Histórias de Amor Moderno: “São dezenas as instruções que lhe dou e ele tem-se mostrado altamente obediente”
“Olhei para aquela figura triste de um homem sem jeito pendurado na ponta longínqua de uma longa trela, absurdamente arrastado por um cão de seis ou sete quilos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Ele veio direito a nós, estava o Pinhão junto a uma árvore a fazer o que os cães fazem quando passam por um objeto que tem cheiros de outros cães. E, mesmo estando o cão de perna alçada, o homem decidiu fazer-lhe uma festa no focinho - nem disse olá, nem perguntou se podia, nada: estendeu a mão e meteu-lha no focinho. O Pinhão rosnou-lhe e tentou a abocanhá-lo. Ele assustou-se, "ai, caramba", e recuou, muito espantado. "Você devia ter mais mão neste animal", disse-me, a reclamar. "Desculpe?" "Sim, se não tem força para passear o cão, devia escolher um mais pequeno e adequado à sua estatura." Durante alguns momentos nem consegui responder-lhe em condições. "Se não, arranje um homem que possa com ele. Esse cão é claramente robusto demais para si."
Não me contive. "Ouça, eu não sei quem o senhor acha que é, ou pensa que eu sou, mas não vou aturar desaforos de um desconhecido que decide meter a mão no focinho do meu cão, sem mais nem menos", disse-lhe. E depois, mais irada, "meta-se na sua vida e, já agora, tente aprender qualquer coisinha sobre cães". Eu estava completamente a ferver por dentro, mas o homem decidiu insistir. "Tenha mas é mão no seu cão e aprenda a cuidar dele, ensine-o, eduque-o. Ele podia ter-me dado uma dentada!" Ai, quando ele me disse isto, a adrenalina subiu de tal forma que me desligou a censura. Virei-me para trás: "Podia, não: devia!" Ficou boquiaberto, estarrecido. "A culpa é minha, que, ao contrário do que o senhor diz, o eduquei - e eduquei-o precisamente para não morder, mesmo que lhe apareçam pela frente cretinos como você."

Ter um cão é ficar exposta, é dar à rua um pretexto para fazer de nós o centro das atenções. Quanto maior for o cão, mais atentos serão os olhares. O tamanho do bicho não é, infelizmente, proporcional ao respeito que inspira nos transeuntes. Se for bonito, de certo modo exótico e tiver um ar patusco, o mais provável é que um grande número de pessoas desrespeite o espaço e o sossego do animal. Cada passeio é um desafio pedagógico em que tentamos evitar as festas inconvenientes e as aproximações bruscas. Já ninguém pergunta como dantes se "ele morde?", e é uma pena que esse hábito tenha caído em desuso, por mais ingénua que fosse a pergunta. "Só quando fecha a boca", respondiam os mais velhos quando eu era miúda. Hoje, sou eu que tenho de alertar os atrevidos, dizer-lhes "cuidado, ele pode morder".
Ficam muito surpreendidos quando os repreendo. Parecem pensar "como é que este urso de peluche gigante pode fazer mal a alguém?" E lá dou por mim a explicar que é um cão, um animal; que reage aos instintos, que pode não gostar de um odor, ou de um gesto, ou assustar-se com um barulho; que há um sem-número de possíveis eventos capazes de o desconcertar, que um humano nunca controla a 100% o comportamento de um animal e que é preciso considerar essa margem de erro. Normalmente olham para mim com estranheza e até com desconfiança, porque o Pinhão fica ali sentado ao meu lado, muito obediente e com ar sorridente de cão que quer é mimos e brincadeiras.
Os nossos passeios mais longos são os matinais, precisamente porque a probabilidade de nos cruzarmos com pessoas inconvenientes é mais baixa. Ao fim da tarde, há mais gente a passear e mais cães com trela, o que torna tudo mais difícil nesta zona da cidade. Gosto de manter a rotina com o Pinhão e, como sei que ele se sente seguro ao repetir os lugares por onde passamos e que ele já conhece, repito trajetos. Tenho dois ou três percursos habituais, vou variando entre eles sempre sem sair demasiado da nossa zona. Isto significa que há pessoas com quem nos cruzamos com uma certa regularidade. Algumas já nos conhecem e saúdam o Pinhão. Ele fica contente, são amigos que lhe fazem festas. Depois há outras pessoas com quem nos cruzamos, mas com quem preferíamos não nos cruzar. Por exemplo, aquele cretino que lhe meteu a mão no focinho no outro dia. E que agora teve a triste ideia de adotar, ele próprio, um cão. Um Jack Russell, pequeno e claramente mais enérgico do que ele estava à espera.

