Histórias de Amor Moderno: “Foi num desses encontros posteriores, cada vez menos secretos, que o Miguel me disse ‘Marisa, precisamos de ir com calma’”
“Estabelecemos proibições, linhas vermelhas: até ver, nada de família, nada de oficializar relações, nada de misturar amigos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Estava uma manhã fresca de verão, coberta por uma neblina fina. Cheirava a mar e às coisas secas da estação, que o ar matinal tratava de humedecer. E eu, na varanda do hotel, contemplava todo o cenário enquanto bebia o meu café e espreitava para dentro do quarto: o Miguel estendido sobre a cama, ainda adormecido, peças de roupa no chão, os restos imortais da nossa noite de paixão. Lembro-me de ter pensado "isto é a vida perfeita", e é possível que fosse mesmo e que aquele tenha sido um dos melhores momentos de que me lembro.
Eu e o Miguel não éramos ainda cem porcento propriamente namorados. Aliás, pouco antes dessa escapadinha de fim de semana até à costa alentejana, tivemos uma conversa sobre o que seria de nós, sobre as indefinições, sobre o que era importante esclarecer. Desde que nos conhecemos era evidente que nos sentíamos atraídos um pelo outro. E se o primeiro café que tomámos juntos foi sob um pretexto pateta qualquer - não foi um qualquer e é escusado eu fingir que não me lembro de que pretexto foi esse: falámos acerca de um livro na ocasião em que nos conhecemos, Os Abismos, de Pilar Quintana, e eu fiquei de lho emprestar; acabámos por combinar o tal café, concretizando o combinado -, de então em diante os nossos encontros foram-se tornando cada vez menos púdicos. Não que aquele café, o primeiro de todos, tenha sido absolutamente inocente. Não foi. Eu sabia que o queria e ele decerto também saberia no que se estava a meter. Mas dessa vez comportámo-nos, travámos as vontades, evitámos os excessos.

Foi num desses encontros posteriores, cada vez mais frequentes e menos espaçados no tempo, cada vez mais intensos e carnais, cada vez menos secretos e mais sociais, que o Miguel me disse "Marisa, precisamos de ir com calma", e eu percebi imediatamente que devia haver mais alguém na vida dele. Quis saber quem e como, de que modo, se era a mulher, a ex-mulher, a namorada, a amante: quem existia para além de mim? "Tem calma, Marisa, não há motivo para ficares agitada", disse-me calmamente, tão calmamente que acreditei e acreditaria nele, dissesse o que dissesse. "É só uma situação que não está ainda bem resolvida", concluiu. E se isso, por um lado, me tranquilizou, por outro deixou-me cá dentro um bichinho em forma de mistério: que raio de enigma seria aquele, feito de uma pessoa e de uma situação por resolver. E, pior: porque é que ainda não estava resolvido, se já saíamos juntos há quase três meses, com regularidade.
No início, combinámos não deixar que as coisas avançassem depressa demais porque, com a experiência que ambos tínhamos, sabíamos que o fervor da paixão pode por vezes cegar e levar a que se tomem caminhos que não são fruto de decisões, mas antes consequências de impulsos. Por isso, estabelecemos proibições, linhas vermelhas: até ver, nada de família, nada de oficializar relações, nada de misturar amigos e, ainda, nada de dormir na casa um do outro. Podíamos estar juntos, fazer o que entendêssemos, mas dormir na cama um do outro, passar a noite juntos, isso não estava contemplado na curta lista de atividades licenciadas que estabelecemos.
A conversa que tivemos acerca das indefinições foi construtiva e esclarecedora. Garantimos um ao outro que estávamos limpos do passado, que não trazíamos acorrentado aos tornozelos o peso de relações anteriores, que estávamos livres, desimpedidos, de boa-fé e espírito aberto para o que tínhamos diante de nós e um com o outro: a esperança no amor, a perspetiva de uma relação séria e serena entre dois adultos que, depois de várias reviravoltas nas vidas de um e de outro, afortunadamente se encontram e se dão bem. O fim de semana na costa alentejana foi uma espécie de celebração, uma noite de núpcias oficiosa, um ponto a partir do qual podíamos dizer "vá, agora é a sério, estamos juntos", sem hesitações, sem segredos e sem desculpas.

