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Histórias de Amor Moderno: “Eu próprio principiava a aceitar a possibilidade de vir a ser pai de um filho de outro homem”

“Dietas severas, exercícios, doses monásticas de onanismo, aperitivos afrodisíacos, de tudo um pouco eu fiz para melhorar as performances.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Unsplash
27 de outubro de 2024 às 10:31 Maria Olívia Sebastião

O fim de tudo começou num longo silêncio. Saímos do consultório e caminhámos lado a lado, como se fôssemos colegas de trabalho em direção à hora de almoço, ou quaisquer outras duas pessoas aleatórias sem relação próxima entre si. Qualquer combinação de indivíduos caminhando lado a lado, desapegados, longe, muito longe de sermos marido e mulher. Quando, ao fim de muitos minutos e muitos passos sem destino, nos sentámos num muro baixinho diante de um pequeno lago onde chapinhavam patos de pescoço verde, pousei a minha mão sobre o ombro de Sílvia e disse-lhe "vai ficar tudo bem". Mas não ia.

Essa fora a nossa terceira tentativa de inseminação artificial. As duas anteriores haviam sido tentativas frustradas logo muito cedo. A pouca vitalidade do material genético - não consigo precisar se foi "pouca vitalidade" ou "pouco vigor" do material genético a expressão que o médico usou, contudo vai dar ao mesmo: significava que os meus espermatozóides eram incapazes de impressionar os óvulos de Sílvia ao ponto de os fecundarem - impediram que a fertilização acontecesse, mesmo nas condições ideais. Fizemos uma pausa nos tratamentos, depois disso segui durante meses indicações nem sempre claras do que fazer para garantir o vigor e a vitalidade do meu sémen. Dietas severas, exercícios, doses monásticas de onanismo, aperitivos afrodisíacos, de tudo um pouco eu fiz para melhorar as performances das minhas minúsculas sementes.

Não pensei seriamente em ter filhos até se aproximar no horizonte o meu quadragésimo aniversário. Sílvia também não ficava mais nova, ia a meio dos trintas e o seu relógio biológico começava a contar o tempo com impaciência cada vez maior. Foi por essa altura que começámos a conversar sobre o assunto como se fosse um objetivo claro que importava cumprir. O tema ganhou contornos tão sérios que decidimos pesquisar a genealogia de cada um. Inicialmente em tom de brincadeira, a expedição ganhou depressa novos contornos de importância. O meu apelido, Lemos, suscitou-nos curiosidade quando o cruzámos com uma ramificação possível de meados do século XIX. E foi então que decidimos - ou que decidi eu, porque essa empreitada era a mim que dizia respeito, principalmente - levar a busca mais além e, em vez de me ficar somente pelos livros poeirentos onde se assentava, nas paróquias, os nomes de progenitores e seus rebentos, avançar para uma procura mais séria e mais clara. Fui fazer testes de ADN.

Sílvia, por esta altura, já tentava engravidar. Todos os métodos de controlo contracetivo haviam sido abandonados há já alguns meses e passámos a tentar, com disciplina rigorosa, gerar vida nos dias mais prováveis de cada mês. Os resultados não eram animadores, ao fim de mais de uma estação de tentativas ainda não havia sinal de embriões. Sílvia parecia acreditar que o mal residia no facto de ter tomado a pílula durante muitos anos. E eu não pretendia contrariá-la nessa ideia, e fui-me deixando acreditar confortavelmente que o problema não seria meu, já que de mim saía regularmente aquilo que se esperava que saísse.

A vida prega partidas muito curiosas: no mesmo dia em que os resultados do meu ADN chegaram com notícias felizes, Sílvia chegou do consultório médico carregando consigo novidades devastadoras. Confirmava-se a minha ramificação que me garantia parentesco com a linhagem de Bourbon, por um lado; por outro, o médico garantia que Sílvia estava sã como um pêro e que o seu útero era fértil como poucos naquela idade. O mal residia afinal na minha herança genética, que tinha tanto de nobre como de débil. E foi então que a questão dos tratamentos e do auxílio médico para a concepção passou a ser tema de conversa.

