Histórias de Amor Moderno: “As maiores machistas do mundo são as mães dos nossos homens”
“Dava pelo Mário Jorge sentado no sofá, a mudar os canais da televisão, serena e distraidamente à espera que eu o chamasse para a mesa” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real. Exceto desta vez. Este conto é completamente ficcionado. Ou será mesmo?

Não é que eu não reclamasse. Eu reclamava, ele é que não me prestava atenção. Sabem aquela brincadeira que fazíamos quando éramos miúdos - eu, pelo menos, fazia, até me cansar, para disfarçar o tédio da infância -, em que repetimos muitas, muitas, muitas vezes a mesma palavra, dizendo-a baixinho, ou mesmo só em pensamentos? Eu fazia-o até que a palavra se desconjuntasse, deixasse de ter significado e passasse a ser só uma combinação pateta de sons, que se iam tornando cada vez mais esquisitos, absurdos e sem sentido. Foi semelhante o que sucedeu com as palavras que eu fui repetindo, vezes sem conta, dia após dia, mês após mês, ano após ano. Cada vez mais baixo, claro, que uma pessoa ganha cansaço e perde alento quando as coisas se repetem e acabam por redundar em consequência nenhuma. Dei por mim a reclamar como se tivesse um tique, uma compulsão. É o que acontece quando um gesto se torna rotina e essa rotina adoece, empalidece e definha.
Eu e o Mário Jorge casámo-nos cedo, tinha eu 21 e ele 23 anos. Nascemos pouco depois de 1974, já o País vivia em liberdade e em democracia, mas fomos educados ainda com os preceitos de uma herança muito pesada e bafienta que ajudou a estruturar uma determinada ideia de família ideal. E essa família ideal passava por incluir um homem, o chefe de família, que devia ser o sustento da casa, e a sua mulher, que foi até muito tarde no século XX propriedade efetiva do marido. Depois, haveria variações e cada lar teria a sua especificidade, mas os filhos deveriam fazer parte da ideia de família - a ausência deles era muito mal vista e, por norma, a culpa pela ausência de prole era atirada para cima da mulher, que havia de ser "seca" ou "frígida", ou qualquer outra ideia muito bárbara e primitiva que se lhe pudesse colar.

O homem durante o Estado Novo, por seu lado, dificilmente seria estéril, porque se havia coisa que o antigo regime não previa nem concebia com bonomia era a esterilidade de um chefe de família (pôr a possibilidade de existir impotência roçava já o sacrilégio). Quando pensamos serenamente no assunto, percebemos que, nesse tempo, também não devia ser fácil ser-se homem e estar constantemente a prestar provas da masculinidade e da competência máscula para estar à altura do que seria um homem ideal, pai de uma família também ela ideal.
Quando se é educado dentro desta estrutura de pensamento e de cultura, sobretudo numa sociedade ainda tão agarrada às ideias antigas da Igreja Católica quanto às saias da mãe que lavava a loiça e passava a ferro, é normal que demoremos uma ou duas gerações, talvez mais, até que uma nova normalidade - mais saudável, mais sofisticada e mais justa - surja e o quotidiano das famílias, sejam elas compostas de que maneira for, assente em princípios tão básicos como "cá em casa, ninguém é criado de ninguém". Continuo a acreditar na tese que diz que as maiores machistas do mundo são as mães dos nossos homens, pois são elas que os educam assim, que os poupam ao esforço, que lhes fazem a cama, tratam da roupa, são elas que lhes mantêm o quarto limpo e as refeições prontas a horas, sem qualquer esforço em retorno, tudo isto até uma idade muito mais avançada do que seria desejável em nome da saúde dos matrimónios futuros e da educação do universo masculino em geral.
Quando fomos viver juntos, logo que nos casámos, ainda não tínhamos casa própria. Ficámos em casa dos pais do Mário Jorge, que era uma boa casa, tinha espaço e privacidade. Embora não me agradasse a ideia de viver com os sogros, a verdade é que não tínhamos alternativa, era preciso ser paciente e procurar rapidamente uma solução para o imbróglio familiar. Não ficámos muito tempo, felizmente, mas os poucos meses que passamos com os pais dele deram para perceber onde eu me tinha metido. A mãe do Mário Jorge pedia-me constantemente auxílio nas tarefas domésticas, como se quisesse formar comigo uma equipa de serviços do lar. Obviamente, eu estava na disposição de fazer tudo o que me competia enquanto residente da casa, cuidar da minha parte e do bem comum, mas era exasperante perceber que a ideia "vamos lá as duas, deixemos os homens descansar" se ia impondo cada vez mais. Tirava-me do sério essa atitude e deixava-me numa posição muito frágil. Não podia discutir nem levantar problemas, vivia na casa deles graças à sua generosidade. Não podia parecer ingrata, muito menos malcriada. Mas conversei mais do que uma vez com o Mário Jorge, tentando explicar-lhe que, se calhar, se ele tomasse a iniciativa de participar nas tarefas, as coisas talvez pudessem mudar. Respondeu-me que isso era um disparate, que a mãe nunca lho permitiria e que eu, "vá lá, Isabel, vá lá, meu amor", devia tentar manter a calma, era temporário, daí a uns meses, "se calhar, semanas", estaríamos fora dali, iríamos à nossa vida, independentes.

