Histórias de Amor Moderno: “‘Tens noção de que ‘swing’ não se usa só no golfe, certo?’”
“Sempre que ele mostrava a tatuagem, eu voltava a sentir o que senti naquele dia no meu estúdio.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Eles iam, segundo o Filipe, a caminho do 18.º buraco. Era já o fim da manhã, pouco antes de almoço. O William não é um jogador propriamente dotado. Se houvesse um estereótipo de inglês a entrar na terceira idade que vai gastar a reforma para Vilamoura enquanto as articulações lhe permitem um swing razoável e o fígado, embora desgastado, ainda não deu de si, esse estereótipo seria, na perfeição, o William.
Mais ou menos magro, mais ou menos alto, cabelo grisalho e meio encaracolado, indeciso, mãos brancas e envelhecidas, embora claramente poupadas ao trabalho e ao esforço, olhos claros, como se o azul se misturasse com o verde e resultasse num cinzento vivo, pele sempre muito vermelha no rosto e no pescoço, o William passava no hotel dois meses por ano - setembro e outubro, por causa dos torneios de golfe - desde o início dos anos 2010. Agora, à beira dos setenta anos, sentia ainda mais dificuldades para terminar os 18 buracos do que aquelas a que o talento natural o havia destinado.

Naquela manhã, o 17.º buraco tinha demorado mais do que era costume. Um par 5, com um pequeno lago a preceder o green, exibia uma dificuldade que, por norma, condenava William às 7 ou 8 pancadas. Naquele dia, foram 12. Não foram mais porque, quando a 12.ª teve o mesmo destino que as duas anteriores - bola no charco -, William desistiu, "Philip, let’s do the
next one" - ele não pronuncia "Filipe", como nós, diz "Philip" como se fosse um nome inglês. O Filipe pegou no saco dos tacos, arrumou o que William usava e começaram a caminhar. E então o inglês começou com uma estranha conversa. "Sabes, há coisas que um homem, com a idade, começa a deixar de fazer. É como se já não soubesse como se faz." Segundo o relato
do Filipe, William dizia-lhe estas coisas a rir. "If you know what I mean", e depois ria-se. Criou-se algum desconforto.Quando o Filipe chegou a casa, ao fim da tarde desse dia, vinha profundamente incomodado. A conversa encaminhara-se rapidamente do golfe para os detalhes da vida privada, e do que nela acontecia e deixara de acontecer, entre ele e Elsa, a mulher. E, depois, passou para um outro patamar em que o William perguntou ao Filipe se ele não sentia curiosidade por Elsa. O Filipe diz-me que ficou sem resposta, apenas perplexo e baralhado. "Oh, não há problema, já não temos relações há anos", disse-lhe o William. "Podes tê-la quando quiseres", disse-lhe o velho inglês. O Filipe respirou fundo, afastou-se um passo e, de maneira educada mas firme, pediu-lhe que acabasse com aquela conversa naquele momento. Fê-lo ver que estava muito incomodado e desconfortável com o assunto. O velho riu-se, "ahahah, ok, let’s swing", disse. E prosseguiu. Quando o Filipe me contou, ficámos ambos sem palavras. "Tens noção de que ‘swing’ não se usa só no golfe, certo?" A minha pergunta era retórica.Conheci a Elsa em 2015, quando decidiu fazer uma tatuagem para assinalar os 40 anos de casamento. Entrou-me estúdio adentro e lançou um "hello" tão britânico e radioso que gostei dela imediatamente. Explicou-me qual o motivo para fazer a tatuagem, mas não tinha uma ideia concreta do quê nem de onde queria tatuar. Mostrei-lhe o meu portfólio. Enquanto passava os olhos pelas dezenas de desenhos, contou-me que tinha de escolher com cuidado, pois o marido faria uma igual. William, o marido, confiara-lhe a decisão do desenho - confiava muito nela, dizia Elsa, mas depois riu-se e disse "na verdade, preferiu ir jogar golfe, é louco por golfe, e pediu-me que escolhesse por ele, ‘vai lá tu e escolhe’, disse-me".