Uma vez, passámos por ele, olhei para aquela figura triste de um homem sem jeito pendurado na ponta longínqua de uma longa trela, absurdamente arrastado por um cão de seis ou sete quilos e a gritar "Lenny, Lenny, para Lenny, espera Lenny, anda cá, Lenny". Quando o ouvi dizer "Lenny, o dono chateia-se consigo, ai ai ai", não consegui segurar a gargalhada. E ele, arrastado pelo seu minúsculo canzarrão, passou por nós, muito atrapalhado, e disse "bom dia, bom dia". Não resisti e gritei-lhe "devia escolher um cão mais adequado à sua estatura!" Olhou para trás com um ar furioso. "Ou então arranjar uma namorada que possa com ele!"
Passaram-se alguns dias e eu via frequentemente, durante os passeios matinais, aquele homem. Parecia fugir de nós, metia-se sempre lá para o fundo da rua ou para o fundo do parque, constantemente em dificuldades, tentando controlar o seu cão pequeno mas muito enérgico. Fui sentindo uma certa compaixão. A primeira impressão que tive dele foi terrível, é verdade. Mas não foi assim tão grave e era preciso que alguém fizesse qualquer coisa para que ele deixasse de fazer figuras ridículas. Numa dessas manhãs, decidi aproximar-me, "o que é que você está a fazer?" Ficou atrapalhado, como quase sempre ficava de cada uma das poucas vezes que comunicámos. "Estou a ensinar o meu cão", respondeu-me, muito assertivo. "E está a correr bem? É que, visto daqui, parece-me que está a sentir algumas dificuldades." Não respondeu, mas deu para perceber que os seus olhos suplicantes foram mais fortes do que o orgulho, que acabou por engolir. "Não percebo nada de cães", admitiu. "Ah, não me diga. Não tinha percebido, quase nem se nota…" Riu-se, obviamente envergonhado, mas ao mesmo tempo aliviado.
Chama-se André. Estendeu-me a mão como pôde, ou seja, muito atrapalhadamente, enquanto tentava segurar o Lenny, que não parava de ladrar para o Pinhão - e o Pinhão, impávido e sentado, limitava-se a olhar para ele com curiosidade. "Sou a Clara", respondi. "Experimente usar uma trela mais curta. E traga uns biscoitos pequenos para chamar a atenção do Lenny quando for preciso." Agradeceu o conselho e disse, apontando para o Pinhão, "gosto muito dos São Bernardo". Respirei fundo. "André, o Pinhão não é um São Bernardo." Olhou, intrigado. "É um Bernese", esclareci. "Ó, é parecido, faz lembrar." Não é lá muito parecido, mas não quis insistir. Disse-lhe para trazer uma trela mais curta na manhã seguinte e prometi ajudá-lo a partir daí.

O André cumpriu. Apareceu com uma trela curta, foi pontual e trazia treats no bolso. Tudo certo. Pedi-lhe que nos tratássemos por tu. Somos sensivelmente da mesma idade. Passei-lhe a trela do Pinhão para a mão e instruí-o para que a segurasse junto à coleira, com firmeza mas sem puxar nem forçar. E pedi-lhe a trela do Lenny. Passeei-o tranquilamente e sem dificuldades. "Qual é o truque?", perguntou-me. Disse-lhe que não havia truque, que bastava descontrair e estar segura do que fazia. O cão seguiria os meus passos e as minhas indicações, tudo fluiria. Depois trocámos. E fui assistindo a alguns progressos.
O André e o Lenny passaram a integrar a nossa rotina matinal. Passeamos juntos. Trocamos, por vezes, fica ele com o Pinhão e eu com o Lenny. Sinto-me menos solitária. O Pinhão é uma excelente companhia, mas, por melhor que seja ter um cão, sentir a proximidade de um humano é diferente. E ainda é melhor quando sinto que posso educá-lo. "André, mantém a passada, não osciles; André, diz-lhe que espere, não pode ir logo aos biscoitos, tens de o pausar." São dezenas as instruções que lhe dou e ele tem-se mostrado altamente obediente. Eu digo-lhe estas coisas e ele ri-se. É extraordinário o progresso que tem feito, desde a arrogância do primeiro dia até à docilidade do ponto em que se encontra hoje. É um bom rapaz. Um dia destes convido-o para jantar. Gosto dele.
* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado

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