Logo nessa altura, deixei claro: a minha casa, as minhas regras. Ele, obviamente, corrigiu-me, "nossa casa, nossas regras". "Pois sim, meu amor, mas as nossas regras não vão ser estas regras daqui", disse-lho e não hesitei nem gaguejei, acho que nem pestanejei. Ele sorriu. Quando nos mudámos, fomos para um apartamento pequenino, mas muito confortável e decente, ideal para começarmos, agora sim, a sério, uma vida a dois. Não demorou até que eu tivesse de lembrar ao Mário Jorge aquilo de que faláramos ainda em casa dos pais dele acerca das regras e das tarefas. Só que havia sempre uma desculpa. Não tinha jeito para cozinhar, às horas a que chegavam do trabalho não convinha aspirar por causa do barulho para os vizinhos. A lavar a loiça não se ajeitava, não percebia nada dos programas da roupa na máquina.
"Para as limpezas mais a fundo, porque não arranjamos uma empregada?", sugeriu. Felizmente, até podíamos. Acedi, sim senhor, aliviava-me a carga e era garante de um trabalho bem feito e de uma casa impecável. Só que continuavam a faltar as tarefas pequenas, aquelas que corrigem aquilo que a vida do dia a dia vai tirando do sítio, desarrumando, deixando sujo. A loiça acumulava-se no lava-loiças se eu não lhe deitasse mãos, a roupa não se levava sozinha para a máquina e muito menos se desprendia da corda do estendal se eu não a apanhasse. Dei de barato que cuidava eu da função de cozinhar, até porque me dava gosto, mas mesmo esse gosto foi desaparecendo quando, até naqueles dias em que uma pessoa está arrasada de cansaço, dava pelo Mário Jorge sentado no sofá, a mudar os canais da televisão, serena e distraidamente à espera que eu o chamasse para a mesa - para a mesa que ele não punha, recorrendo ao expediente da distração programada, "ah, o comer já está pronto? Desculpa, Isabel, nem me tinha apercebido", e lá se sentava, com tudo já no lugar.
E eu ia reclamando, ia apontando as falhas, ia-me lamentando, ia dizendo, dizendo, dizendo as palavras, sempre as mesmas palavras, até elas já não fazerem sentido, até serem só sons desconjuntados, mas sons cada vez mais baixinhos e inaudíveis e débeis e desalentados. E então parei para pensar, para olhar para mim como se me visse de fora, e ali estava eu, sentada na cama, a repetir as palavras "loiça" e "roupa", mas agora já não era para matar o tédio, pelo contrário, pronunciava-as sentindo saudades desse tédio longínquo da infância em que sentimos que há alguém que olha por nós e toma conta de nós. E concluí que o Mário Jorge não olhava por mim nem cuidava de nós. E eu, dia após dia, estava a transformar-me cada vez mais na mãe dele, apanhando-lhe as meias que deixava no chão e deitando-as ao cesto da roupa suja, dobrando-lhe a roupa lavada e arrumando-a nas gavetas, com ordem, com preceito. Com carinho. Mas com cada vez mais cansaço, cada vez mais saturação.

Não demorou muito até eu tomar uma decisão. Um dia, o Mário Jorge chegou a casa e eu disse-lhe "vamo-nos separar". Ele, estupefacto, boquiaberto, inocente - sonso, é muito sonso, é uma criança mimada, mimada e sonsa -, "mas porquê, Isabel? O que é que se passa?", perguntava, com os olhos marejados por trás daqueles óculos redondos de massa que eu própria escolhi para ele, porque ele nem disso era capaz. "Para onde é que tu vais?", acrescentou, preocupadíssimo, mas, ao mesmo tempo, cheio de confiança. "Para onde é que EU vou?" Respondi-lhe, muito assertiva. "Mário Jorge, eu vou ficar aqui, sou eu que cuido desta casa", disse-lhe, calmamente. "Tu serias incapaz de viver sozinho. Vais viver com a tua mãe." Eu ia falando e ele permanecia estático, encolhido, obediente. "Já lhe telefonei, está a contar contigo ainda hoje." Depois apontei para a porta. "Fiz-te duas malas de roupa - eu sei que não és bom a dobrar roupa e que não te consegues decidir sobre o que é mais importante levar, por isso achei melhor deixar tudo pronto. Depois podes vir buscar o resto - não te rales, tratarei de ter tudo lavado, passado a ferro, dobrado e arrumado", disse-lhe. "Só preciso que tragas as malas para eu voltar a enchê-las" E ele obedeceu, embora me parecesse apanhado de surpresa. Mas eu reclamei, eu fui reclamando. Ele é que não prestou atenção.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

Quer aprender a escrever sobre Moda? Ou criar a estratégia ideal para comunicar uma marca?
Estão abertas as inscrições para a primeira edição do curso da Pulp Fashion que junta os dois universos de comunicação da Moda: o jornalismo e as relações públicas.