De início, Sílvia mostrava-se reticente, considerava que podíamos continuar a abordar a situação como sempre fizéramos, mas ao fim de quase um ano de tentativas frustradas, consultámos um especialista e iniciámos o processo. No espaço de um ano e meio, conseguimos atingir as condições ideais para a inseminação, mas em ambos os casos caíram por terra os projetos logo muito cedo. E foi então que eu e Sílvia talvez tenhamos começado a escavar entre nós um fosso, como aqueles que os castelos possuem à volta para impedir que os inimigos se acerquem das muralhas.

Confirmada que estava a má qualidade da matéria que eu tinha para oferecer ao processo de inseminação, Sílvia sugeriu que recorrêssemos a um dador. O médico disse que sim, concordou que seria boa opção. Explicou variáveis, nuances e condicionantes. Detalhou ainda mais quando quisemos compreender o processo de seleção. Foi convincente, como se pretendesse vender o esperma. Eu próprio principiava a aceitar, ainda que com alguma relutância, a possibilidade de vir a ser pai de um filho de outro homem.

Foi a caminho de casa, depois dessa consulta elucidativa, que tive a maior divergência com Sílvia. Conversávamos acerca do perfil que desejávamos para o dador, até que levei a mão à consciência e exclamei "espera, Sílvia! Então e o sangue dos Bourbon? Morre comigo?" O debate foi sereno, civilizado, mas cheio de convicção. Eu defendia, honrando os meus antepassados, o perpetuar dos nossos genes; Sílvia rebatia os meus argumentos afirmando que talvez os meus genes não fossem assim tão bons. Ou que, ainda que o pudessem ser, talvez não possuíssem a vitalidade - ou terá sido o vigor? - necessária para fecundar um óvulo, engravidar uma mulher.

"Tentamos uma última vez", concedeu por fim Sílvia, mas só depois de eu muito ter insistido com melhorias a implementar na minha rotina, nos meus hábitos. Prometi-lhe esforço e dedicação, prometi-lhe um rigor científico no cumprimento do meu reforço vital. E cumpri. Cumpri de tal modo que a inseminação, ainda que assistida medicamente, foi possível logo na primeira vez em que as condições estavam reunidas. Os óvulos foram fecundados. Havia um embrião.

O silêncio veio depois. Ao fim da segunda consulta, o médico estranhou a ausência de movimentos e de agitação. Procurou a pulsação. Nada encontrou. "O feto morreu?" Não conseguia afirmar para lá de todas as dúvidas, "por vezes, tornam-se omissos durante uns tempos, teremos de auscultar novamente daqui a alguns dias, ou mesmo de fazer nova ecografia". E então o silêncio. E então a promessa de que tudo ia correr bem.

No dia seguinte, Sílvia acordou com sangue a escorrer-lhe. Era a confirmação das piores expectativas. E era um gigantesco cubo de gelo a erguer-se entre nós. Desde então, a casa tornou-se sossegada como uma biblioteca. O silêncio era quebrado pelo manejamento de utensílios, pela ocasional sessão televisiva ou pelas frases meio patetas que eu proferia em busca de um qualquer ricochete. Debalde. Eram frases que ficavam no ar, sem resposta, até, por fim, se desvanecerem no éter do esquecimento. Sílvia passou a habitar um mundo só seu. E esse sim, com um fosso grande e fundo em redor, inacessível para mim. Decidi libertá-la. Ao fim de meio ano, sensivelmente, sentei-me diante dela e disse-lhe "vai; vamos; sigamos as nossas vidas em separado, não és minha prisioneira". E assim fizemos. Sílvia é uma mulher extraordinária. E eu seira capaz de passar com ela o resto da minha vida. Mas não assim. 

Durante algum tempo, acalentei o sonho de dar continuidade à minha linha dentro dos Bourbon. Tive encontros românticos ocasionais, mas pouco significativos. Comportei-me como se fizesse testes a potenciais companheiras de projeto. Nenhuma delas foi bem sucedida, contudo. Não me orgulho do processo. Mas também não me envergonho. É legítimo, ninguém pode censurar-me. Nas minhas veias corre o sangue de possíveis reis.

 

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