E foi um fim de semana esplendoroso, com tudo o que uma pessoa pode sonhar e tudo aquilo a que achamos ter direito. Muito romance, muita cumplicidade, muita diversão. Muito sexo, também, claro que sim - lá está, a noite de núpcias -, e jantares idílicos, e passeios na praia ao pôr do sol, e mergulhos hilariantes num mar gelado, e histórias da infância contadas à mesa do pequeno-almoço, "não vale omitir detalhes embaraçosos". Tudo à mostra. Tudo.
Depois, regressámos à cidade e não transgredimos imediatamente a linha vermelha em torno do mandamento que dizia "não dormirás em cama alheia". Então, foi cada um para sua casa. E foi bom, porque é bom respirar a memória recente destes dias bons, destes momentos apaixonados, como se estivéssemos a sonhar acordados, a imaginar uma e outra vez o futuro, feito de dias assim, e a recordar esse passado recente, ainda quente na pele e nos lábios, e no corpo mexido, invadido, explorado. E olhar para o telefone à espera de uma mensagem arrebatadora a dizer como adorou, como está feliz, como tudo foi bom, e alegre, e romântico, e apaixonado.
A mensagem teimava em não chegar, então decidi tomar a iniciativa. De mansinho, mandei-lhe só uma pergunta infantil, "gostas de mim?", mas depois passaram minutos, depois mais minutos, depois meia-hora, então decidi dar tudo de mim, entregar-me, despojada, "tudo à mostra", como dissemos um ao outro à mesa do pequeno-almoço. Que me sentia dele, que tínhamos uma sintonia perfeita, que com ele era capaz de trepar montanhas e mergulhar às profundezas, "Miguel, fazes-me sentir como eu nunca me senti", disse-lhe eu, "despertaste em mim sentimentos que eu nem sabia que era possível sentir", acrescentei. E assim fui, de frase em frase, destapando-me toda, peça por peça, até não me restar nem a pele. Tudo à mostra.

Adormeci sem receber a resposta e acho que dormi mais depressa só para poder acordar cedo e ler a mensagem dele. Acordei e peguei no telefone, procurei entre todas as notificações a da mensagem do Miguel - ou seriam várias? Se calhar, ele tinha-me mandado muitas, eufórico de amor, exuberante de paixão, fervendo de saudades com a minha falta. E procurei, procurei, procurei, abri aplicações à procura da mensagem, uma atrás da outra, teria sido nesta, se calhar foi naquela, talvez tenha preferido a outra. Abria e fechava aplicações e caixas de mensagem, acendia e apagava a esperança como uma criança que se ilude e desilude, mas que não desiste. Com o brilho nos olhos que só uma mulher apaixonada pode ter. Até que o brilho nos olhos já não era da paixão e da esperança, mas sim das lágrimas que começaram a cair, de cima para baixo, como manda a força da realidade.
Liguei para o Miguel, não atendeu. Fiquei preocupada, mas não tinha como saber dele, não tinha contactos da família, dos amigos. Mandei-lhe uma mensagem, "Miguel, por favor diz-me qualquer coisa, preciso de saber se estás bem. Diz-me que estás bem, meu amor". E esperei. Esperei em vão. Ao fim do dia, tentei ligar de novo. O telefone tocava, mas ele não atendia. Passei o resto do dia e da noite em agonia, à espera. Tinha um aperto no coração, ou no pescoço, ou no estômago, ou em todo o lado, que me impedia de dormir, de comer, de respirar. No dia seguinte, fui a casa dele. Toquei à campainha. Ninguém respondeu. Deixei um bilhete na caixa do correio, "por favor, liga-me, é urgente". Não ligou.
À medida que o tempo foi passando, a aflição que eu sentia foi-se transformando em dúvida: seria ghosting? Depois a dúvida fez-se tristeza e a tristeza tornou-se dor. No fim, só restou o ressentimento. Prometi a mim mesma que não iria humilhar-me, que não lhe ia bater à porta mais vez nenhuma. Ao fim de quatro semanas enviei-lhe uma última mensagem em que, uma vez mais, não escondia nada. Disse-lhe tudo o que sentia. Confessei-lhe o quanto me tinha sentido magoada, traída, desfeita juntamente com os sonhos que ele tornou ridículos. Passado alguns minutos, recebi uma mensagem, uma resposta: "Se não sabes esperar por mim, é melhor ficarmos por aqui e não criar mais ilusões." E não sei se foi o espanto ou se foi a raiva o que me manteve de pé.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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