Histórias de Amor Moderno: “Também solitária, decidiu por razões misteriosas deixar-se encantar por mim”
“Respondeu-me muito secamente que o que lhe faltava era ‘esse tal companheirismo’ e que não me exigia nada que eu não estivesse disposto a dar-lhe.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

A Praza do Obradoiro, com a Catedral ao fundo, é ainda mais encantadora com aquela luz acastanhada, de um doirado meio rústico, tão típica dos finais de tarde no fim do verão. Não era a primeira vez que visitávamos Santiago de Compostela, eu e a Matilde. Na verdade seria talvez a quinta ou sexta vez que o fazíamos juntos. Quase todas as nossas visitas à pequena porém magnífica cidade galega foram feitas em excursões. Mas não importa a quantidade de vezes que se visita Compostela, pois cada uma é única, cada caminho, a pé ou em excursão, é uma aventura diferente e cada chegada é irrepetível.
E estávamos nós neste momento contemplativo, de mãos dadas como os namorados enquanto são jovens e conservam a beleza que os faz acreditar que tudo é possível, quando chegaram junto de nós dois amigos, um casal que costuma também fazer estas excursões e com quem já partilhámos histórias e viagens, confidências e muitas boas memórias.

Quando se chega a uma certa idade, como é o meu caso - a Matilde é mais nova do que eu ainda um pedaço, pouco mais de dez anos -, é neste tipo de atividades que acabamos por travar novos conhecimentos. Já não temos a genica para saídas à noite nem para grandes festivais, duvido até que eu conseguisse sentir prazer caso frequentasse esse tipo de eventos. Tentei adequar-me à circunstância de me tornar mais velho. Divorciado, senti-me só. Ser solitário agradava-me, mas ficar sozinho nem tanto. Foi então que decidi começar a embarcar nestas excursões, muitas vezes sem o menor interesse no destino - como se costuma dizer, o que importa não é a chegada, mas o caminho até lá.
E foi num desses muitos caminhos que tive a sorte de me cruzar com a Matilde, bem mais nova e muito mais bonita do que eu. Também solitária, decidiu por razões misteriosas deixar-se encantar por mim. A vida, bondosa como raramente o é, dava-me uma segunda oportunidade. E é assim que, desde há coisa de sete anos, eu e ela nos metemos em autocarros que percorrem Portugal de Norte a Sul - com frequentes passagens e paragens na Serra da Estrela e em Fátima, pois claro -, além de algumas viagens pela Península Ibérica além-fronteira e ainda três grandes viagens que fizemos até para lá dos Pirenéus: uma vez fomos a Lourdes e outra a Toulouse, em França; numa outra ocaisão, passeámos pela Flandres, na Bélgica, visitando algumas bonitas cidades.
"Como é que é, vamos todos juntos a Granada daqui a duas semanas?", perguntou o Nicolau, o marido desse casal de amigos nossos quando se abeirou de nós naquele fim de tarde esplendoroso e já quase outonal na Praza do Obradoiro. Ela, Cristiana, muito simpática, muito afável, pessoa de abraços e de toque físico, agarrou-se à Matilde e disse "que raio de pergunta, é claro vêm!" E eu, que a princípio sorri com a felicidade que nos trazem as coisas simples e óbvias, senti de súbito uma angústia pequena, daquelas que se nos instalam debaixo dos pensamentos como se estivessem azedas: alguma coisa não batia certo, por muito boa que fosse a ideia.

