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Histórias de Amor Moderno: “Não sou ciumenta, muito menos possessiva, mas uma pessoa fica a pensar”

“Depois daquela minha primeira ida ao futebol, com aquele grupo de pessoas, a minha perspetiva mudou.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Getty Images
06 de abril de 2024 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

"Vou contigo." A frase saiu-me da boca e até eu fiquei surpreendida. Pensei para comigo "eu disse isto, mas não tenho culpa nenhuma, foi completamente involuntário". E o Diogo, já de cachecol posto e pronto para sair, parou, voltou-se para trás e, com uma expressão surpreendida mas sorridente, perguntou "tu o quê?" Eu ainda estava a digerir aquilo que tinha acabado de dizer, surpreendida comigo mesmo, sem ter a certeza do que fazer a seguir e principalmente sem estar lá muito segura de querer mesmo ir com ele, repeti, meio hesitante, como uma criança tímida, "eu hoje quero ir contigo". E ele riu-se, mas riu-se com uma gargalhada feliz, com gosto, passou por mim, deu-me um beijo, abraçou-me e quase me pegou ao colo, e depois foi ao quarto, disse lá de dentro "veste o casaco, vai ficar fresco à noite". Voltou de lá com um cachecol que me pôs ao pescoço. "Se vais comigo, tens de ir equipada como deve ser."

Eu não tinha bilhete para o jogo. Na altura, ainda nem sequer me tinha feito sócia. "Não te preocupes, vamos ter com a malta às roulotes. Há sempre um Redpass a mais", garantiu o Diogo. Eu nem sabia ao certo o que era um redpass nem como se usava. Quer dizer, sabia que era o lugar anual no Estádio da Luz, mas não tinha a menor ideia dos procedimentos para usá-lo. "Se não arranjarmos bilhete, não te preocupes: ficamos nas roulotes e vemos na televisão." Quando me disse isto, fiquei intrigada. Como assim? "Há muita gente que entra tarde no estádio, ou então que nem chega a entrar em certos jogos. O ambiente é espetacular."

Ainda não tínhamos chegado e eu já estava a ser inundada por informação completamente desconhecida por mim até àquele momento. Foi como se, ao ter dito que também queria fazer parte, o Diogo tivesse feito um "abre-te Sésamo" para me apresentar o seu esplendoroso mundo secreto - um mundo secreto feito de amigos, gritaria, muita cerveja, adereços encarnados, gargalhadas, abraços a pessoas por vezes desconhecidas, euforia, tristeza, camaradagem, pulos e saltos, um vocabulário muito particular e que não pode ser usado em nenhuma outra circunstância. Enfim, onde Ali Babá guardava quilos e quilos de joias e de ouro, o Diogo preservava o seu espaço da mais pura liberdade e de camaradagem, uma espécie de reserva natural do seu estado puro.

Nunca liguei muito ao futebol. Sou e sempre fui do Benfica, mas até descobrir o universo encantado de quem vai à bola, era uma benfiquista só vagamente. Nem sabia ao certo quando a equipa jogava. Dificilmente saberia o nome de mais do que três ou quatro jogadores, e só dos mais mediáticos - de tal modo que sabia nomes de jogadores mediáticos que passaram pela equipa, mas que entretanto já saíram sem que eu desse conta (e quando eu perguntava ao Diogo, por exemplo, "mas o João Félix não joga porquê?", ele olhava-me com um misto de incredulidade e de ira e de desapontamento, acabando por dizer apenas "porque já não está na equipa", e depois terminava enfatizando com desprezo primordial "há vários anos", abrindo muito os olhos, como se o endurecesse este meu desconhecimento do que é óbvio, mais que óbvio, muito, muito mais que óbvio!).

Este meu desligamento em relação ao futebol teve consequências. Eu e o Diogo sempre partilhámos tudo, desde o início: os gostos, os sonhos, as vontades, os desejos. Além de muito apaixonados, éramos um casal muito cúmplice, muito sintonizado. Não havia "o meu mundo" e "o mundo dele". Não, as nossas coisas eram comuns, e eram-no com uma grande naturalidade, sem ser porque fazíamos questão disto ou daquilo. Eu sempre gostei dos amigos dele e ele dos meus, saíamos com gosto juntos porque gostávamos do mesmo tipo de sítios, escolhemos restaurantes sem dificuldades, provamos vinhos em regime de absoluta partilha do prazer e da descoberta - somos pessoas muito gastronómicas -, enfim, sempre nos deleitámos em conjunto, como uma verdadeira equipa, com todas estas pequenas delícias e privilégios da vida. Não porque fizéssemos cedências ou porque fôssemos compreensivos, mas antes porque sempre nos deu prazer a companhia um do outro e partilha dos gostos. Exceto no que respeita ao futebol.

