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Histórias de Amor Moderno: “‘Agora, que já ninguém quer casar, a família só se encontra nos funerais’”

“Porque não nos deixamos simplesmente ir, lado a lado, mão na mão, olhos nos olhos, até que a vida nos mantenha sempre juntos?” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / 'Sex and The City"
08 de fevereiro de 2025 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

"O casamento é bom para quem tem a certeza absoluta do que quer na vida, e eu só consigo viver com dúvidas." A frase saiu-me dita assim, com precisão e sem piedade, assertiva como se, no fim de contas, também eu tivesse certezas na vida.

Não era a primeira vez que a conversa sobre casar ou não casar surgia. Quando se está a caminho dos quarenta, em princípio já se passou muitas vezes pela mesma situação - dezenas, talvez centenas de vezes. Num contexto de encontro de família é não apenas certo, mas praticamente imperativo: haverá um tio, uma tia, um primo ou uma prima que vai lançar o tema. Os meus pais, esses, há muito que desistiram de me abordar com a pergunta "então, é desta que te casas?" ou "mas vocês não pensam em casar?". Não foi fácil fazê-los desistir, muito menos levá-los a compreender a minha perspetiva e a minha vontade. Não os condeno, crescemos em épocas diferentes, em contextos distintos.

"Agora, que já ninguém quer casar, a família só se encontra nos funerais." Desta vez, foi uma tia-avó do lado da minha mãe a lançar o assunto, ainda que de um modo mais subtil do que é costume. Ou, pelo menos, tão subtilmente quanto possível: se, por um lado, não me acusou diretamente do pecado de não casar - deixou só subentendido -, por outro, estávamos naquele dia ali reunidos precisamente por causa de um funeral. Até a subtileza tem as suas limitações.

Ainda que de um modo bruto, a frase continha a sua verdade. Nos anos oitenta e noventa, era frequente irmos a casamentos na família de pessoas da geração anterior à minha. Certas vezes, nem se tratava de familiares particularmente próximos, contudo a boda e a cerimónia religiosa eram ocasiões em que as famílias se reuniam com convicção e, correndo bem, alguma alegria para celebrar não só a união entre duas pessoas, mas também o alargamento mútuo das famílias que ali se uniam. Sem casamentos para celebrar, com comida, bebida e alegria, as famílias passaram a ver-se confinadas à reunião obrigatória nas horas tristes, vergadas ao inescapável momento em que é preciso juntar a tribo para enterrar alguém.

O advento da modernidade e a expansão da urbanidade província adentro terão, porventura, contribuído para a mudança do paradigma, para a alteração dos hábitos. Contudo, para mim, não é de sociologia nem de modernidade que aqui se trata, é apenas de querer ou não querer casar e do que isso representa para mim e para cada um.

Elisa, assim se chama a minha tia-avó. Não diria que é uma velhina insensível, mas parece ter-se tornado imune à tristeza genérica que transparece dos rostos que assistem às exéquias. Possivelmente, é a experiência que lhe permite reagir assim à partida de alguém para sempre. "Mais um", pensará ela, "calha a todos, cada um na sua vez", disse-me, antes de prosseguir com a conversa sobre os encontros de família - assunto que era apenas um disfarce, uma vez que o tema verdadeiro, vim a descobrir momentos depois, era mesmo o casamento ou, melhor dizendo, o meu casamento.

