Histórias de Amor Moderno: “A vontade esbarrava sempre na presença da Carolina, que parecia não estar disposta a deixá-lo”
“Foi assim que eu, aos 18 anos, perdi a minha virgindade, praticamente de pé e com pouco equilíbrio, com o rabo arranhado.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Éramos todos miúdos. Repito-o para mim como um mantra na tentativa de me pacificar invocando o estatuto de inocente. Éramos apenas miúdos. Será sempre difícil definir a inocência, traçar-lhe as linhas, estabelecer as fronteiras, daqui para lá é indecente, além daquele traço não se pode ir, que é desleal. Até onde vai essa capa de imunidade moral, "éramos todos miúdos", essa certidão implícita de inimputabilidade? Talvez o meu mantra seja hoje mais inocente do que eu fui nesses dias, eu e todos os outros. Éramos todos miúdos.
Recordo-me de ver o aparato de sirenes e pirilampos dos bombeiros e da polícia ao cimo do areal da Praia Grande, em Porto Covo. E nós, enrolados em mantas, embrulhados em toalhas, enleados uns nos outros, nos braços, nas pernas, nas mãos, nos dedos, abraçando, segurando o que houvesse capaz de impedir que caíssemos. Entre a apatia da bebedeira e o alvoroço confuso de uma grande tragédia, ali ficámos. Uns do lado de dentro do muro da vivenda, outros na beirinha das arribas, assistindo aos trabalhos das equipas de salvamento, uma correria de indecisões, dezenas de pessoas vestidas com fardas diferentes consoante o grupo e a função, nenhuma delas sem saber bem o que fazer com um rapaz inanimado, com a cabeça aberta de tal maneira que o sangue que escorria dela fazia poças na areia. Por fim, levaram-no de maca, sobre ele uma manta térmica, uma máscara de oxigénio no rosto e uma sentença de paraplegia para o resto da vida, que lhe seria curta. Demasiado curta.

Éramos muitos, seguramente mais de vinte. A maior parte de nós tinha terminado o liceu nesse ano e entrara para a faculdade no outono. Decidimos fazer a festa de passagem de ano junto ao mar, onde tantos de nós tantas vezes passáramos férias, ora juntos, ora com a família de cada um. Conhecíamo-nos há muito. Aquele Ano Novo seria o primeiro do resto das nossas vidas. E, principalmente, o que terminava era o último do que a vida nos dera até então, entre a infância e a adolescência. Dali em diante, estaríamos cada um por sua conta, cada qual faria o seu caminho. A passagem de ano de Porto Covo seria, em simultâneo, uma cerimónia de despedida e um ritual iniciático. Com muita amizade, muitas hormonas e muito álcool à mistura.
Um dos rapazes, o Rodrigo, fazia anos no dia 30, pelo que o plano consistia em chegar no dia 29 à casa que alugáramos para a festa, para fazer os preparativos e arrancar com a festa às 00h00. Cumpriu-se o plano, a festa começou ainda não era meia-noite, mas foi mesmo a essa fora que se fez o primeiro brinde e se abriram as primeiras garrafas de champanhe. O ambiente era maravilhoso, efervescente e repleto de amizade e amor. A música não obedecia a uma só playlist: foram vários a escolher o que ouvir numa sequência quase aleatória. Resultou num set que podia ser a compilação em forma de banda sonora da nossa adolescência. Aquelas seriam noites inesquecíveis, sem dúvida.
Nessa primeira noite, talvez por coincidência, dei por mim muito próxima do André, um rapaz por quem tive uma paixão silenciosa e dolorosa durante anos e a quem nunca consegui confessar o que sentia. Eu não era particularmente expedita com rapazes, sempre fui reservada, sobretudo nessa idade. Era tímida, esquivava-me, não sabia como lidar com elogios nem com avanços desajeitados. Não me tinha em grande conta no que toca ao aspeto, mas preservava-me com afinco, garantindo que a autoestima permanecia intacta.

O André era, fora sempre, um rapaz muito gentil. Além de obviamente bonito, tinha uma maneira muito elegante de estar e de conversar. E nós falámos muito nessa noite. Dei por mim desinibida, a fazer revelações inesperadas e a falar mais do que a ouvir. E ele ouviu-me atentamente, parecia gostar genuinamente de conversar comigo. Mas eu, desajeitada e um pouco bêbeda, cortei abruptamente a conversa, precisava de dormir. Antes de me recolher, já madrugada dentro, o André pegou-me na mão, puxou-me para ele e beijou-me levemente o pescoço. Eu, inexperiente e tímida, fiquei envergonhada e, sem saber porquê, só soube dizer-lhe "dorme bem". E deixei-o sozinho.
No dia seguinte, acordámos todos muito tarde. O álcool fez efeito, as cabeças pesavam um pouco, mas nada que impedisse a continuação da festa. Lembro-me de ter acordado com fome e uma espécie de sopro no estômago: só queria ver o André e, de cada vez que me lembrava dele, o sopro estremecia-me de novo. Não o encontrava, até que o vi regressar da praia. Vinha com mais pessoas, rapazes e raparigas. Uma delas, a Carolina, então a minha melhor amiga. Ela segurava-lhe no braço e falava com ele desfazendo-se em sorrisos.
Ao longo do dia, fui sentindo vontade de me aproximar. Mas a vontade esbarrava sempre na presença da Carolina, que parecia não estar disposta a deixá-lo. Eu não estava ali para competir. Além disso, o André continuava a conversar com ela. Se a vontade de estar comigo correspondesse ao meu desejo de estar com ele, certamente já teria encontrado maneira de se aproximar de mim. Houve um momento em que o fez, quando foi buscar uma cerveja e se cruzou comigo. Disse-me "aquela nossa conversa de ontem", mas não terminou a frase porque a Carolina chegou e o agarrou, gritando "não acabei de te contar sobre o cão", e levou-o com ela, a rir-se muito alto. Ele fez uma expressão de "bom, tenho de ir", mas não disse mais nada. Simplesmente, foi.