E logo me lembrei: a minha filha! A minha filha seria oradora numa cerimónia pública em Lisboa precisamente no dia em que partia a excursão para a Andaluzia. Não podia ir, lamentavelmente. "Ó, Luís, não nos faças uma desfeita dessas", disse o Nicolau com uma gargalhada no fim e abrindo os abraços. Olhei para Matilde que me olhava fixamente como se a desapontasse muito, mas mantendo um sorriso forçado como se usasse uma máscara sobre o rosto - olhando-a nos olhos, percebia-se que não sentia felicidade, que tudo nela era desilusão. "Prometi à minha filha que estaria lá - não lhe posso fazer a desfeita a ela." O final de tarde prosseguiu silencioso após o encerramento dos lábios de Matilde. Quem a visse diria que fizera voto de silêncio, tal era a força com que cerrava a boca. Estava muito zangada comigo, talvez como nunca a vira antes.
No quarto, nessa noite, finalmente falou. "O que é que tu queres mesmo de mim, Luís?" Não percebi a pergunta e disse-lho. Desde que nos conhecêramos, a nossa relação era exemplar, feita de companheirismo, feita de partilha e composta também da liberdade de cada um, uma liberdade a que bem bastavam as condicionantes antes da chegada de um à vida do outro. O nosso compromisso sempre fora permitir que nos movêssemos em função do que era necessário fora deste nosso namoro tardio. Disse-lhe que as tonterias das paixões adolescentes não faziam sentido entre nós, os ciúmes, as saudades exacerbadas, as exigências constantes de provas de amor, tudo isso eram infantilidades desnecessárias. Se nos tínhamos conhecido assim, e se assim nos dávamos tão bem havia já sete anos, para quê estragar tudo agora? Respondeu-me muito secamente que o que lhe faltava era "esse tal companheirismo" e que não me exigia nada que eu não estivesse disposto a dar-lhe. E calou-se de novo.
Esta podia ter sido somente uma discussão, não mais do que isso, daquelas que são simples embora feias e que, na manhã seguinte, deixam um travo amargo, uma espécie de ressaca, e uma vontade indomável de chegar perto do outro e dizer "olha, amor", e resolver tudo ali. Só que esta não era a nossa primeira discussão a este respeito.

Existe algum desequilíbrio entre mim e a Matilde. Temos muito em comum, a começar pelo gosto de viajar e de conhecer, de conviver e de contemplar. A questão da idade não interfere, ambos somos suficientemente maduros para não fazer caso disso. Só que eu tenho uma filha, a Matilde não. Eu fui casado, ela não. Tenho, por isso, mais amarras ao passado do que ela tem. E esse não é um aspeto que se possa ignorar. Por mais voltas que se dê e por mais que se insista no apelo à razão e ao bom senso, a verdade é que existe de modo permanente um certo ciúme latente, como a herpes, sempre à espreita da oportunidade para se manifestar. A simples existência da minha filha é um símbolo de que houve, para mim, uma vida antes da Matilde, uma vida que também teve amor e de que resultaram frutos preciosos.
Conversámos acerca deste assunto muitas vezes até que consegui, ou achei que consegui, demonstrar-lhe que esse passado, além de incontornável, é indissociável de mim mesmo: eu sou o resultado dessa vida, e é de mim, tal como sou, que ela deve gostar. E eu gosto dela precisamente assim e até talvez por ter este passado que tenho. Só que uma pessoa não pode simplesmente cortar amarras. No meu caso, não posso nem quero - que absurdo!
A Matilde aceitou as circunstâncias e, durante muito tempo, conviveu pacificamente com elas. Na verdade, no meio de todas as condicionantes, sempre levámos uma vida de namoradinhos, sempre passeámos, sempre saímos para jantar ou para visitar amigos. Até que, no ano passado, nasceu o meu neto. E eu, como é evidente, passei a dedicar um pouco mais de tempo à minha família de sangue, à minha filha e ao meu novo pequenote, que é o orgulho deste avô babado.

Nunca me passou pela cabeça que fosse, para uma mulher madura, difícil compreender e aceitar o amor e a dedicação de um avô. Nunca! E no entanto é com isso que tenho de lidar. A chegada do bebé fez com que eu alterasse planos e deixasse de fazer outros novos. A Matilde sentiu-se sozinha. Sentiu-se preterida, deixada de parte. Mas eu sempre tentei integrá-la, trazê-la para o seio familiar. "Sim, Luís, vou mesmo para o meio da tua família. De preferência, com a tua ex-mulher também lá. Imagina só, que quadro feliz: a tua filha, o teu neto, o teu genro, a tua mulher e a tua namorada nova. Que lindo." Era assim que me respondia.
A cerimónia em que a minha filha falou foi espantosa. Uma coisa muito bem organizada, muito dinâmica, com tudo certo, uma grande relação com a plateia, interação com a audiência, tudo notável. Fiquei muito orgulhoso. Só não foi, para mim, absolutamente perfeita porque minutos antes de começar recebi uma chamada da Matilde. Decidiu discutir comigo, de novo e sobre o mesmo assunto, precisamente naquele momento, quando me sentava para assistir à cerimónia e ao triunfo da minha filha e dos seus pares. Vi-me obrigado a desligar-lhe o telefone. Não faz o meu género, não é de todo hábito meu, mas senti-me acossado e sem saída. E, assim que desliguei o telefone, bloqueei-lhe o número até no Whatsapp e ainda o perfil do Facebook. Fiquei incontactável para ela. Deve odiar-me agora. Não falamos há dois dias. Ainda não decidi se torno a desbloqueá-la.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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