Atual

Histórias de Amor Moderno: "Era nos bailaricos que a gente fazia os namoros"

"Os tais bailaricos tinham graça, pois tínhamos de arranjar expediente para escapar às atenções das mães e das tias se queríamos dar uns beijinhos." Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

A Gaiola Dourada (2013).
A Gaiola Dourada (2013). Foto: IMDB
22 de julho de 2023 Maria Olívia Sebastião

O problema comigo tem sido, toda a minha vida, as rameiras. As quengas, prostitutas, como se diz, as mulheres da vida. Até parece alguma espécie de karma, porque eu, por mais voltas que dê, acabo por ter de me deparar com uma. E isto não é de agora.

O meu marido morreu faz este verão oito anos, setembro que vem. Deus o tenha. Não era nenhum santo, mas foi o amor da minha vida. Foi e é, e o Vítor, o meu atual companheiro, ou ex-companheiro, ou futuro ex-companheiro, já nem sei bem, está a par do que sinto e do que sou. Conheci o meu marido tinha eu 15 anos e ele 21. Ele tinha feito a tropa em Lisboa. Nasceu nos Arcos de Vale de Vez, eu sou de Ponte da Barca, éramos praticamente vizinhos, portanto. Minhotos, os dois, das terras do Vinho Verde e dos rojões.

Ele fez a tropa em Lisboa e, no fim, antes de se mudar para a capital em definitivo, já com contactos feitos e trabalho à espera (a servir à mesa num restaurante daqueles típicos, onde as doses vinham em travessas de alumínio e as meias-doses em travessas de alumínio com dois terços do tamanho das outras), foi passar o verão aos Arcos. Pelas romarias de São Bartolomeu, em fins de agosto, veio a Ponte da Barca, como vem tanta gente ali da zona, e também de fora, emigrantes e tudo. É uma grande festa. E foi então que nos conhecemos, como as pessoas se conheciam na altura, em princípios dos anos 80. Ainda não havia telemóveis, nem aplicações, nem apps de encontros: um rapaz conhecia uma rapariga à beira de uma barraca de febras durante as festas do verão. Era nos bailaricos que a gente fazia os namoros.

Agora, dito assim, e depois de quase 40 anos a viver na cidade, parece tudo muito provinciano, muito campónio, mas a verdade é que eram tempos bonitos em que os verões tinham outra vida, com as terras a encherem-se das suas gentes, e os tais bailaricos tinham graça, pois tínhamos de arranjar expediente para escapar às atenções das mães e das tias se queríamos dar uns beijinhos mais atrevidos com os rapazes que nos desafiavam.

Nesse verão, o meu Carlos cortejou-me desde o primeiro dia das festas. Andava de roda de mim, não me largava, "Glória, tu és tão bonita", dizia-me ele. E eu derretia-me. Quando ele veio para Lisboa, eu quis vir logo com ele, mas os meus pais não me deixaram. Então, ficámos dois anos a namorar à distância durante o outono, o inverno e a primavera, escrevíamos cartas um ao outro, gastávamos horas ao telefone. Nos verões, quando ele ia ao Minho, namorávamos de perto. Ele ia lá a casa e tudo.

Aos 17 anos, vim finalmente para Lisboa, para ajudar no restaurante onde ele trabalhava. O Carlos entretanto tinha comprado a quota a um sócio que quis largar a sociedade, 20% do negócio era dele. Ele servia às mesas, eu fui ajudar para a cozinha, aprender com a cozinheira. Os pratos eram os que se usava na altura em Lisboa, as iscas, as pataniscas, o bacalhau à Brás, o bitoque e as alheiras, nada de muito inventivo, que nessa altura ninguém inventava nada, nem desconstruída os pratos tradicionais. As pessoas gostavam era de comer.