Elsa acabou por escolher o desenho de um pôr do sol com dois pequenos golfinhos saltando sobre o mar. Era um desenho muito kitsch que eu fizera a pedido de uma outra senhora, anos antes. Mas neste negócio, como em tantos outros, quem manda é o freguês. Aconselhei-a a tatuar a imagem num sítio que não estivesse demasiado à mostra, "para que não esteja sempre a vê-lo, depois cansa-se", usei como desculpa. Debalde. Decidiu fazer ao fundo da perna, entre a canela e o tornozelo. "Assim, sempre que enfiar umas sandálias, lembro-me do Algarve", justificou.
Enquanto víamos fotografias e escolhíamos, à medida que eu a ia aconselhando, conversávamos sobre outras coisas. E foi então que lhe contei que o meu companheiro, o Filipe, era caddie e instrutor de golfe em vários resorts algarvios. Perguntei-lhe se o William não precisava de aulas, ou de um caddie - os jogadores mais velhos, os que podem, pelo menos, gostam de ter um rapaz mais novo a acartar-lhes os tacos e a dar-lhes indicações que, na maior parte dos casos, ignoram ou simplesmente são incapazes de seguir. Mas faz parte do charme aguardar no lóbi do hotel e depois dizer "oh, look, there’s my caddie". Ela ficou com o contacto.William começou a treinar com o Filipe. Desde então, fizeram amizade. No fundo, tornámo-nos casais amigos, essa instituição que se estabelece normalmente quando duas relações longas se cruzam. Eu e o Filipe éramos muito mais novos do que a Elsa e o William, mas mesmo assim estávamos juntos há quase 15 anos quando os conhecemos. Durante a última década mantivemos sempre contacto, exceto num curto período durante a pandemia em que eles não puderam vir para o Algarve. Em compensação, depois não conseguiram sair durante mais tempo do que esperavam, o que levou o William a encontrar uma justificação criativa para conseguir jogar golfe.
Desde que nos conhecemos, saímos juntos quase todas as semanas em que ficaram em Vilamoura. Estes ingleses são danados para beber - e bebem de tudo, muita cerveja, muito vinho, especialmente vinho branco, espumante, whisky, cocktails, you name it. As noites de karaoke eram sempre uma grande farra. Foi numa dessas noites de karaoke que o William me convenceu a cantar I Got You, Babe, de Sonny & Cher. O William metia-se muito comigo, achava graça, não sei porquê, a que eu fizesse tatuagens e mencionava, sempre que era adequado (e mesmo quando não era assim tão apropriado), que tinha sido eu a tatuá-lo, mostrando em seguida a minha obra: do lado esquerdo do peito, sobre o mamilo. Sempre que ele mostrava a tatuagem, eu voltava a sentir o que senti naquele dia no meu estúdio. Senti-me atraída por ele quando o tatuei. Tocar-lhe no corpo, respirar tão próxima dele, mexeu comigo. O seu peito, embora envelhecido, parecia-me sensual. Havia qualquer coisa nele que era muito bonita. Talvez a curvatura, talvez a delicadeza da forma, a proporção, o tom da pele, talvez tudo junto. E eu acho que o William também se sentia, de certo modo, atraído por mim.

Na noite em que cantámos Sonny & Cher, depois de regressarmos à nossa mesa, ele deu-me a mão, às escondidas, enquanto estávamos sentados no sofá do pub. No escuro, ninguém viu. Eu não o rejeitei. Nunca aconteceu nada entre nós, para além dessa espécie de infidelidade quase infantil, quase ingénua, quase nada. Mas quando o Filipe me contou a conversa que tiveram no campo de golfe, a minha respiração ficou suspensa até que eu voltei a ligar-me à realidade.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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