O dia ia passando, a festa ia ficando mais desfocada. A minha cabeça ia entrando numa espiral psicadélica alimentada de música, rostos disformes, bebida, muita bebida, cigarros. Ia dançando e bebendo, dançando e bebendo. De cada vez que procurava o André, acabava por encontrá-lo junto da Carolina. Conversavam e riam-se, bebiam e fumavam. E eu ia ficando enjoada com tudo aquilo, com as luzes, a música, o barulho, os rostos sorridentes, disformes e saltitantes, a vodka, o vinho, a cerveja. Tudo misturado, do coração até ao estômago, e agitado até fazer espuma e deitar por fora.
E ali estava eu, do lado de lá do muro, vagamente voltada para o mar. Tentava apanhar um pouco de ar fresco, recuperar o fôlego, aliviar a indisposição e a confusão, quando apareceu o Rodrigo. "Hey, Cíntia", disse ele, já com a voz arrastada de quem bebeu muito mais do que devia. Todos bebêramos muitíssimo, ele não estava melhor nem pior do que os demais. "Estás bem?", perguntou. Eu disse que sim. Ele disse que não, que eu não estava nada bem. "Anda, vamos caminhar um pouco." E fomos.
Não me lembro das nossas conversas, mas devem ter sido muito patetas, porque eu sei que me ri bastante. Lembro-me de que ele trazia uma garrafa de água, daquelas de plástico, só que estava cheia com vodka-laranja. "Deixa-me dar um gole", pedi-lhe. Disse-me que não, que eu precisava de recuperar um pouco mais. "Deixa-te disso, é o teu aniversário, vamos brindar!" Acabei por beber. Bebemos os dois. E depois, do nada, dei por mim aos beijos com ele. Eu, que nunca antes achara graça ao Rodrigo. Deixei-me ir. Estava a saber-me bem.

Álcool, adolescência tardia e hormonas, eis um cocktail perfeito para fazermos disparates. As minhas mãos já estavam dentro das calças dele, as mãos dele exploravam o interior das minhas cuecas, e tudo se precipitou. As minhas calças estavam para baixo e as dele também. Nem me apercebi muito bem do que aconteceu, só sei que ele estava dentro de mim. Fizemos mesmo ali, junto a uma vedação, com um frio de rachar, sob o céu estrelado do litoral alentejano.
Foi assim que eu, aos 18 anos, perdi a minha virgindade, praticamente de pé e com pouco equilíbrio, com o rabo arranhado pelas ervas ou pelas silvas ou pela vedação, nem sei bem. Tudo não durou mais do que alguns segundos. Meio minuto, se tanto. Depois regressámos a casa, sem falar. Bebemos mais alguns goles de vodka-laranja. Ele sorria para mim, mas eu nem sabia o que dizer ou pensar. Não foi bom. Arrependi-me no momento em que acabou. Talvez até antes: no instante em que ele me penetrou. Ou quando nos beijámos. Sei lá eu, tudo foi tão confuso.
A ressaca foi pior no dia seguinte, véspera de fim de ano. A indisposição e as náuseas eram agravadas pela sensação de estar tudo errado. Sentia-me deprimida, triste comigo, revoltada com o mundo. Acordei a sentir que a culpa de tudo aquilo era da Carolina. Porque é que ela, a minha melhor amiga, escolheu precisamente o André, a minha crush, e não outro? Levantei-me, doía-me a cabeça e o amor-próprio. Fui procurar a Carolina. Encontrei-a, discutimos. Eu disse-lhe que achava indecente que ela se tivesse atirado ao André. Respondeu-me, furiosa, que ela é que devia estar chateada. "O André não quis nada comigo, bitch! Diz que só pensava em ti, que gosta de ti desde há que tempos." Nada fazia sentido.

E então começou o caos. Eu só via os rapazes aos berros, alarmados e, ao mesmo tempo, a rir, chamando pelo André, "o que é que estás a fazer", "não faças asneiras", coisas do género. E o André a correr de tronco nu, jardim fora, até saltar o muro. E depois correu mais em direção à praia. E depois não o vi mais. "O que é que se passa?" Os risinhos palermas e cúmplices denunciaram uma parte; a cara de gozo do Rodrigo, encostado à parede com a garrafa de vodka-laranja na mão - "queres mais um golinho, Cíntia?", a rir-se para mim, "Vá lá, ontem não te fez mal" - e depois todos os outros a rirem com ele, denunciaram o resto. Estivera a gabar-se da sua proeza da noite anterior. Da sua prenda especial de aniversário. Do "pop the Cintía", como eles comentavam entre risinhos parvos.
Ao mesmo tempo, duzentos metros mais abaixo, o rapaz que podia e devia ter sido o meu primeiro amor, por não suportar toda aquela realidade desnconjuntada e torta, mergulhava num mar frio e revolto, entre rochas aleatórias de saliências imprevisíveis. E continuámos a ser todos miúdos. Só que diferentes.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