Essa prática de "ir à bola" permanecia como um campo no qual eu não queria entrar e de que abdicava sem dificuldade. Só que, com o passar do tempo, essa minha ausência, essa minha abstenção, começou a criar alguns atritos. Ora porque ele chegava tarde a casa, ou porque claramente tinha bebido uns copos a mais, ou porque a euforia dos jogos o deixava numa sintonia diferente, sentia que esse momento semanal - às vezes, bi-semanal - nos separava muito mais do que eu gostaria. Além disso, eu não sabia com quem ele estava. Não sou ciumenta, muito menos possessiva, mas uma pessoa fica a pensar.

Comecei a mostrar-lhe o meu desagrado. Ele conversou comigo muito serenamente. Disse-me que restringi-lo neste ponto particular, que era o seu refúgio, a sua fuga à realidade, seria injusto, que desde há muito era ali que a agitação e as explosões - de alegria, de frustração, de tristeza - se produziam a catarse de que precisava para manter a sanidade mental. Além disso, acrescentou, "eu gosto mesmo de ir à bola, de ver o jogo". Aceitei. Era justo. Achei que compreendia a importância que o futebol e o "ir à bola" tinham para o Diogo.

Havia situações que, contudo, me deixavam mais apreensiva. Por exemplo, a ida aos jogos fora, nas competições europeias. Eles viajavam em grupo e de várias maneiras. Um jogo a uma quarta-feira significava quase uma semana inteira perdida, fosse em França, na Bélgica ou na Itália. O destino era indiferente. Iam na véspera do jogo e regressaram no dia seguinte. Nessas situações, sim: confesso que sentia ciúmes. Preocupava-me também aquele ambiente excessivo, que era como eu o imaginava, de homens ainda relativamente jovens a regar o dia a dia em cerveja, três dias de seguida, pelo menos. Tudo pode acontecer. Ficam vulneráveis e expostos. De novo, falei com o Diogo e de novo ele me disse o quão importantes essas viagens eram para ele. "Porque não vens comigo numa próxima?", perguntou-me. Mas eu disse-lhe que preferia não ir, que não me agradavam aqueles ambientes. E ele então respondeu-me "tu não sabes como é o ambiente se não estiveres lá". E esse pensamento ficou-me na cabeça.

Depois daquela minha primeira ida ao futebol, com aquele grupo de pessoas, a minha perspetiva mudou. Comecei a perceber que aquilo que eu entendia como um espaço de loucura era afinal um lugar de sanidade em que as pessoas se sentem livres e juntas. É um sentimento muito difícil de traduzir por palavras, porque há camaradagem, claro, mas há mais do que isso: há uma ideia primordial que os une, que os junta ali e que os move, que os faz viajar milhares de quilómetros e gastar algum dinheiro, que os faz perder dias de férias, que os obriga a fazer horas extraordinárias para que os seus trabalhos não sejam prejudicados por esta necessidade e por este ritual de ir à bola.

Depois de finalmente fazer uma viagem para ir ver futebol - se eu algum dia imaginei, na minha vida, fazer viagens e meter dias de férias para ir ver o Benfica! -, o Diogo ofereceu-me um presente. Era um livro. E estava guardado em casa para quando regressássemos da aventura europeia. Disse-me "vai à estante e tira o livreo que está embrulhado". Obedeci. "Abre o embrulho", e eu assim fiz. Era um livro de Nick Hornby, Fever Pitch, no original, em inglês. Comecei a ler, era a história do próprio Hornby e da paixão dele pelo seu clube, o Arsenal: desde que surgira - acidentalmente, ainda por cima - até aos tempos contemporâneos, isto é, os tempos em que escreveu o livro, e como a vida dele era feita, em grande parte, em função de conseguir assistir aos jogos do Arsenal. Comecei a ler e dei por mim a devorar autenticamente o livro. Não devo ter demorado mais de três noites a lê-lo todo.

Quando cheguei ao fim, disse ao Diogo que tinha gostado muito, mas que gostava de saber porque é que ele mo tinha oferecido, uma vez que suspeitava que houvesse ali uma qualquer mensagem subliminar que me estava a escapar. "O que achaste da parte em que ele fala dos funerais, dos batizados e dos casamentos?" - Hornby afirma que recusava convites para casamentos e batizados caso as datas coincidissem com dias de jogos do Arsenal em casa - e eu disse-lhe que achei graça. Ri-me. "Achei um bocado exagerado, mas fez-me rir", disse eu com ingenuidade. E o Diogo então respondeu "pois, mas é que a nossa malta também é assim". E fez uma pausa. Depois continuou, "por isso, temos de pensar muito bem na data do nosso casamento". E eu comecei a sorrir e acho que se me soltou uma lágrima feliz. "Isto, se tu aceitares casar comigo, claro. É que isto de casar é um assunto muito sério, é uma espécie de redpass vitalício." E é por isso que vamos casar em julho, mas no início. Por causa dos jogos de preparação.

*se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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