Foi pouco depois de cá estar que percebi que o meu marido - na altura, ainda nós não éramos casados, portanto, era meu noivo - tinha apanhado o hábito das prostitutas. Ele nunca mo negou, assumiu sempre que, durante aqueles dois anos em que cá morou sozinho, de vez em quando ia "às meninas", como se dizia. Tinha as suas necessidades e as suas vontades, não o julguei com dureza, mas fi-lo prometer que não repetia e ele prometeu. Só que prometeu, mas não cumpriu, que eu vim a apanhá-lo mais um par de vezes a voltar desses sítios onde esteve com sabe-se lá quem. Ele nunca me mentiu, e dizia-me sempre "ó Glória, mas é só de ti que eu gosto, isto que eu faço são outras coisas, é só fogo da carne". Não vou dizer que não me doía: doía. Mas, no fundo, acreditava nele. Tinha mais medo por causa das doenças, com todas as coisas que se pode apanhar. Felizmente, nunca deu positivo em nada.

São coisas que já lá vão. O Carlos fez-me sofrer, chorei por ele, mas também me fez muito feliz. Deu-me o que tenho, três filhos e um netinho. Construímos a vida juntos, se hoje sou dona de um restaurante é graças a ele, porque o comprámos juntos e porque o gerimos juntos. Ele é que era o homem do negócio, o chefe da casa, quem tinha as ideias e fazia as contas, o meu guia e a minha referência. Um dia tombou no chão sem dizer palavra. Abriu muito os olhos e levou uma mão ao peito. Tínhamos a sala cheia, ninguém comeu. Foi o pior dia da minha vida. Faz-me muita falta, o Carlos.

Quando fiquei sozinha, tive de aprender a fazer tudo, a governar, a gerir, a pensar e a antecipar. Ser a mulher que fica na sombra do marido pode até ser duro, mas também é confortável. Não tens voz, mas também não tens responsabilidades nem culpas. Ele diz-te o que fazer, tu obedeces e fazes. Quando chega o dia em que és tu que tens de decidir o que fazer, e se nunca o fizeste antes na vida, aí sim, percebes o quanto a vida pode ser mais dura. Levei muito tempo a adaptar-me. Deve ser a isto que as pessoas chamam emancipação.

Durante cinco anos, não pensei sequer noutro homem. Os apetites que tinha saciava-os a imaginar o meu Carlos, o meu primeiro e único homem. Até há pouco tempo, pelo menos. Há três anos, quando a rapariga que aqui trabalhava a servir às mesas decidiu ir-se embora, viver para o estrangeiro, fiquei sem ninguém para a substituir. Pus um anúncio no jornal a dizer que precisava de alguém com experiência de sala e que, de preferência, soubesse pelo menos falar inglês, que aqui vêm muitos turistas. O pagamento era pouco, mas com gorjetas uma pessoas não vai mal para casa. O Vítor respondeu ao anúncio e gostei dele logo de início. Pareceu-me prestável e de confiança. É mais novo do que eu onze anos. E é bonito.

Eu acredito que o Vítor tenha gostado de mim, também, desde o começo. Ele arrastava-me a asa, pelo menos. Mas eu não queria nem pensar nisso. Para mim, estar com alguém era trair o meu marido, mesmo sabendo que ele estava morto. Só que, às tantas, uma pessoa também não é de ferro. E então acabei por ceder. Só que eu cedo com as minhas regras e só fazemos aquilo que eu quero e aquilo que eu deixo. Pelos vistos, isso para ele não chega, e então vai a outros lados buscar o que eu não lhe dou. Não me magoa, que o meu amor, por mais voltas que a vida dê, é só um e já está debaixo da terra vai para oito anos. Mas chateia-me, porque me sinto desrespeitada. E depois, lá está, há as doenças e os descuidos, uma pessoa sabe lá. Seja como for, pouco me importa. Há coisas que só dei a um homem e não volto a dar a ninguém. Ele que as vá buscar onde quiser.

Saiba mais
Mundo, Opinião, Crónica, Histórias de Amor Moderno, Prostitutas, Lisboa
Leia também
As Mais Lidas