"Pois, isto agora a gente só se vê nos funerais. Hoje em dia, já ninguém se casa." Como explicam as assistentes de bordo antes da descolagem, a instrução antes de o avião se despenhar é "brace! Brace!" - chegou o momento, vem aí a conversa. "Então e tu, filho, quando é que tu te casas? Não tens noiva?" Tenho namorada, tia. Tenho a minha companheira. Sim, vivemos juntos, sim, mesmo sem nos termos casado. Sabe que as pessoas, para viverem juntas, não precisam de estar casadas, não é preciso assinar papéis. A tia Elisa olhava-me e fazia que sim com a cabeça, com um sorriso forçado nos lábios possíveis de um rosto já muito gasto e usado, "pois, pois, mas isso não é a mesma coisa, pois não, filho?" Passei por cima da pergunta, que me pareceu demasiado genérica e que possivelmente continha rasteira, daquelas que nos prendem a um argumento quase de certeza religioso. "Para partilharmos a vida com alguém, não temos de assinar contratos de olhos fechados", disse eu, tentando desviar os carris da conversa do caminho moral, mudando o destino para o lado prático. "Ora, filho, o casamento não é só amor. Vocês querem que tudo seja fácil."

Foi nessa altura que, talvez um bocadinho exaltado, respondi sem piedade: "O casamento é bom para quem tem certeza absoluta do que quer na vida, e eu só consigo viver na dúvida." Foi-se o sorriso da tia Elisa e surgiu, em substituição, destacado naquela mesma fronte anteriormente afável, um olhar maligno, de quem julga e condena. Não havia como voltar atrás, estava estragada a ocasião. Relembro que se tratava de um funeral, o que torna o feito ainda mais considerável: eu consegui piorar aquela situação.

Como tudo estava estragado, decidi continuar. "Sabe, tia, muitos acham que têm a certeza, mas, depois, acabam por perceber que estavam errados. Quando se apercebem do erro, de que afinal também não sabem exatamente o que querem, já é tarde demais, já disseram que sim. Em muitos casos, já o fizeram há demasiado tempo. Veja bem a quantidade de divórcios que há por aí. Até mesmo na família. Lá porque as pessoas se casam, isso não significa que corra bem." O seu olhar severo começava a assustar-me, achei que me ia dar um estalo. Respirou fundo, fez uma pausa e afirmou: "Isso é porque as pessoas de agora não têm compromisso."

A minha mãe, que estava por perto, apercebeu-se da minha aflição. Aproximou-se, deu-me o braço e começou a falar baixinho comigo. Foi um exercício diplomático inteligente, parece-me. Aos poucos, apartou-nos. A tia Elisa ia ficando mais longe e mais para trás no cortejo, que agora seguia a pé a caminho da última morada do nosso ente querido. Não é difícil deixar para trás uma velhota malina a caminho dos duzentos anos. Normalmente, não são pessoas de passo acelerado. Mas ela, cada vez mais distante, continuava a fulminar-me com o olhar, julgando-me e condenando-me, provavelmente acertando contas com o seu mundo oculto para garantir que, na próxima etapa, nem as portas do purgatório estariam abertas para mim. 

"Não aborreças as pessoas, filho. Responde só que te casas um dia destes, que logo se vê, que ainda é preciso ter a certeza, sei lá, inventa uma desculpa." Talvez a minha mãe tivesse razão, mas esse raciocínio não levava em conta o incómodo e o desconforto que aquela conversa me causa. É como se, não cumprindo a etapa, eu estivesse em falta com o mundo, com a família, como se estivesse a condenar-nos a qualquer coisa. "Mas tu não gostas a sério da Alexandra?" É sempre difícil, mesmo passados todos estes anos , fazer-lhe ver que a questão não é essa; é o próprio conceito, é a ideia abstrata da questão que me incomoda.

"‘Promete amar e respeitar, blá blá blá e etecétera, até que a morte vos separe?’" Não, não consigo, lamento. E acho a necessidade dessa promessa um sinal de falsidade do compromisso. No máximo, posso prometer fazer o meu melhor, isso sim, claro que sim. E mais, no ponto em que estamos, preferia que a morte não nos separasse nunca. Essas projeções apontam sempre para a infelicidade, para o desfecho inexorável e trágico. Porque não nos deixamos simplesmente ir, lado a lado, mão na mão, olhos nos olhos, até que a vida nos mantenha sempre juntos?

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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