunca ninguém é obrigado a responder por isso por mais que aconteça e se repita -, mudou por completo as dinâmicas entre nós. Passou a ser como se o Francisco estivesse em dívida para comigo, porque eu fora vítima e ele um sobrevivente incólume. E ele começou a comportar-se como se tivesse sempre alguma coisa a provar-me, como se a sua normalidade o deixasse frustrado por achar que não era suficiente para mim. A verdade é que talvez eu lhe exigisse mais do que ele podia dar. E até aceito que o seu bom-senso nos tenha protegido aos dois, no fim de contas. Só que, quando a injustiça do mundo se abate sobre ti com a cumplicidade das multidões, a impotência deixa de te parecer uma justificação razoável. Francisco, eu só queria que tu me protegesses, porra.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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